Deve estar mais ou menos por estes dias a fazer mais ou menos não sei quantos anos um dos episódios mais enigmáticos e emblemáticos do Processo Revolucionário em Curso, o PREC, a entrevista concedida pelo Álvaro Cunhal à jornalista italiana Oriana Fallaci.
[Antes de mais, cabe aqui agradecer ao blogue Porta da Loja, cujo trabalho de investigação recolheu o que há disponível para documentar esta importante entrevista, a cópia da versão integral que foi publicada na revista Paris Match de 28 de Junho de 1975, e sugerir a consulta directamente no blogue às imagens da entrevista, que se conseguem ampliar de modo a ficar perfeitamente legíveis, em Francês, o que para a rapaziada do meu tempo eram favas contadas mas agora é uma língua morta, mas é o melhor que consegui arranjar]
[Mais útil ainda, acabei de descobrir noutro blogue, o Curiosidades de Imprensa e Afins, a estrevista publicada em Português no Jornal do Caso República de 27 de Junho de 1975, de que sugiro a leitura no blogue, onde as cópias das páginas do jornal podem ser ampliadas para um tamanho de letra legível]
A entrevista foi muito importante e muito elucidativa mas, acima de tudo, muito surpreendente, porque, sendo certo que o Álvaro Cunhal foi, podemos dizer que com o António de Oliveira Salazar com alguma benevolência para este último, porque é muito mais duro sê-lo na oposição do que na situação, o político português mais profissionalizado e profissional do século XX, nesta entrevista ele afirmou com uma candura inédita na sua longuíssima carreira o que toda a gente sabia mas ele nunca tinha dito ao público nem podia dizer naquela altura: que estava cá para implantar a ditadura. Porque o fez? Não sei, eu nem sequer sou um intérprete especialmente informado da personalidade e da biografia do Álvaro Cunhal, mas posso especular que, perante uma mulher com uma personalidade forte e fascinante, não resistiu ao instinto do macho ibérico desafiado na sua coutada de se mostrar ainda mais forte e fascinante do que ela tentando impressioná-la através da gabarolice, apresentando-se como o Dono Disto Tudo que tinha estado muito perto de ser mas, naquela circunstância, estava a travar um combate de vida, se perdesse, ou morte, se ganhasse, para continuar a pretender ser. Felizmente para nós, e também para ele, perdeu e o combate acabou por ser de vida para nós, para ele, e para generalidade dos, mas infelizmente não todos, que o combateram. Porque, se o tivesse ganho, muita gente teria morrido mais cedo, e ele próprio não teria certamente chegado vivo à bonita idade a que chegou.
O que disse de importante o Álvaro Cunhal nesta exibição desenfreada de fanfarronice?
Ou seja, e isto continua a ser tão actual no século XXI como nos anos 70 do século XX, que a tolerância dos comunistas pela democracia liberal e pelas liberdades democráticas não passava de um estágio temporário, de um compasso de espera estratégico, no caminho para o socialismo, que as larga logo que deixem de lhe ser úteis (e tenha força para as largar).
Se ele se quis mostrar um galã à fascinante jornalista italiana, acabou por se mostar um facínora, e os poucos que ainda não tinham percebido com as sucessivas intentonas e inventonas, prisões e deportações, fechos de jornais e nacionalizações, que o Portugal do PREC estava nas mãos de bandidos altamente organizados que instrumentalizavam o poder militar e do qual só se conseguiria livrar, também, recorrendo à violência, perderam qualquer ilusão. E a partir daí, não necessariamente por causa de, mas provavelmente com alguma contribuição de, foi o Verão Quente, o só por cima do meu cadáver, as invasões e destruição de sedes do PCP por meios violentos como incêndios e bombas, as mocas de Rio Maior, na sociedade civil, ao mesmo tempo que os partidos democráticos faziam o seu trabalho de construção de equilíbrios no campo político, nomeadamente com os militares não-comunistas, diplomático, negociando apoios com as grandes democracias mundiais que já estavam dispostas a deixar este pequeno país marginal cair nas mãos do comunismo internacional, e popular, organizando manifestações maiores do que as dos comunistas que dominavam a rua.
