Quando eu for primeiro-ministro quero ter a capacidade de, quando me der jeito que me larguem a perna por ser apanhado todos os dias a traficar nomeações e adjudicações directas com amigos, amigos da família e famílias de amigos e a dar cabo do país por incompetências múltiplas, encontrar um osso para atirar à oposição que consiga fazer toda a oposição correr para o osso em vez de me discutir a mim.
O osso não precisa de ter carne. Não é preciso haver o risco de os meninos passarem a ir espreitar as meninas à casa de banho das escolas, ou irem mais do que vão agora, porque as célebres casas de banho são destinadas aos alunos transexuais, que são muito poucos em Portugal mas existem, e não as que os alunos que não são transexuais têm à sua disposição. Para o osso criar na oposição um sentido de urgência que a faz lançar-se em massa para o lado para onde foi atirado basta espicaçá-la com palavras de ordem como "ideologia de género" para ela acreditar na ameaça e largar tudo para saltar a persegui-la.
Eu neste ponto tenho que confessar que acho que sou a única pessoa que não consegue perceber o que é "ideologia de género".
Primeiro porque ideologia é uma coisa que se tem, não uma coisa que os outros dizem que se tem, e não vejo ninguém a assumir que tem ideologia de género, só vejo pessoas a denunciar a ideologia de género noutras. Até a ideologia do neoliberalismo sei pelo menos de uma pessoa que a assumia, que sou eu, mas a ideologia do género ainda não vi nenhuma assumir.
Depois porque não percebo, ou se calhar percebo muito bem, o motivo porque lhe chamam ideologia e não teoria ou outra coisa qualquer, na mesma medida em que não se chama ideologia, mas teoria, ao evolucionismo, ao heliocentrismo ou à relatividade.
Depois ainda porque não sei quantos géneros há nem é assunto que me tire o sono nem me levante interrogações sobre o meu, mas não me identifico com o género do/a socialite José Castelo Branco nem gostava de entrar numa casa de banho onde ele estivesse. Mas quem se identifica e goste, ou simplesmente ache que deve ser assim porque a ciência biológica o determina, que se divirta.
Para os poucos que ficaram quietos pode-se ainda lançar outro osso, por exemplo um apelo ao primeiro-ministro para impedir uma Câmara Municipal de abrir um museu municipal para expor o espólio que detém de António de Oliveira Salazar, osso que também é duvidoso que tenha carne porque não é claro que o governo tenha competências para interferir, impedindo, na abertura de um museu municipal.
Entre um e outro, os desejados ossos, poucos terão ficado sossegados e continuado atentos à governação. Hoje, por exemplo, ainda não veio a público nenhuma nomeação de padeiro para um gabinete governamental nem adjudicação directa de lenços de protecção inflamáveis, mas foi noticiado que o Ministério das Finanças impediu o INEM de adquirir 75 novas ambulâncias apesar de fazerem parte de um plano plurianual aprovado pelo ministro da Saúde anterior e de o INEM ter fundos para o fazer, proibição que o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses qualificou como "deixar pessoas a morrer na valeta".
Pessoas a morrer na valeta? Who cares? Falta um mês e meio para as eleições que o costismo vai ganhar por falta de comparência da oposição mas não incomodem a direita com minudências, porque a direita agora está toda ocupada a resolver o problema das casas de banho das escolas.
Quando eu for primeiro-ministro quero uma oposição assim.
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