Sexta-feira, 27 de Janeiro de 2017

As imunidades do António Costa

2017-01-26 Costa the con man.jpg

Para além das imunidades formais que o exercício do cargo de primeiro-ministro em exercício lhe confere, o António Costa usufrui aparentemente de duas imunidades extraordinárias informais:

  • A imunidade jornalística
  • A imunidade judicial

 

Imunidade jornalística

Ao contrário do primeiro-ministro anterior, que viu a sua vida contributiva vasculhada até ao tostão no parlamento e nos jornais, mesmo a da época em que era precário, a comunicação social tem um saudável e manifesto desinteresse pela vida contributiva do actual primeiro-ministro, mesmo a da época em que era milionário. Nunca se viu grande agitação por ele ter acumulado salários completos pelo exercício de funções oficiais em regime de dedicação exclusiva com honorários milionários como comentador de televisão, nem por ter recebido estes honorários a título de direitos de autor para os poder acumular legalmente com os salários completos e, por ser a esse título, serem parcialmente reduzidos a metade para efeitos de imposto sobre o rendimento. Nem a curiosidade que impele os jornalistas a investigar para aprofundar a compreensão de negócios que indiciariam comportamentos de ética duvidosa, quando não crimes graves, se fossem participados por outros políticos, que não ele. Nem qualquer reacção corporativa de indignação colectiva nem individual da classe quando ele injuria ou ameaça um jornalista, em privado ou em público, que qualquer político normal suscitaria se o ousasse fazer. Verdade se diga que o tom labrego com que se dirige regularmente aos parlamentares, e ele hoje estava em forma, faz parecer quase cordatas as ameaças, mesmo em privado, que dirige aos jornalistas.

Os motivos para esta imunidade estranha, ou notável, conforme seja vista da direita ou da esquerda, não são conhecidos com precisão, se bem que haja algumas explicações com um mínimo de plausibilidade, como por exemplo o facto de a mãe ter sido presidente do sindicato dos jornalistas. Mas, ao certo, não se sabe?

 

Imunidade judicial

A imunidade judicial é ainda mais estranha. Por mais óbvios que sejam os indícios de alguns crimes, por mais estranhos que sejam alguns aspectos de algumas negociatas que tem promovido enquanto governante, a justiça não lhe pega, não o investiga, não o leva a tribunal, não o condena.

É verdade que, na circunstância específica actual em que é primeiro-ministro, a justiça tem algumas limitações nos instrumentos a que poderia recorrer se o quisesse investigar. Também é verdade que a justiça, se abandonou a sua posição lendária de deixar os ricos e poderosos à vontade sem os incomodar, para se tornar particularmente dura, e até talvez mediática acima da dose recomendada para se fazer justiça com seriedade, na perseguição a alguns deles, continua a parecer preferir incidir a sua acção sobre ricos e poderosos has been, tenham eles sido empresários da bola, banqueiros, governantes ou até primeiros-ministros, e a deixar tranquilos os que ainda estão no activo, como ele está. Mas, mesmo quando as fez em alturas em que não tinha funções governativas, ou nos intervalos entre funções governativas depois de as ter feito, nunca lhe tocaram.

E não há poucos exemplos em que o desinteresse da justiça parece demasiado benevolente.

 

Caso Casa Pia

No caso Casa Pia, o António Costa, actual primeiro-ministro e terceira figura do estado, mas então mero deputado da oposição, foi apanhado nas escutas a conspirar com o actual presidente do parlamento e segunda figura do estado, mas então também deputado da oposição, com o então presidente da república, e o então procurador-geral da república, para tentarem colectivamente impedir a entrada no tribunal de instrução criminal de um processo envolvendo um deputado socialista.

As consequências destas escutas que alguém dentro do sistema judicial, porque ninguém de fora do sistema judicial era já arguido, tinha advogado, ou tinha sequer conhecimento da sua existência, fez diligentemente chegar à comunicação social, foi mais ou menos por essa altura que a justiça passou a ser mais mediática, talvez para se livrar da fama consolidada de deixar os ricos e poderosos impunes, foram a belíssima anedota "Tou-me cagando para o segredo de justiça", a prisão preventiva do deputado que estava a ser investigado por risco de perturbação do inquérito comprovado pela escuta da conspiração dos seus camaradas, e nenhumas para os conspiradores comprovados, apesar de a perturbação de inquérito ser um crime. Não houve nenhum processo aos conspiradores por perturbação de inquérito na forma, pelo menos, tentada.

 

Siresp

Outro caso pelo menos enigmático foi o negócio do Siresp.