O resultado deste processo conhecêmo-lo, e Portugal acabou mesmo por se transformar numa democracia do tipo das que existem na Europa, e a história chegou mesmo tornar irrelevante o qualificativo Ocidental quando toda a Europa se libertou das ditaduras comunistas que governavam a Oriental. Mas nunca chegámos a descobrir ao certo o que teria acontecido se os comunistas tivessem mantido o controlo do PREC e tivessem passado do degrau da democracia liberal para o da ditadura do proletariado. E ainda bem que não descobrimos.
O que diria Cunhal numa entrevista subsequente se tivesse ganho? Nunca soubemos, mas temos agora uma oportunidade de perceber. A Vanezuela está há muitos anos a atravessar um Processo Revolucionário em Curso que correu com alguma tranquilidade, o que não significa que não houvesse presos políticos, alguns assassinatos, censura e apropriação dos meios de produção e comunicação social pelo Estado, enquanto o dinheiro do petróleo o alimentou. Mas, como é sabido, o socialismo dura até se acabar o dinheiro dos outros, e com o petróleo mais barato e o controlo da economia pelo Estado a economia simplesmente ruiu, e com ela a sociedade. Mas não o sistema político socialista.
No meio deste processo de degradação do que antes era mantido pelo dinheiro do petróleo que deixou de chegar de fora, o regime venezuelano cometeu o mesmo erro que os sectores mais progressistas das forças armadas afectos aos comunistas tinham cometido em 1975: aceitou organizar eleições livres, ou tão livres quando possível num regime que mantém os opositores mais notáveis na cadeia (em 1975 era o MRPP que estava quase todo na cadeia e foi impedido de se candidatar) e controla toda a comunicação social. E o resultado foi o mesmo: as forças de direita ganharam as eleições com uma maioria esmagadora e conquistaram mais de dois terços dos lugares no parlamento, suficientes para, entre outras coisas, alterar a constituição e reconfigurar o regime, democratizando-o no sentido de o aproximar de uma das tais democracias que existem na Europa com liberdades democráticas e, como lhes chamava o Cunhal, no que parece um exercício de humor por toda a organização económica socialista se basear sempre em monopólios do Estado, monopólios.
Como é que o regime venezuelano resolveu este problema bicudo? Recorrendo a um truque jurídico genial. Os juízes do Supremo Tribunal, o Constitucional lá do sítio, que tinham sido nomeados pelo regime socialista e seriam gradualmente substituídos ao longo da legislatura, à medida que os seus mandatos fossem terminando, por novos juízes escolhidos pela nova maioria de direita [atenção, isto não significa que os juízes portugueses não sejam totalmente isentos e independentes do poder político e dos partidos, assunto que não me interessa desenvolver aqui], demitiram-se em bloco e foram substituídos, in-extremis, ainda pelo velho parlamento de esquerda imediatamente antes da tomada de posse do novo parlamento com maioria de direita, para mandatos com a duração da legislatura, desse modo blindando o supremo contra a entrada de juízes designados pela nova maioria que tinha acabado de ser eleita. Com o supremo completamente seguro em boas mãos, todo o poder legislativo do parlamento, que tinha legitimidade constitucional até para mudar o regime, foi esvaziado. E o regime, aprendendo com o erro de ter permitido realizar eleições mais ou menos livres, entrincheirou-se e radicalizou-se.
Como?
Tendo-se o PCP também entrincheirado e tendo feito durante o PREC mais ou menos tudo o que deve ser feito para assegurar a tomada do poder e que, noutras revoluções como a venezuelana, resultou, e tendo a oposição venezuelana também feito mais ou menos o mesmo que fez a oposição democrática portuguesa durante o PREC, não é fácil perceber porque é que a revolução bolivariana na Venezuela foi um sucesso que permitiu mesmo a eternização, que talvez se venha a revelar efémera mas até este dia é sólida, do poder pelos socialistas e a portuguesa foi um fracasso em que o poder acabou por desaguar nas mãos dos democratas?
Não tendo recebido a graça da Fé, o mais sobrenatural em que eu consigo acreditar é na mão invisível que nos faz chegar a comida ao prato apesar de o talhante só querer enriquecer à nossa custa, e sendo completamente incapaz de formular uma hipótese em que o divino possa ter tomado um papel determinante na derrota dos comunistas e na vitória da democracia na revolução portuguesa, só posso mesmo especular que elas se devem à resistência, incluindo armada e até terrorista, mas essencialmente da atitude de intolerância anti-comunista absoluta da maioria do povo português, às mocas de Rio Maior?
