Sábado, 18 de Maio de 2019

Um passeio primaveril

A 200 metros do meu portão passa uma ciclovia, agora ligada à, já antiga, que vai até Fafe, utilizando a quase totalidade do leito do caminho de ferro que foi desactivado em 1986 e que estava ao serviço desde 1907.

 

O novo troço foi inaugurado em Setembro do ano passado, com a devida solenidade, isto é, presumo, com o discurso de circunstância da nulidade que sobraça(va) a pasta dos transportes e as eructações aldeãs do edil local.

 

“O objetivo desta intervenção é generalizar o uso da bicicleta na vida quotidiana dos vimaranenses, transformando-a num meio de transporte e não somente num veículo de lazer ou de desporto”, diz a notícia e pensam decerto as luminárias que promovem estas modernices.

 

Anteontem, com um sol radioso, fui investigar e caminhei por um pouco mais de 6 km, isto é, até à actual estação ferroviária de Guimarães, onde hoje acaba a linha que vem do Porto. É um bonito passeio porque não houve ainda tempo de poluir a paisagem – a linha estava protegida por uma zona non aedificandi e não havia particular apetência para construir perto do barulho e fumarada dos comboios. Veem-se, a nível quase sempre inferior porque o trajecto é numa encosta, novas urbanizações, geralmente com prédios abomináveis à la Souto Moura, mas sem bandalheiras e lixo no entorno, e com acessos e parques de estacionamento razoáveis.

 

A novel pista tem um piso impecável, irrepreensivelmente pintado num bonito bordeaux, com sinalética esclarecedora e abundante, e postes de iluminação negros, de design contido. O alcatrão acaba em guias de ferro discretíssimas e bem colocadas, as bermas têm largura uniforme e uma cuidada gravilha. Em suma, a execução é excelente.

 

A meio, parei numa esplanada de um café moderno, para um sumo de laranja que não havia, substituído por um fino de cerveja morta, um lanche ressequido e dois cigarros.

 

Quer dizer que o passeio durou pr’aí uma hora e meia. E neste espaço de tempo, a meio da tarde de um dia esplendoroso, vi três ciclistas.

 

A ideia de que numa cidade onde é tudo a subir e a descer, onde nos longos meses de Inverno faz um frio de rachar não tanto porque as temperaturas sejam muito baixas mas porque há vento e chuva, e onde no Verão as temperaturas sobem acima dos 30º,  possa haver um número significativo de pessoas que abandonem o carro, ou a motoreta, ou os transportes colectivos, a benefício da mitificada bicicleta, é um absurdo.

 

Absurdo que só se explica porque correm rios de dinheiro da Europa nos cofres municipais, e fortes correntes de ar pejado de alucinogénios entre as orelhas dos autarcas.

 

Estas brincadeiras custam milhões. Os milhões que não existem para coisas tão simples como tampas de saneamento à face dos pisos das estradas e arruamentos, e não salientes ou afundadas, ou acessos decentes e bem mantidos a zonas residenciais ou industriais. Isto numa longa lista de aplicações alternativas socialmente mais úteis de recursos públicos, mesmo dando de barato (eu não dou, mas não é disso que aqui trato) que diminuir impostos não é razoável e que a União Europeia é tão estúpida, e a nossa diplomacia tão impotente, que dinheiro só há para torrar em fantasias.

 

É de fantasias que se trata: jamais a população aceitará, se tiver outro remédio, que a medida do progresso é a deslocação por tracção animal, que tinha ficado lá atrás, até meados do séc. XX. E por muitos partidos verdes ejaculando propaganda pró-ambiente de China maoísta, injunções de médicos fascistas que esqueceram o juramento de Hipócrates para o trocar pela engenharia de costumes sadios, e esquerdistas sortidos que não descansam enquanto não construírem um homem novo, o raio da pista continuará deserta.

