Naquela Gala, ía receber o seu primeiro prémio literário.
Como em tudo na sua vida, tinha previsto aquela noite ao minuto. Tudo pensado e planeado para a perfeição: "- Because yes, there is such a thing.".
As paredes da Biblioteca Nacional estariam fortemente iluminadas para que eles, os autores que a haviam precedido, pudessem ver o seu momento de glória. A constelação de mesas brancas, decoradas com velas douradas em castiças altos, não ofuscariam a imponência do salão, nem a verdadeira estrela da noite.
Ao subir ao púlpito, quando o Presidente a chamasse, Bárbara desfilaria lentamente, respirando cada segundo da sala, tomando tudo como devidamente seu, até ao altar do seu triunfal discurso: a apoteose para a qual Bárbara se preparara a vida toda e que, neste noite, finalmente, chegaria. E chegou.
Bárbara estava - sentia-se e diziam-lhe - deslumbrante.
O jantar decorria como delineado, os convidados comportavam-se como no filme que mil vezes tinha visto na sua cabeça: elegantes, comedidos, expectantes. Por ela, pelo seu momento.
Muitos flashes. Gigantes imagens suas nos écrans por detrás do palco.
O Presidente inicia o seu discurso: "Estamos hoje aqui para entregar este prémio..."
Sem se perceber como, num contínuo sem aviso, tudo ficou negro: "Que escuridão é esta? Que silêncio tomou conta de mim?"
Seguiu-se um burburinho, crescente, abafante. Abafou a festa, abafou o sonho, abafou Bárbara.
Simplesmente faltou a luz. Um corte de energia que ninguém foi capaz de repôr. Não se repôs.
A noite, improvisada, prosseguiu. À luz das velas. Ao som da voz. Sem amplificação.
A noite prosseguiu e o prémio foi entregue. Mas Bárbara nunca mais será a mesma.
*Desafio de escrever uma "very short story". Proposta a partir da frase inicial, com obrigação de incluir um elemento surpresa. Referenciada a esta fotografia (Andy Warhol, Candy Darling, 1974)
"Duas jovens designers portuguesas, Rita Trindade e Sara Gracioso, decidiram criar um arquivo digital da vida dos portugueses no século XX.The Portrait ID.
O arquivo está organizado por décadas e as fotografias mais recentes – sobretudo, as dos fabulosamente bimbos anos 70 – são as que nos parecem mais risíveis ou anacrónicas. Porque mais próximas de nós. As outras, as mais antigas, já não nos pertencem, não somos nós. O arquivo recebe imagens dos leitores, mas não tem a pretensão à la Borgesde se tornar uma enciclopédia infindável da portugalidade. Nem é preciso. Há lá imagens que resumem um universo inteiro. A people's history, um género em voga. (...)
Nestas fotografias, ao invés, nada há de inautêntico, excepto a pose de felicidade. E, mais do que isso, quem retratava e quem era retratado não queria passar por ingénuo. O tempo é que conferiu este atributo de ingenuidade. As pessoas e as situações parecem (e são) datadas porque a vida é breve e a felicidade fugaz. E é justamente por isso que a queremos fotografar; para a resgatarmos da finitude certa. Para mais tarde recordar...., como dizia o anúncio. É também grande o desejo de deixarmos uma marca qualquer neste mundo. Alguma coisa queremos deixar por cá. As polaroids esmaecidas são a versão contemporânea das pinturas de Lascaux. Estes que ali vemos mostraram isto, deixaram estes sinais, os seus, pessoalíssimos. Tudo muito simples, nada de complicações ou teorizações. Esta gente nasceu, cresceu, provavelmente fez sexo regular e pagou impostos nas datas previstas. Almoçou a horas, teve febres altas, digestões difíceis, levou profissão e ofício, netos dos filhos. Depois, foi à sua morte. The Portrait ID, um comovente acervo da nossa vulgaridade."
Retirado do (sempre muito bom) Malomil.
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