Se calhar foi, e se calhar podemos ter esperança de, se um dia outras formas de revolução socialista nos montarem um cerco, nem que seja por via da imposição pela força do politicamente correcto, elas voltarem a ser retiradas das estantes onde actualmente estão expostas como objectos decorativos para voltar a defender a, não há que ter receio nem hesitação a usar este termo, Liberdade.
E, quase a terminar, volto a lamentar que a Constituição da República Portuguesa, por um erro estúpido decorrente do medo em que se vivia na época em que foi redigida, tenha proibido no nº 4 do Artigo 46º, não todas as organizações que perfilham ideologias totalitárias, mas apenas a que perfilham a ideologia fascista, abrindo as portas da permissividade a todos os fascismos que têm outras designações, a começar pelo fascismo socialista.
E acabo com uma sugestão. Da próxima vez que os proprietários das mocas de Rio Maior as retirarem da estante para lhes limparem o pó e as voltarem a expôr, talvez valha a pena relembrarem uma das frases mais actuais da entrevista ao Álvaro Cunhal:
PS: e por falar nisso, os estatutos do BPI sempre se blindaram? A Altice sempre vai ser impedida de transferir trabalhadores? Just asking...
O primeiro-ministro António Costa, que está sempre com um olho no burro e outro no cigano, disse a propósito da doação do espólio do escritor José Saramago à Biblioteca Nacional:
A primeira parte da frase, "José Saramago pertenceu a uma geração a quem a escrita foi muitas vezes reprimida, a quem o Estado quis calar e censurar...", é inteiramente verdade. Tal como Benito Mussolini pertenceu a uma geração de antifascistas, os que tinham a idade dele e que ele mandava regularmente perseguir, sovar, prender, torturar e matar, José Saramago pertenceu a uma geração de escritores censurada e, nalguns casos, perseguida pelo regime salazarista. O que não foi o caso dele, no entanto, que nunca teve obras censuradas. Mesmo na autobiografia publicada no site da sua fundação verifica-se uma única ocorrência da palavra censura, não para qualificar uma recusa do regime salazarista em publicar de uma obra dele ou a sujeição do seu conteúdo a alterações forçadas para permitir a publicação, mas a opção do governo Cavaco Silva de não a indicar para um prémio literário internacional, o que terá atentado mais contra a vaidade do que contra a liberdade do escritor.
Sublinhar esta pertença deste escritor a esta geração de escritores censurados é, por assim dizer, uma boleia gratuita, ou free ride, como dizem os ingleses. Hábil e até compreensível num político manhoso que sempre soube arregimentar apoiantes e pagar-lhes bem, em honras, prebendas ou em contado, mas verdadeira, em boa verdade.
A última parte da frase, "...é uma última homenagem à liberdade", é que já é mais discutível. Misturar na mesma frase uma das mais nobres palavras, liberdade, com o nome de um facínora esbirro do estalinismo que, quando lhe foi dado algum poder e teve a sua oportunidade de mostrar a fibra de que era feito, durante a tentativa de tomada do poder pela força pelo partido onde militava, que falhou mas esteve muito perto de ter sucesso, censurou, saneou e violentou jornalistas, o que não apenas não define um defensor da liberdade, mas comprova mesmo a acção de um carrasco da liberdade, é uma disfuncionalidade cognitiva.
É que, se houve algum contributo do José Saramago para a liberdade em Portugal, foi justamente o de, durante o PREC, ter exemplificado como poucos outros ao que vinha exactamente o PCP, o que tinha na manga para oferecer aos portugueses nos domínios da liberdade e da democracia, e, exactamente por isso, ter desempenhado um papel preponderante de estímulo e encorajamento à contra-revolução com que, nos últimos meses do PREC, e depois de se terem contado os votos das primeiras eleições e percebido a real representatividade das diversas forças políticas que era diametralmente diferente da aparente na rua e nos jornais, o país retribuiu aos comunistas com alguma violência o amor que eles dedicavam à sua liberdade.
Se a disfuncionalidade cognitiva do António Costa é genuína, se ele acredita mesmo nela, ou simulada, se ele não acredita mas recorre a ela para recompensar os bons serviços de quem o apoiou em combates eleitorais, está por se saber? A segunda hipótese parece mais plausível, dado o comprovado sentido ético do primeiro ministro e a sua velha e vasta tradição de premiar os seus apoiantes políticos, e a primeira chega a parecer aberrante. Mas só surpreende quem nunca viu o modo como ele lida com os jornalistas, em público ou em privado. O modelo de gestão Saramago é bem capaz de corresponder ao seu sentido de liberdade de opinião e de imprensa.