 

Estranho caso: A certo ponto quase toda a gente concordou que a construção das autoestradas sem tráfego assinalável foi uma malbaratação de recursos, e que as externalidades positivas foram uma invenção de políticos venais ou inconscientes. À escala local, as ciclovias não são um escândalo menor. Abençoado embora por quanto idiota sabe, melhor do que as pessoas, o que a elas convém, e ainda que as mesmas pessoas, por julgarem que o dinheiro não lhes sai do bolso, achem que as ciclovias são uma óptima ideia – para os outros.

publicado por José Meireles Graça às 16:53
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Segunda-feira, 24 de Abril de 2017

Agenda cultural

Vivo, desde 1975, num sítio que dantes ficava na periferia da cidade. Antes disso, e salvo umas ausências esporádicas de uns quantos anos no Porto, morei numa freguesia rural e em várias casas, duas delas na praça mais antiga, então decrépita e hoje reabilitada.

 

Comecei a minha vida profissional na Câmara local, e por lá fiquei quase onze anos.

 

Quer dizer que deveria ser um arreigado bairrista, mas não: sempre a minha vidinha me interessou muito, a do país bastante, a do mundo alguma coisa e a do concelho quase nada. Vou a ponto de confessar, compungido, que se o Vitória de Guimarães fosse para a segunda divisão (que agora se chama de Honra, possivelmente pela sua clamorosa escassez) o facto só me aborreceria por ter de aturar a sentida tristeza de alguns amigos; e que dispensaria as honras pacóvias de que os meus conterrâneos se  ufanam (capital europeia disto e daquilo) se elas não tivessem palpáveis vantagens para o comércio, a cujos interesses não sou, em abstracto, alheio, e para a conservação do património.

 

Há uma dúzia de anos saio de casa e viro à esquerda, salvo seja, em direcção ao concelho vizinho, onde trabalho; e como o bar onde durante mais de vinte anos ia ao fim da tarde conviver com parte das forças vivas da terra fechou, pouco menos seria ignorante da vida da terra se vivesse em Phnom Penh.

 

Aos sábados de manhã, vou, há mais de vinte anos, ao outro extremo da cidade, com frequência a pé, à mesma esplanada, pacificamente considerada um lugar fino; e aí lia o Público, quando Vasco Pulido Valente ainda lá escrevia, e leio agora o correio, a blogosfera, o facebook, o Alberto Gonçalves (VPV mudou de dia e de jornal) e coisas várias.

 

Hoje lá fui pachorrentamente, fumando; e, ao passar na rua da Rainha, reparei neste prédio. Pasmei para o cartaz, que anuncia a instalação de "residências para investigadores". E, como fiquei curioso, ao chegar ao destino apropriei-me da agenda cultural do mês, publicação municipal profusamente distribuída cuja leitura habitualmente evito, por razões de higiene, a ver se encontrava notícia do empreendimento. Nada: a agenda em questão, aliás, não se chama assim, dizendo singelamente na capa "Guimarães Arte e Cultura", sobre fundo de fotografia desmaiado em azul ciano de uns piolhosos com ar fortemente artístico.

 

Um portento, o livrinho de quarenta páginas, fora o encarte, com 30, específico do "Centro Cultural de Vila Flor". Logo na capa listam-se alguns dos organismos que, além daquele Centro, se ocupam da cultura dos munícipes: são eles a "Plataforma das Artes e da Criatividade", a "Casa da Memória", o Centro da Criação de Candoso", o "Espaço Oficina", a "Fábrica Asa", o "Centro para os Assuntos da Arte e da Arquitectura" e finalmente o "Laboratório das Artes".

 

Espiolhando a Internet encontram-se notícias do que se faz nestes organismos; e alguns já visitei com a secreta, e desiludida, esperança de não confirmar os meus preconceitos. Dou, pela leitura da Agenda, alguns exemplos:

 

No Grande Auditório vai uma peça de Máximo Gorki, assim apresentada, juro: "Veraneantes é uma tapeçaria de desejo e frustração que autopsia a nossa impotência perante o desenrolar da vida". Deve tratar-se, imagino, de um tapete estragado a embrulhar o cadáver de um cavalheiro que se suicidou em razão de problemas de índole sexual. Passo.

