Aí há uns dois anos fui a um restaurante gourmet da terra. Do memorável jantar com que fui brindado dei aqui nota.
Nunca mais lá pus os pés, claro, mas estou ao corrente de que o estabelecimento está de boa saúde, a benefício das novas gerações educadas nos encantos do MacDonalds e que querem fazer um upgrade para a cozinha sem tradição, sal e respeito pelos nossos avós, mas liberalmente com criatividade, inovação e patetices.
Convidaram-me para ir à Gafanha d'Aquém, a um tasco, este fim-de-semana, com a informação de que o almoço seria constituído por bacalhau.
Aceitei com temor porque encontrando-se o gadídeo em lugar proeminente na minha lista de preferências nem por isso estou disponível para o ingurgitar em todas as declinações, mesmo que consagradas. Por exemplo, bacalhau com natas passo, digo-o corado de vergonha.
Não fui nem à ria nem ao mar. E se a rua em que estive, e as outras que percorri para lá chegar, for representativa do resto, certamente ninguém de senso lá vai para ver o edificado, que tem a mesma fealdade que inúmeras vilórias do resto do país.
A inexcedivelmente simpática dona (um tanto demais, na verdade, não sou grande adepto de demasiadas familiaridades) cedo trouxe duas infusas, uma do tinto e outra do branco da região, ambos tão despretensiosos como o ambiente.
Chegaram então caras de bacalhau no forno (pareceu-me no forno) numa travessa, sem qualquer acompanhamento. Foi a minha primeira vez e o que posso dizer, para desconsolo de quem ainda tenha ilusões a meu respeito, é que deixaram uma impressão mais positiva do que a do longínquo primeiro beijo.
Foram-se as caras, e foram-se também as línguas de bacalhau fritas, ao lado. E não fora a informação de que a seguir viria uma feijoada de sames (é, pelo boato que circulou na mesa, o intestino do bicho, na realidade a bexiga natatória segundo estudos que conduzi junto de boas fontes) teria pedido mais caras, e por aí me ficava.
A feijoada estava uma delícia e disse para os meus botões que haveria decerto alguma misteriosa unidade no reino dos vertebrados que fazia com que o mesmo instrumento que servia para o animal não afundar a mim me elevasse ao céu.
Da feijoada não trisei, inteirado que fui de que viria ainda o prato de resistência. E este chegou, modesto e grave, numa grande travessa, um imenso lombo cortado em quadrados, que se apresentou como bacalhau à Confraria.
Há, parece, várias receitas, mas o que foi servido lembrava o bacalhau à Narcisa, pelo qual tenho uma antiga afeição. Não o honrei como merecia por naquela maré já estar com o porão devidamente acondicionado.
A conta seria normalmente a dividir. Mas um dos convivas, simpaticamente, adiantou-se e ofereceu o almoço, pelo que fiquei sem saber o que custou. O meu palpite, porém, é que terá sido uma fracção do que custaria num restaurante com design e conceito, onde uma quantidade muito menor de peixe, e de qualidade substancialmente inferior, se apresentaria desfigurada em lâminas com emulsão de molho, reduções disto e daquilo, acompanhamentos de ervas aromáticas e críticas gastronómicas entusiásticas.
E então, esta história anódina tem alguma moralidade? Tem:
Há uma gente que sem o saber é depositária de tradições gastronómicas, variáveis de região para região, e com frequência entre espaços que, agora que contamos com as autoestradas do falso engenheiro, são de rápido e fácil acesso.
Não sei se essas tradições serão preservadas, mas mereciam-no por fazerem parte do nosso património, como a língua, as pedras dos monumentos, pequenos e grandes, os documentos, tudo o que fez com que o país fosse não necessariamente melhor do que os outros mas diferente - nosso.
A crítica gastronómica, que influencia tanta gente que para formar a sua opinião, nisto como no mais, precisa de oráculos que lhe digam a deles, bem podia preocupar-se menos com as estrelas Michelin que conquistou o chefe que inventou uns pratos complicados com sabores requintados que precisam de explicador para serem identificados, e mais com quem humildemente guarda a memória de sucessivas gerações de artesãos anónimos.