Cabe-nos a nós permanecermos atentos e deixarmos claro que a liberdade não precisa de homenagens de facínoras esbirros de ditaduras, e muito menos de homenagens a eles.
Exceptuando um processo judicial de cobrança de uma dívida comercial de que fui autor, e ganhei, se bem que depois não tenha conseguido receber a dívida, porque as sentenças judiciais que determinam o pagamento de dívidas, ao contrário das criminais, não são de acolhimento obrigatório pelos réus, nem a justiça faz nada para os encorajar a cumpri-las, e alguns familiares com profissões judiciais, não tenho tido ao longo da vida grande exposição directa ao mundo da justiça, nem como magistrado, nem como operador judicial, nem como cliente, activo nem passivo. E estou muito bem assim, como se prova adiante.
Pelo que a minha estatística é provavelmente tendenciosa, porque meramente baseada nos casos que chegam aos jornais. E, nos casos que chegam aos jornais, a justiça portuguesa parece ter o hábito de deter arguidos à quinta-feira, e levá-los para outra cidade, para serem presentes ao juiz de instrução apenas na sexta, depois de trazidos de volta à cidade de origem, pelo que uma noite na prisão nunca ninguém lhes tirará, quando não na segunda ou terça seguintes, mantendo-os presos durante quase uma semana. Por vezes, rumores não confirmados sugerem que nem banho podem tomar nem mudar de roupa durante esse dia ou dias de espera.
Existem certamente alguns bons motivos para, em circunstâncias muito específicas, um magistrado ordenar a detenção imediata de arguidos antes do dia em que tem preparação ou disponibilidade para os interrogar, fazendo-os passar uma ou mais noites na prisão: evitar a consumação de um crime iminente; ou a fuga de um arguido; ou a destruição de provas. Mas, noutras circunstâncias, não consigo imaginar motivos que não sejam uma desprezível falta de respeito pelos direitos dos cidadãos e, acima de tudo, pela liberdade dos cidadãos.
Nestes casos a detenção antes de tempo parece uma praxe destinada a integrá-los no sistema prisional, habituando-os desde a primeira hora do seu processo, ou de antes da primeira hora se se considerar início do processo o primeiro contacto com o magistrado à ordem de quem são detidos, à privação de liberdade, não para cumprimento de uma pena judicial que só foi decretada depois de correr um processo nos termos exigidos pela lei e pelos princípios do estado de direito, nem sequer com uma medida de prisão preventiva decretada de acordo com as exigências legais para a sua aplicação, que de facto são nenhumas, mas adiante, mas por um mero acto administrativo para os manter disponíveis para quando o magistrado tiver preparação, ou disponibilidade, ou vontade para os receber.
Uma praxe que denota que, na sua hierarquia de valores, ou por natureza, ou por formação profissional, ou até por deformação profissional, estes magistrados colocam a liberdade (dos arguidos) atrás da conveniência administrativa (dos tribunais) ou até da (sua própria) conveniência pessoal. Além de parecerem pouco esforçados a tentar montar uma operação logística, que raramente será tarefa impossível, que garanta a audição dos arguidos sem os ter feito antes passar pela prisão.
Uma praxe violenta para quem, ao contrário deles, coloca a liberdade acima dos valores usados para fundamentar estas privações de liberdade pré-penais e até pré-processuais, para não falar de quem é forçado a passar a sua primeira noite, ou série de noites, na prisão, que, vista de fora, não parece uma coisa muito diferente de ser sequestrado por bandidos.
Mas, como eu não sou comunista, nem sindicalista, nem judeu, fico aqui bem caladinho. Desta vez calhou aos Comandos. Mas eu também não sou Comando. Oxalá não me calhe um dia a mim.
Nas democracias burguesas neoliberais, os bloquistas organizam acampamentos "Liberdade" onde, para desafiar os papéis do género, as casas de banho binárias são substituídas por balneários LGBTQIA+ onde as meninas ficam admiradas por ver meninos a olhar para elas, certamente por não lhes terem ensinado nas aulas de educação sexual, que é onde essas coisas agora são ensinadas, que os rapazes gostam de ver mulheres nuas, e onde se podem desconstruir algumas ideias tocando em pessoas do mesmo género.
Nos regimes socialistas, organizam acampamentos "Trabalho Forçado".
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