Eu vou ser sincero: o Arnaldo Matos foi o grande educador da classe operária mas já deixou de ser. Primeiro, porque a classe operária acha que não precisa de mais educação do que tem, principalmente desde que a CM TV chegou ao cabo, e quer que os pretendentes a educá-la se fodam. Segundo, porque a moda actual para a educação da classe operária é mais à base de engraçadinhas, ou de evangelizadores de Coimbra, e ele de engraçadinha nunca teve nada, e de evangelizador já deixou de ter há décadas. Em todo o caso, grande educador da classe operária em Portugal é apenas o Arnaldo Matos, e mais nenhum.
Assente isto, passemos ao que interessa. Um dos problemas mais apaixonantes que se colocam ao cientista político actual é a compreensão da relação entre as duas alegadamente mais velhas profissões do mundo, a prostituição e a política. Os avanços na investigação empírica sugerem que a chave da reposta está no lobbying, que vou passar a designar por lobismo para poupar nos b e nos y, mecanismo através do qual políticos que é suposto servirem o interesse público se colocam ao serviço de interesses privados organizados que nem sempre são coincidentes com ele, onde alguns detectam analogias com a prestação de favores sexuais a troco de favores materiais no exercício da prostituição. Há sistemas políticos em que o lobismo é legal, por exemplo no sistema político americano onde é permitido e os lobistas registados exercem uma profissão altamente regulada em que todos os contactos que mantém com políticos, desde o pequeno-almoço de negócios, à mensagem de correio electrónico, à reunião formal, são registados e tornados públicos, assim como todos os donativos e doadores aos políticos e aos partidos, tornando possível cruzar a informação sobre a eventual prestação de favores políticos com a da eventual retribuição através de favores materiais, e sistemas onde o lobismo, por ser moralmente condenável, não tem existência legal nem regulamentação, como é o caso de Portugal, pelo que não há contactos entre lobistas, que não existem, e políticos, e as retribuições, a existirem, têm de ser feitas de modo informal.
Dado isto, vamos recorrer a um estudo de caso para ver se conseguimos responder à pergunta:
A reposta teórica é fácil: a nenhum.
Em Portugal não há lobismo. Ponto final. E, mesmo que houvesse, os governos de esquerda distinguem-se dos de direita por, ao contrário destes, que têm no seu ADN o benefício dos interesses dos ricos e dos poderosos em detrimento dos das classes trabalhadoras, e o lobismo ser o mecanismo ideal para eles manifestarem os seus interesses para serem servidos pelos governos, os renegarem para defender o bem comum que coincide com os interesses destas. Duplamente nenhum.
E a resposta real? Vamos confirmar empiricamente.
Ao calhas sorteamos uma notícia do Público, jornal insuspeito de pretender denegrir o governo socialista, sobre um processo legislativo do governo. Por exemplo, uma notícia sobre a legalização e regulamentação até ao final do ano da UBER. E vamos lá procurar cedências, que já sabemos que não existem, a lobis. Para simplificar a análise vamos ignorar que a legalização da UBER sujeita a regulação possa ser ela própria uma cedência ao lobi da UBER, e iniciar a leitura anotada da notícia.
Os motoristas da UBER têm que se constituir como pessoas colectivas e, por isso, ter contabilidade organizada. Uma cedência ao lobi dos Técnicos Oficias de Contas.
Os motoristas da UBER que, toda a gente percebeu, tinham lacunas graves na formação comparativamente com os motoristas de taxis, têm que ir para a escola de condução aprender. Uma cedência ao lobi das escolas de condução, que aliás se junta à recém anunciada obrigatoriedade da frequência de uma escola de condução para se poder revalidar a carta aos 65 anos. Duas para a escolas de condução.
Os governantes, que têm tipicamente jornadas de trabalho de pelo menos 16 horas, impedem os motoristas, mesmo que trabalhem por conta própria formalmente em nome da sua própria empresa unipessoal, de trabalhar mais de 6 horas seguidas. Para a protecção dos consumidores, porque já se sabe que motoristas da UBER cansados significa consumidores mal servidos e, se levantarem a bola, injuriados e agredidos. It happens all the time. Uma cedência ao lobi dos sindicatos.
Uma cedência ao lobi da DECO, associação fundada pelo secretário geral da ONU e por camaradas seus de partido, e gerida pendularmente por socialistas ou bloquistas, que impulsionou e é sócia fundadora dos centros de arbitragem de conflitos de consumo. Que acresce à obrigatoriedade recente de todos os comerciantes, prestadores de serviços e instituições financeiras aderirem aos mesmos centros. Duas para a DECO.
Uma cedência ao lobi da ACAP. Carros novos, nada de usar o Bentley clássico para transportar turistas, nada de reconverter o velho fogareiro para o usar ao serviço da UBER, nada de dar ao cliente da UBER a possibilidade de escolher o modelo de carro que pretende requisitar para o transportar.
Deste modo será mais fácil aos taxistas identificarem os carros ao serviço da UBER para os poderem vandalizar sem correrem o risco de vandalizar carros de particulares que não têm nada a ver com o negócio e que tanta impopularidade lhes têm trazido. Uma cedência ao lobi dos taxistas.
Uma cedência ao lobi das companhias de seguros.
Uma cedência ao lobi dos centros de inspecção.
Assim à primeira vista não conseguimos detectar neste decreto cedências do governo do António Costa a mais do que oito lobis, coisa pouca que comprova indubitavelmente que os socialistas defendem ferozmente os interesses dos cidadãos contra os interesses instalados.
Mesmo assim, pode haver quem, malevolamente, veja nestas raras e insignificantes cedências alguma prestação de favores a estes interesses instalados, apesar de serem desconhecidas quaisquer retribuições aos autores do decreto na forma de favores materiais, por exemplo, cedências de apartamentos no edifício Heron Castilho.
Temos portanto um dilema, e para resolver dilemas não há como recorrer aos clássicos, e o Arnaldo Matos, apesar de ter deixado de ser o grande educador da classe operária, nunca deixará de ser um clássico. E o que disse o Arnaldo Matos logo na primeira hora da formação deste governo e da maioria de esquerda que o sustenta? Disse "Política de esquerda esta? Isto não é política de esquerda. Isto é tudo um putedo!".
O Arnaldo Matos sabe-a toda e topou-os à légua. Depois não digam que ele não os avisou.
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