  • O Siresp foi concebido durante o governo do António Guterres e o concurso lançado pelo ministro da administração interna Figueiredo Lopes do governo Durão Barroso.
  • O caderno de encargos, com o custo de quinze mil euros, foi levantado por cinco interessados, mas todos com excepção de um único, o consórcio formado pela Sociedade Lusa de Negócios - SLN, a Motorola e a Portugal Telecom - PT, declinaram a apresentação de propostas por considerarem o caderno de encargos elaborado à medida da oferta deste consórcio.
  • Confrontado com o facto de ter apenas um concorrente, e tendo provavelmente percebido que as queixas dos outros tinham sentido, o ministro Figueiredo Lopes não cancelou o concurso, mas prolongou indefinidamente o processo de negociação com o único concorrente, não tendo concluído as negociações até à demissão do primeiro-ministro Durão Barroso e do governo.
  • No governo seguinte de Santana Lopes, o ministro Figueiredo Lopes foi substituído por Daniel Sanches, um administrador da SLN.
  • Já depois da dissolução do parlamento e da realização de eleições legislativas que foram ganhas pelo PS na oposição, com o governo em funções de gestão, os ministros da administração interna Daniel Sanches e das finanças Bagão Félix formalizaram a adjudicação do Siresp ao consórcio concorrente por 538 milhões de euros.
  • Após a saída do governo, o ex-ministro Daniel Sanches regressou à SLN.
  • Perante os indícios de, no mínimo, alguma falta de transparência no processo até aí, o ministro da administração interna António Costa do novo governo de José Sócrates decidiu, e bem, solicitar à PGR um parecer sobre o processo.
  • A PGR recomendou a anulação da adjudicação por falta de competência do governo, que naquela altura só podia decretar "actos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos", e o ministro decretou a adjudicação nula.

E o assunto parecia arrumado, e a bem da legalidade, da transparência e da ética na gestão dos interesses públicos. Parecia mas não estava. Em vez de pura e simplesmente não fazer a adjudicação, o ministro António Costa decidiu renegociar alguns termos do contrato com o consórcio, prescindindo de algumas funcionalidades e reduzindo o preço, e acabou por fazer a adjudicação por 485 milhões de euros. Em vez de anular um negócio que tresandava a vigarice por todos os lados de onde se olhava, limitou-se a contornar a ilegalidade da adjudicação para o concretizar.

Quem era o advogado da Motorola, uma das empresas do consórcio? O advogado Diogo Lacerda Machado, o melhor amigo e padrinho de casamento do ministro. Parece estranho? Parece.

O processo ainda foi investigado pelo Ministério Público, mas, ou por não haver indícios suficientemente sólidos para isso, ou por a investigação não ter sido suficientemente diligente para os encontrar, foi arquivado. E depois de o António Costa ter saído do governo não se lhe conhecem quaisquer sequências.

 

TAP

O negócio de alteração dos termos da privatização da TAP, que está a decorrer, também tem aspectos de transparência questionável.

  • Depois de quase uma década de gestão exemplar à frente da TAP, que conseguiu recuperar de uma situação de falência decorrente de prejuízos permanentes e conflitualidade laboral, o gestor Fernando Pinto fez em 2005, durante o primeiro ano do primeiro governo do José Sócrates, uma aquisição que se viria a revelar ruinosa para a TAP, não havendo informação pública que esclareça se o negócio foi uma iniciativa do gestor ou da tutela, excepto afirmações posteriores do gestor dizendo que o negócio teve a participação do governo e da Parpública: em associação com a Geocapital, empresa do investidor Stanley Ho, compraram a Varig Engenharia e Manutenção - VEM.
  • Em 2007, a TAP recomprou à Geocapital a parte desta no negócio pelo preço de aquisição acrescido de uma margem de 20%, ficando com a totalidade do capital da VEM.
  • Integrada no grupo TAP com a firma TAP Engenharia e Manutenção Brasil, a empresa continuou a acumular prejuízos e a dimensão da sua dívida colocou a TAP em risco de insolvência que, conjuntamente com a impossibilidade de o estado lhe injectar mais capital à luz das regras comunitárias, conduziu à decisão do governo Passos Coelho de a privatizar, tendo alienado 61% do capital ao consórcio Gateway que, além do preço pago pela aquisição, se comprometeu, e cumpriu, a recapitalizar a empresa e a modernizar a frota.
  • Uma das primeiras e mais emblemáticas, até porque a privatização já tinha tido a oposição do António Costa e da sua base de apoio mais mediática, reversões do novo governo foi a reversão da privatização da TAP, negociada com o consórcio com o objectivo de o estado recuperar uma quota de pelo menos 50% do capital social da empresa.
  • As negociações entre o estado e o consórcio foram coordenadas, primeiro informalmente, depois ao abrigo de um contrato de prestação de serviços com o estado, pelo melhor amigo e padrinho de casamento do primeiro-ministro, o advogado Diogo Lacerda Machado.
  • No fim do processo negocial o consórcio acedeu à alienação de parte das suas acções ao estado de modo a este ficar com 50% do capital, o objectivo confesso do governo na negociação, e o governo concordou com a venda de uma parte do capital do consórcio à companhia chinesa Hainan Airlines - HNA, empresa que tem interesses cruzados com o investidor Stanley Ho, detendo em sociedade com ele uma companhia aérea low-cost de Hong-kong, a HK Express, o que, se era objectivo do governo, era inconfessado.

