Domingo, 30 de Setembro de 2018

As inimigas de Kavanaugh

O objectivo deste trabalho é tentar demonstrar que a intervenção do direito penal, a partir de determinada altura, é inócua e não visa cumprir nenhum dos fins a que se propõe e que, no fundo, constituem os fundamentos da sua intervenção legitimadora. A partir desse “tempo”, que pode ou não coincidir com os prazos de prescrição consagrados pelo legislador ordinário, a intervenção do direito penal pode ser violadora dos princípios fundamentais que o legitimam.

 

No direito português, seja civil, penal ou fiscal, existe o instituto da prescrição. E no ponto 4.1 do estudo para que remete o link acima elencam-se as várias teorias que fundamentam a necessidade da sua existência (teorias que, a meu ver, são complementares e não alternativas).

 

O texto, que encontrei na internet por acaso, é prolixo e com frequência desnecessariamente obscuro. Mas são os senhores professores, e ainda bem, que redigem os códigos – um dos problemas que tem a diarreia legislativa avulsa sob a qual vivemos há décadas é que quem a emana tem com frequência formação jurídica deficiente, conhecendo mal o universo jurídico, mesmo quando calha estar na posse de alguns rudimentos de gramática.

 

Os códigos penais reflectem a história do nosso país no âmbito criminal, a sua tradição, as suas longínquas raízes no direito romano, e são tributários das várias doutrinas que foram sucessivamente influenciando as nossas elites no poder, na política e na academia.

 

É possível que haja alguma distância entre o que acham hoje os penalistas e o que acha a multidão; e há um crescente mal-estar entre uma opinião pública cujas chamas de indignação são em permanência reavivadas por uma comunicação social histérica e sensacionalista e as decisões dos tribunais, cujos agentes aplicam leis que a maioria não conhece, não seria capaz de interpretar correctamente, e cujos fins não são, no âmbito criminal, o olho-por-olho de Hamurabi que parte da populaça julga dever ser a Justiça.

 

Apesar de tudo, das doutrinas vai passando alguma coisa para a consciência social; e no nosso modo de ser, como no de outros povos latinos, o puritanismo, felizmente, não medrou, como não medrou a obsessão com o crime e castigo. Temos outras taras mas essas não – são coisas, entre todos, de americanos.

 

É por isso que quando, por causa de uns amassos com uma estagiária na Sala Oval, o presidente Clinton passou as passas do Algarve para não ver o seu mandato cassado, todo o episódio deu uma grande vontade de rir à Europa e América do Sul católicas. Tecnicamente, os amassos não foram o problema, foi ter o presidente mentido a respeito deles; mas, nas nossas velhas sociedades saudavelmente hipócritas, há perguntas que não se devem fazer mas às quais, se forem feitas, só se pode razoavelmente responder com aldrabices.

 

Temos agora um outro episódio lúbrico, que é o do candidato a juiz do Supremo Tribunal Kavanaugh, que terá molestado sexualmente uma rapariga de 15 anos quando tinha 17, em 1982.

 

A ser verdade o que li, isto é, que foi um dos juízes que interrogaram Clinton, e que lhe terá perguntado se se veio na boca de Monica Lewinski, haverá nesta trapalhada uma justiça poética.

 

Fora a poesia, porém, e fora a guerrilha política que fez com que Clinton fosse crucificado por ser democrata (isto é, modernamente, a versão americana de um socialista) e faz com que Kavanaugh o esteja a ser por ser republicano (isto é, de direita), o caso está a ser tratado também aqui não pelo seu lado cómico, não por ser a americanice grotesca que é, mas como mais um episódio da gloriosa luta pela igualdade entre os sexos.

 

O episódio: uma mulher, que durante 36 anos não disse nada, declara, ao tomar conhecimento de que Kavanaugh era candidato ao Supremo, que quando era uma miúda de 15 aquele a molestou sexualmente numa festa. Ouvida no Senado, foi convincente na sua sinceridade quanto descreveu o incidente, e omissa no que toca a provas – circunstanciais, testemunhais ou outras quaisquer. O denunciado nega tudo, em termos igualmente convincentes ainda que, em certo passo, com incontida ou fingida comoção.

 

Que deve pensar uma pessoa com a cabeça em cima dos ombros?

  1. A patente sinceridade de um queixoso é insuficiente para condenar seja quem for seja ao que for. Não apenas não há crimes sem provas como não tem havido falta, desde que a ciência forense incorporou no seu arsenal as provas de DNA, de absolvições de condenados que o foram com testemunhos absolutamente seguros de testemunhas visuais que se vieram a revelar objectivamente falsos;
  2. Trata-se de um julgamento, mesmo que finjam que o não é. Quando homens podem ver prejudicada a sua carreira, e a sua reputação, por causa da acusação da prática de ilícitos graves, estamos a falar de penas. E portanto tudo o que seja menos do que a exigência normal em estados de direito para o processo penal é insuficiente;
  3. Quem é vítima de um crime deve queixar-se. Se não se queixa por achar que a queixa é inútil, ou lhe pode acarretar maiores prejuízos do que o silêncio, não é ainda assim aceitável que, mudadas as circunstâncias, se conserve calada por décadas até ao momento em que a revelação lhe pode trazer vantagens. Sensata era a pergunta que dantes os oficiantes faziam aos convidados na cerimónia do casamento: Quem tiver motivo… que fale agora ou se cale para sempre;
  4. Kavanaugh deve ser nomeado. Se o não for, está encontrada a maneira de impedir, num país em que boa parte do aparelho do poder executivo, judicial e mesmo policial resulta de eleição ou homologação por eleitos, a selecção democrática – basta arranjar queixosas.

Toda esta história nada deveria ter a ver connosco. Mas tem porque as modas americanas chegam cá, e cada vez mais depressa. Ora, a ideia de que a queixa de uma mulher, se for contra o comportamento sexual de um homem, não precisa de mais provas do que as que oferecia um cidadão temente a Deus quando se queixava à Inquisição de um cristão-novo, é uma intolerável deriva dos costumes e um retrocesso civilizacional.

 

É assim que devem ser vistas boa parte das feministas contemporâneas – Torquemadas de saias, em cruzada pela nova pureza de sangre. Mesmo que as não usem, mesmo que reivindiquem às vezes coisas razoáveis, e mesmo que muitos de nós calem o dissenso porque esperamos que a moda passe, porque todos somos filhos de uma mulher e maridos ou amantes de outras, e finalmente porque sem elas o mundo acaba.

 

Mesmo que não acabasse, não teria qualquer interesse. Conviria porém que não o infernizassem.

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publicado por José Meireles Graça às 21:15
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