O Governo está contra a greve dos motoristas de transporte de matérias perigosas e, com a extensão enorme dos serviços mínimos, esvaziou-a de impacto, excepto se os motoristas, por terem pouco a perder, decidirem teimar. Mas, mesmo que os motoristas tivessem a obstinação dos coletes amarelos franceses, têm a oposição da opinião pública – as pessoas apoiam calorosamente greves (sagrada conquista de Abril, ai os dereitos dos trabalhadores! e não sei quê) com a condição de não serem directamente lesadas, ou, se forem, desde que antecipem que a entidade patronal vai ceder rapidamente. Por isso não é provável que a greve, que não tem prazo, e se vier a tiver lugar, dure.
Os patrões, que até agora não cederam, porque não podem ou porque não querem (para apurar se é por uma razão ou outra era preciso conhecer a situação das empresas e, em detalhe, a negociação, mas os senhores jornalistas têm apenas tempo e recursos para tomar partido e emitir opiniões – investigar e contar histórias com princípio, meio e fim, isso não fazem), estão satisfeitos: objectivamente, a decisão governamental ajudou-os.
O senhor presidente da República farejou o ar e, tendo descoberto que a greve não é popular, aconselhou conselheiralmente a desistência. O pobre homem toma-se por líder da multidão que segue caninamente.
As centrais sindicais e patronais estão embaraçadas: estes grevistas de novo tipo escapam ao controle da CGTP e da UGT, e são portanto a negação dos méritos da concertação social, uma engenhoca que, há décadas, garante importância, e proveitos, a uma quantidade de gente que fala em nome dos patrões e dos trabalhadores. Por isso, os patrões estão contra, como lhes compete, e as centrais disfarçam mal que não podem com esta gente suspeita, em cujo nome fala um advogado que nem sequer é comunista, ao que se sabe. Na prática, estão contra.
As pessoas lúcidas sabem que o poder destes grevistas advém-lhes de ser necessária uma formação específica para o transporte de combustíveis, e que portanto a concorrência entre trabalhadores é diminuta, por haver obstáculos legais ao recrutamento. Claro que a formação é meia dúzia de tretas caras, e claro que a exigência de outro funcionário para fazer a trasfega do combustível não tem pés nem cabeça, mas chiu!, que a formação é o abre-te sésamo dos subsídios e o sustento de uma prodigiosa quantidade de inúteis, incluindo na Europa. Suceda o que suceder, na formação profissional ninguém toca: mais depressa se criarão subsídios para novos formandos.
Os partidos gostariam muito de passar despercebidos, que, francamente, não se percebe se a greve é de esquerda ou de direita, e ninguém tem a mínima ideia de quem tem razão, salvo talvez o PCP, porque está por dentro destas histórias, e o PS (ou, melhor, o Governo, por ser mediador). Na dúvida, o melhor é não afrontar a opinião pública, de mais a mais em período eleitoral.
Resta que basta imaginar o que seria uma greve destas no tempo de Passos Coelho, se o Governo reagisse do mesmo modo: o país vinha abaixo com tanta manifestação a favor da Constituição e dos direitos dos trabalhadores, nenhum governante faria uma visita a lado nenhum para descerrar uma placa sem se sujeitar a manifestações espontâneas de cidadãos vindos, de camioneta, de todo o país; o cineasta Vasconcelos, o professor Boaventura, frei Anacleto Louçã, e 400 intelectuais, decerto informariam a população atordoada que vinha aí o fascismo; e Pacheco Pereira, na Aula Magna, discursaria perante luzida assistência, incluindo os venerandos membros da Associação 25 de Abril, vituperando o descaminho do regime.
Esta cogitação, a mim, desperta-me alguma simpatia por estes homens (a propósito: não há mulheres? Convém apurar, que talvez ande também por aqui alguma causa que precise de feministas). E depois ouço que parte significativa dos salários, que na base me parecem modestos, é feita de gratificações várias, para evitar descontos – tudo me parece histórias mal contadas.
Pode bem ser que a greve, mesmo falhada, traga coisas boas: o país não precisa de centrais sindicais atreladas a partidos, nem da excrescência corporativa da concertação social, um equívoco em que nas costas dos interessados falsos representantes dos patrões negoceiam com falsos representantes dos trabalhadores; que o país fique refém de um pequeno grupo de trabalhadores, hoje este e amanhã outro qualquer, pode recomendar a necessária revisão da Lei da Greve; e que o sindicalismo, liberto das peias de um passado e de uma tradição marxistas, corresponda à simples liberdade de associação das pessoas para defenderem interesses comuns – tudo seria certamente um progresso.