Numa coincidência notável, os interesses do investidor Stanley Ho, que estiveram activamente na origem da queda da TAP, a quem se associou e de quem se dissociou com mais valias no negócio da VEM, acabaram por ser beneficiados com a autorização do governo actual para entrarem no capital da empresa.

Quem era administrador da Geocapital, e continua a ser, quando foi feito o negócio da VEM, e foi administrador da VEM enquanto a Geocapital foi sua acionista? O advogado Diogo Lacerda Machado, o melhor amigo e padrinho de casamento do primeiro-ministro, o mesmo que negociou o processo que também abriu as portas do capital da TAP aos associados das empresas que dirige. Parece estranho? Muito mais do que parece muito mais do que estranho.

A justiça interessou-se pelo negócio de aquisição da VEM pela TAP, que investigou, mas não se conhecem à investigação quaisquer resultados. De que haja conhecimento público, não há qualquer investigação e decorrer ao negócio da reversão da privatização da TAP. O negócio e a extraordinária teia de interesses cruzados personificada no melhor amigo do primeiro-ministro não parecem suscitar na justiça grandes apreensões. Ou, se suscita, são impecavelmente sublimadas e não chegam a aparecer.

A que se deve esta imunidade milagrosa, que tantos políticos que um dia foram poderosos mas depois de deixarem de o ser se viram agarrados nas teias da justiça, e estou a falar de figuras ilustres como o Duarte Lima, o Isaltino Morais, o Oliveira Costa ou a cereja em cima do bolo, o José Sócrates, por quem a justiça se interessou pela participação em negócios, em muitos dos casos bem mais modestos que estes que enumerei e não são exaustivos do curriculum dele, gostariam de poder ter usufruido e não conseguiram? Será por ter privado com advogados ilustres na sua passagem fugaz pelo mundo da advocacia que lhe ensinaram os truques do ofício que mais ninguém conhece? Será por ter redes de amigos da escola e do partido que intercedem por ele na justiça quando ele se mete em alhadas como ele intercedeu pelo seu camarada? Será coisa de lojas e aventais?

Não sei. O que sei é que ninguém lhe toca.

publicado por Manuel Vilarinho Pires às 19:51
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Quinta-feira, 12 de Maio de 2016

As charadas da justiça

Um caso exemplar.

Finalmente, saiu a acusação do caso dos vistos dourados.

Um ano e meio depois de o caso ter vindo a público e de terem sido feitas as primeiras detenções, a justiça decidiu levar a tribunal 17 acusados, entre eles, um ex-ministro e vários ex-directores ou sub-directores gerais, que usaram os poderes que lhes foram delegados para favorecer irregularmente terceiros, envolvendo crimes de "...corrupção activa e passiva, recebimento indevido de vantagem, prevaricação, peculato de uso, abuso de poder e tráfico de influência...".

Independentemente da maior ou menor solidez dos indícios e provas recolhidos para sustentar cada uma das acusações, pode-se dizer que está a ser um caso exemplar, em que a justiça não recuou perante e estatuto social e institucional dos arguidos.

Ou apenas quase exemplar?

Ou será que recuou?

No decorrer das investigações foram apanhados nas escutas três magistrados judiciais.

O primeiro foi apanhado a tentar convencer o principal arguido, o antigo director do Instituto dos Registos e Notariado, a encontrar entre os candidatos a vistos dourados comprador para um apartamento em Leiria que um familiar queria vender por três milhões de euros (!). Não nos Champs Elysées, mas em Leiria.

O segundo, à época director do SIS, foi ajudar o mesmo arguido a detectar se estava a ser escutado pela justiça, fazendo-lhe um varrimento electrónico no gabinete.

O terceiro limitou-se a, durante um telefonema para meter uma pequena cunha em que o outro o avisou que estava a ser investigado e devia ter o telefone sob escuta, oferecer-lhe, verbalmente, toda a solidariedade pessoal e institucional na investigação de que estava a ser alvo.

Como é de lei, os indícios contra os três magistrados foram extraídos do inquérito original no Tribunal de Instrução Criminal e integrados num inquérito independente do primeiro a correr junto do Supremo Tribunal de Justiça. Esse inquérito acabou por ser arquivado. A defesa do principal arguido no inquérito original aproveitou mesmo o arquivamento deste inquérito autónomo para procurar suscitar a libertação do seu cliente, então ainda em prisão preventiva.

Lições para a jurisprudência?

Em Portugal, juízes podem ajudar altos funcionários investigados por corrupção a perturbar a recolha de prova nas investigações judiciais de que são alvo e podem meter-lhes cunhas para seu enriquecimento próprio, ou, em termos técnicos, cometer perturbação do inquérito na forma consumada e tráfico de influências na forma tentada, sem correrem o risco de serem levados a tribunal com os seus associados no crime.

Debaixo da alçada da lei, vivem acima da lei.

publicado por Manuel Vilarinho Pires às 15:59
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