Já não conheço verdadeiramente a cidade em que nasci e na qual, salvo alguns breves intervalos, sempre vivi. Ela mudou muito e eu fiquei, no essencial, na mesma. Depois dos tempos do PREC e suas sequelas, e mesmo isso só por que me tocou directamente, deixei quase sempre de saber quem são os politiquetes nativos, o que fazem, o que pensam e o que dizem. Nunca li habitualmente os jornais locais, e quando calhou nos tempos mais recentes passar-lhes os olhos por cima encontrei a mesma mistura de guerrilha política, bairrismo mal entendido, opiniões de mesa de café embrulhadas em doutorices, e má poesia dos vates locais. Nada de substancialmente diferente do que se encontra nos jornais nacionais - apenas, e nem sempre, mais reles.
Pelo menos, suponho que seja assim. Que dos jornais nacionais leio sobretudo opiniões de gente que estimo; opiniões de gente que detesto; e de notícias quase nada, que a faca e o alguidar não me interessam e o resto ou precisa de contextualização, ou tradução para português, ou desconto do enviesamento partidário.
A cidade tem um polo universitário, foi capital europeia da cultura, está permanentemente pejada de turistas, e isso tem consequências.
Uma delas é a proliferação de restaurantes, os quais evito cuidadosamente, que do very typical quero uma prudente distância. E entre raros tascos das redondezas refractários à modernidade, e um ou outro valor seguro que ainda há por aqui, ou em cidades vizinhas, vou-me defendendo.
Mas hoje a companhia habitual faltou-me. E, confiado na opinião de dois amigos gourmet, fui experimentar um restaurante novo. Tem conceito, o estabelecimento, fiquei sabendo pelo empregado, à medida que me foi explicando, por exemplo, que não mudavam os talheres entre pratos e que os podíamos depositar, enquanto esperávamos pelo seguinte, numa peça de aço concebida para o efeito, com um engenhoso rasgo para encaixar a faca sebenta. E do conceito faz parte também uma decoração minimalista, a ausência de toalhas, ou guardanapos, de pano, a proibição de fumar e umas cadeiras que só não transformam o derrière do cidadão numa laje de cemitério se este, sendo mulher, tiver um físico de vénus de Willendorf, ou, sendo homem, umas adiposidades supranumerárias.
Escolhi o menu de degustação - três pratos, fui amavelmente informado - e o vinho, não da carta, que não há, mas do balcão, onde as garrafas estão alinhadas sem preços, que gente fina não se preocupa com detalhes.
O banquete começou com uma sugestão do chefe, consistindo numa mousse de batata com cominhos. E como tivéssemos ficado à espera de outra hipótese, o equívoco foi rapidamente esclarecido, no sentido de que afinal se tratava de uma oferta. Um “amiúje buche”, disse o moço, OK?
OK, venha lá a mousse. Era um copinho da mistela, quente, e não duvido nada que haja quem aprecie.
Seguiu-se um queijo da serra, crocante, num rolinho sobre uma ”cama” de rúcula com um molho cuja natureza não pude apurar. Estava bom, fui esclarecido e concordei. Com alguma melancolia, porquanto tenho a fraqueza de não apreciar transformações do queijo da serra, não ter o hábito de o comer a meio da refeição, e encarar com reserva quantidades homeopáticas.
Em seguida vieram dois bocadinhos de tamboril com arroz de feijão preto. Pareceu bom, o tamboril, embora não tivesse sido possível consolidar a impressão, por esgotamento quase imediato da matéria-prima. Mas o acompanhamento tinha uma dispensável carga simbólica, dado que os feijões faziam lembrar por demais as balas que por estes dias voaram em redor do Bataclan.
Finalmente o porco, acompanhado de uma detalhada explicação sobre os cuidados que foram postos na sua maturação. A gordura que me faltou no rabo, para aguentar as cadeiras, estava liberalmente contida no animal; decerto para evitar danos maiores para a saúde, faltava sal; e, numa louvável preocupação com o equilíbrio dietético, o mundo vegetal estava representado por uns cubos que o acompanhamento continha, sabendo rigorosamente a nada e que anunciei com orgulho serem tofu, para ouvir dizer que não, que aquilo era amido de milho prensado.
A sobremesa vinha num copo, contendo o que me pareceu ser chantilly de bisnaga sobre bocados de fruta de lata, acolitados com bolacha esmigalhada. O mestre de cerimónias, todavia, esclareceu que aquilo era na realidade uma construção de espuma de coco sobre frutos exóticos, OK?
Não ponho aqui o nome do restaurante, que não tem falta de clientes, pelo menos aos fins-de-semana. A mim faz-me falta paciência, todos os dias.
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