 

Estreia absoluta de "Vespa", de Rui Horta, um solo interpretado pelo próprio, após 30 anos de ausência do palco. "Vespa é uma peça sobre uma cabeça a explodir, sobre o que nem sequer falhámos porque nos coibimos de cumprir. Na dupla condição de voyeur, a do outro e a de si próprio, o público compõe o tétris do personagem em cena, desafiando a sua própria concepção do registo público e privado". Não li o resto, e portanto não estou em condições de explicar o que Rui se propõe fazer em palco (nem possivelmente estaria mesmo que lesse porque nem sequer o primeiro parágrafo entendi). Não obstante, a referência aos trinta anos de ausência lança sobre o artista uma luz favorável, por não ser impossível que tenha estado em meditação num mosteiro budista. Mesmo assim, o risco é demasiado grande: passo.

 

Há muito mais: Numa coisa chamada "Bufos", um tal José Almeida Pereira, com a participação de Cristina Mateus e Max Fernandes, propõe-se "contra a fugacidade do tempo incitar a imaginação do observador e convidá-lo a demorar-se no espaço sensível da sua subjectividade para escapar à luz estroboscópica das imagens". Ainda li mais um bocadinho, a ver se não seria um ménage à trois com luzes psicadélicas, caso em que o assunto mereceria alguma ponderação, mas parece que se trata de pintura: "O que se coloca diante de nós são simples espectros, pequenos vestígios, rastos de um conjunto de imagens que teimam em permanecer para sempre na memória".  Uma coisa destas ficar na memória não parece um perigo muito plausível, mas a prudência aconselha a não menosprezar a ameaça: passo.

 

No meio da cangalhada, há uma ou outra coisa com interesse: teria sido capaz de ir ver a Orquestra de Guimarães, para ouvir Mendelssohn, desde que arranjasse um lugar na coxia, para o caso de a orquestra em questão, que não conheço, ter som de cana rachada, e poder dar à sola discretamente. E é com certeza impossível que ninguém faça, nesta floresta de organismos, obra de mérito e trabalho respeitável. De resto, este esparramar de dinheiro com o que se toma por cultura, e esta abundância de vacuidades, não são um exclusivo da terra, nem português.

 

Mas não preciso de ver contas para saber que tudo isto dá prejuízo; e não se requerem grandes rasgos de lucidez para perceber que o fio condutor destes organismos é a criação de empregos públicos e o sustento de artistas que o mercado não alimenta.

 

Pessoas que o poder nomeia para terem empregos permanentes na vaca marsupial pública, e que escolhe para terem apoios e subsídios que são negados a outros, como se houvesse outro critério que não seja a filiação partidária e o amiguismo. E isto numa amálgama pornográfica (no caso de Guimarães) com a recuperação do património, que tem sido feita com sucesso, critério e resultados.

 

Conservar e restaurar o património é função do Estado. Patrocinar o ensino da música ou das artes plásticas, também. Mas a produção artística - não. É claro que o Estado pode ocasionalmente comprar peças de Arte contemporâneas, para efeitos de arranjo ou enriquecimento de espaços, como sempre fez; assim como mandar fazer edifícios, quando necessário, não sendo indiferente que seja o arquitecto A ou B a projectar. Isto mesmo tendo presente que a única maneira segura de investir em Arte contemporânea seria a de pagar com promissórias a validar em 100 anos, no caso improvável de os nossos trinetos subscreverem o que sobre Arte se pensa agora.

 

Mas no nosso país falido, muito mais do que num país normal, o rateio dos dinheiros públicos deveria estar ao abrigo de equívocos. Quem quer pintar que pinte, quem quer representar que represente, quem quer escrever que escreva, quem quer esculpir que esculpa, quem quer compor que componha. Mas quem quer mamar que espere - espere pelo restauro dos monumentos a cair, dos acervos de museus e bibliotecas que se deterioram e não crescem, pelas obras nas escolas que não se fazem. Espere, em suma, pela cultura que não tem voz e por isso não berra, não reclama, não faz reivindicações nem, graças a Deus, exposições, workshops e agendas culturais.

 

Então os seis investigadores da Rua da Rainha, para cujo alojamento se vai gastar à cabeça para cima de um milhão de Euros, vão investigar o quê? Isso é segredo, o que a notícia diz é que vão "interagir" com a população local.

 

Não deve ser para apurar o destino que a Câmara dá ao IMI que rouba. Isso já sabemos.

publicado por José Meireles Graça às 23:17
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