Para as férias, a começar a 14 de Agosto, as autoridades do lar haviam planeado um périplo pelo Alentejo durante uns quantos dias e término na Meia Praia, em Lagos, um local abençoado onde se pode andar a pé umas horas enquanto se miram os concidadãos e os bifes estendidos ao sol sem resguardo, com o incompreensível propósito de adquirirem uma tez de lagosta cozida e, com azar, cancro na pele.
Quanto ao périplo, kaput. Que pode acontecer que as gasolineiras estejam fechadas, por causa da greve dos motoristas, e portanto é mais avisado ir por Zamora, Tordesilhas, Toledo, Mérida e o mais que se verá. Não é impossível que o problema se resolva até lá, mas nunca fiando.
Parece que quase metade dos portugueses não pode pagar uma semana de férias fora de casa, o que significa que mais de metade pode. E a metade privilegiada quer, e conseguirá se o Governo arranjar maneira de comprar a aquiescência dos sindicatos e o beneplácito dos patrões, que não lhe falte o gasóleo para o carrinho, um perigo que tem comovido o país.
Metade é muito. Muito mais do que os doentes e cidadãos que as greves dos médicos e enfermeiros, ou dos juízes, afectam. E isso explica o empenho e o nervoso das autoridades.
Um nervoso hipócrita e eleiçoeiro. Porque os veraneantes não merecem mais respeito do que os doentes ou os carentes de justiça. Assim não entende o ministro da Economia, que vem defender a revisão da Lei da Greve agora, coisa que nunca antes fez e só é possível comprando uma briga com comunistas e esquerdistas sortidos, os mesmos sem cujo apoio Siza não seria ministro (o que, aliás, seria um benefício quase tão grande como o de o ministério nem sequer existir com as atribuições que tem, mas não cabe aqui explicar).
Quanto à greve em si, não sei para que lado caio porque os senhores jornalistas estão do lado dos camionistas quando detestam o governo, poucos, ou do lado dos patrões porque o amam, muitos, mas não fornecem resposta a duas perguntas: i) As empresas de camionagem podem todas, ou sequer a maior parte, pagar o que lhes é exigido sem risco de falência? ii) Os patrões podem repercutir o aumento dos custos nos preços sem que isso beneficie seriamente a concorrência estrangeira, se existir, e as grandes empresas em detrimento das pequenas?
Depois, é uma tentação simpatizar com estes grevistas porque são de um modelo novo: não dependem do bolor da CGTP ou da UGT; fazem-se representar por um advogado com um discurso articulado, sem os bordões enjoativos da classe trabalhadora, do patronato e da exploração – quando usam as mesmas palavras é no sentido corrente e não marxista e fóssil; e são genuinamente teimosos, sem que se suspeite que sejam meros peões para o velho jogo do PCP de conseguir mais poderes, e vantagens, do que as que os votos lhe dão.
Já com as greves dos enfermeiros o sentimento era igual: são genuinamente combativos e, com razão ou sem ela, a exigência das funções casa mal com a pobreza dos vencimentos. E a perseguição à bastonária é simplesmente um asco: a acusação de “envolvimento em atividade sindical” poderia com igual propriedade aplicar-se à Ordem dos Médicos, cujos bastonários nunca hesitaram em defender sindicalmente os associados, ou à Associação Sindical dos Juízes Portugueses, cuja hipocrisia começa no nome capcioso para cobrir pudicamente um sindicato. (Que, pessoalmente, ache que a actividade sindical deveria estar vedada aos juízes, como está aos militares, e que as Ordens de criação recente nem sequer deveriam existir, não tira nem põe nada ao raciocínio – pertence a outra categoria de assuntos).
Os interesses dos grevistas opõem-se aos dos patrões, mas não devem opor-se com carácter universal aos da comunidade. E num conflito seria portanto desejável que apenas aqueles resultassem prejudicados, ainda que, por ser inevitável, também sejam causados danos a terceiros. Mas isto não é a mesma coisa que aceitar a ofensa de bens que só o Estado pode garantir, como é o caso da Saúde, da Segurança, da Justiça ou da livre circulação de pessoas e bens.
Isto quer dizer que a Lei da Greve precisa de ser revista, sim. Não no sentido de anular o direito à greve, de resto constitucionalmente protegido para trabalhadores por conta de outrem, nem no de o constranger de tal modo que o seu exercício resulte na prática impossível. Mas no de o casar melhor com interesses com pelo menos igual força. Se isso significar a criação de desigualdades em direitos para trabalhadores que calhe estarem em sectores que afectem o conjunto da população, paciência. Não consta que os funcionários públicos, que jamais são despedidos por falência do empregador, sejam postos na rua por o desemprego aumentar no sector privado, o que significa que há esta, e inúmeras outras, diferenças de estatuto consoante o sector em que o acaso, ou a escolha, colocaram cada qual.
É que não é a mesma coisa um, ou dois, ou três, hospitais entrarem em greve ao mesmo tempo, e fazerem-no quase todos; uma, ou duas, ou três empresas de transporte de combustíveis e todas ou quase. E como quem decide do interesse público, em termos executivos, é o Governo, que é aliás também julgado por isso, precisa de ter meios legais ao seu alcance.
O ministro Siza (que, entretanto e previsivelmente, já se desdisse, metendo os pés pelas mãos como o homúnculo político que efectivamente é) esteve originalmente bem. E é decerto irónico que seja um responsável, ainda que menor, do PS a querer mexer nesta vaca sagrada do direito à greve. Não parece que vá suceder, claro, que no Rato têm um medo que se pelam ao berreiro dos comunistas e primos, para não falar dos esquerdistas sortidos que enxundiam o espaço da opinião, como Pacheco Pereira, Daniel Oliveira e outros vultos do asneirol.
Mas lá que pareceu, por um momento, que Deus estava a escrever direito por linhas tortas – pareceu.
Ao sair do Parque Industrial onde trabalho topei dois tipos junto de um saco enorme, transparente e cheio até acima, debaixo de um toldo portátil, daqueles de praia, com um tosco papel colado, onde se rabiscara a traço grosso: Cereja de Resende - 2 Euros Kg.
Não parei. Mas algo no vermelho escuro das cerejas me fez dar a volta onde esteve uma rotunda e está agora uma complicação de desenhos no chão, ofendendo um traço contínuo e desrespeitando um stop - poucas coisas me dão mais satisfação que estes pequenos comportamentos antissociais, quando não há perigo e a complicação da sinalização resulta da masturbação controleira de um edil qualquer com a mania de que sabe o que está a fazer.
Já tinha chegado entretanto um bando de operárias - era hora do almoço - e aguardei a minha vez, enquanto as desbocadas provocavam o homem com piadas brejeiras, misturadas com imprecações contra a fortuna que estaria ali fazendo, impingindo-lhes a peso de ouro umas cerejas que lhe deviam ter custado o preço da chuva. Há poucas coisas mais brejeiras do que um grupo de operárias na alegria da hora do comer e do lazer, e só um imprudente se atreveria a tentar meter-se na conversa, para a qual aliás o homem estava mais do que qualificado. Eu e o filho - presumo que o fosse - mantínhamos pois a boca fechada, ele um tanto assarapantado, eu a fingir-me meio distraído, elas a carregar no discurso, a ver se o coninhas - devo ter aspecto, pelo menos, de guarda-livros, senão de patrão - também aderia ao conversê.
O homem, enquanto retirava mãos-cheias de cerejas para os sucessivos pequenos sacos de plástico que o filho ia pondo na balança, e aconselhava que não esquecessem de dar as cerejas aos maridos e namorados, a fim de lhes reforçar a força que a ele sobrava, vigiava com um olhar inquieto as cercanias.
Não tinha a carrinha por perto; o saco podia-o transportar sozinho, e o filho a balança e o toldo; e imagino que lhe faltava a licença para a venda ambulante, mais o que quer que seja que se exige, e que deve ser muito, a quem vai buscar cerejas onde as há, para as vir vender sob a torreira do sol a dois euros o quilo.
Ninguém lhe pediu factura, claro; e as cerejas revelaram-se óptimas, com um preço - fui informado de regresso a penates - em conta.
De brinde, além de sumarentas, continham uma moral. E essa era de que é um mundo estranho, este nosso, em que para ganhar a vida se exige licença e se pagam taxas, e se corre o risco de pagar coimas terroristas, enquanto, a 380 km de distância, os maduros dos transportes públicos de Lisboa, com emprego certo, fazem greves porque julgam que têm direito a que este pobre diabo, e os outros contribuintes, lhes continuem a cobrir os prejuízos das empresas em que quase nunca trabalham um mês seguido.
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