Maria João Avillez tem nome no jornalismo: entrevista há décadas meio mundo da política e escreveu abundantemente sobre os pais da pátria democrática. Invariavelmente, porém, perde um tempo infinito com a pequena história, porque não imagina outra. Podemos estar certos de que, se tivesse entrevistado Churchill, não quereria saber o que pensava ele do Império Britânico, do qual foi um tempo diligente soldado, e sua ruína, mas antes quantos charutos fumava por dia; e se Salazar, não sobre a herança futura de uma sociedade sem anticorpos para o esquerdismo, mas sim se era verdade a história do galinheiro em S. Bento a vender ovos para a vizinhança e se namorou ou não namorou realmente com Christine Garnier.
É uma fórmula de sucesso. Toda a gente quer conhecer a intimidade e as humanas fraquezas dos poderosos; e a poucos interessa o papel que cada notável desempenha no processo histórico, as consequências para a comunidade das escolhas que fez, e os paralelos com situações pretéritas.
Pois bem: há dias saiu no Observador uma entrevista com Lobo Xavier, o conhecido senador do comentariado, a propósito da transferência de canal do vetusto programa Quadratura do Círculo. E raras vezes uma tão completa e natural sintonia, entre entrevistado e entrevistador, se fez patente.
É impossível não gostar de Lobo Xavier, desde logo porque o próprio gosta de toda a gente, além de ser inalteravelmente cortês. Na entrevista, manifesta simpatia pelos colegas do programa, por Portas, Pires de Lima, Cristas, a nova geração do CDS, Francisco Mendes da Silva, Adolfo Mesquita Nunes, Passos Coelho, traça rasgados elogios a Marcelo, Deus lhe perdoe… e não tem uma palavra simpática para Jerónimo, ou Catarina, ou as manas Mortágua, decerto porque Maria João não se lembrou de o levar para aí.
Gostar de toda a gente não é muito diferente de não gostar de ninguém. E mesmo que se atribua esta generosidade ao catolicismo que serve de norte espiritual a Xavier, a que junta um feitio amável, resta que não é possível, se se tiver um módico de lucidez sobre o estado do país e os caminhos que trilha, deixar de verberar acerbamente a tropa fandanga que nos pastoreia e desde logo o par de colegas no programa: Pacheco Pereira, uma esponja de más leituras progressistas que vai debitando como se fossem pérolas de sabedoria; e Jorge Coelho, o manhoso e simpático aguadeiro de serviço do PS, que desmente a alegação do entrevistado da independência dos três em relação aos respectivos partidos. A urbanidade do trato e os laços de amizade resistiriam a um exercício de rigor? Duvida-se.
Portugal, hoje, mostra sinais de esgotamento: O Estado está mais obeso do que nunca, o controlo do défice (fruto da dura lição que a troica deu, e que o PS, benza-o Deus, interiorizou) foi conseguido, além de evidente martelanço, à custa do aumento de impostos, a somar ao brutal de Vítor Gaspar, e de uma retoma de mais que duvidosa sustentabilidade. O país apenas cresce por arrasto, e menos do que os outros. Isto está preso por arames, dizia há tempos Daniel Bessa, com brutal sinceridade.
E todavia no único momento da entrevista em que Lobo Xavier disse alguma coisa de substantivo sobre a situação política exprimiu-se assim: “Acho até que se a direita, as direitas, não se comprometem com a redução da desigualdade não têm futuro”.
É extraordinário. Há mais de quatro décadas que todos os partidos prometem a redução das desigualdades, apenas diferindo no modo de a alcançar, pelo que se estranha que os denodados esforços empreendidos não tenham ainda sido suficientes. E em nome deste meritório objectivo se destruíram os grandes grupos económicos que existiam antes dos Cravos, cuja reconstituição apenas se fez, e parcialmente, com endividamento e com o nascimento de empórios de mercearia; e se aumentaram os impostos sobre o rendimento de forma demencial. Em consequência do que, associado à expansão imprudente do Estado assistencialista e patrão, se alienaram ao exterior sectores monopolistas da economia e se criaram condições para a banca ser quase toda estrangeira, enquanto gente profunda diz, melancolicamente, que em Portugal há falta de capital. Pois há, mas sobra igualdade.
Estaria a falar da igualdade dos cidadãos perante a lei, aquela que a Direita consistente defende, hoje comprometida mais do que nunca com os preços absurdos no acesso à Justiça? Ou dos poderes inquisitoriais da Autoridade Tributária, que reduzem a pó os direitos de cidadania àqueles cidadãos que têm a desdita de ser apanhados pela máquina impiedosa e acéfala do Estado predador? Não, estava a falar de igualdade no sentido que a esquerda dá à palavra, isto é, a pilhagem dos ricos para ficarmos todos remediados na teoria, e pobres na prática.
A Direita que levanta bandeiras de esquerda, sob pretexto de que vai à missa e tem bom coração, essa é que não tem futuro. Porque o eleitor hesitante prefere, e bem, os originais às cópias hipócritas.
Não sei quem inventou, para dar o pendão retroactivo para o 25 de Abril, o mote dos três dês. Não vou falar aqui da democracia (que acho, ao contrário de muito reformador social que anda por aí, um relativo sucesso), nem da descolonização, que é de todo o modo um processo encerrado. Mas de desenvolvimento estamos conversados: ainda há dias um estudo concluía que em breve estaremos em quinto lugar, em termos de rendimento por habitante, a contar do fim, dentro da EU, tendo perdido seis lugares em apenas quase duas décadas. Apesar da chuva de 79.000 milhões da EU e de a dívida no mesmo período ter explodido.
É disto que se tem tratado, sequer como pano de fundo, na defunta Quadratura e se vai tratar na futura Circulatura (raio de nome), a partir de 7 de Fevereiro? Claro que não. Aquilo é malta porreira, trata de coisas porreiras, e dos sucessos do António, e dos deslizes do António, o ex-colega que utilizou o programa para sanear o concorrente Seguro, primeiro, e perder as eleições ganhando o governo depois, e dos asneiróis semanais do Poder, que criticam com tolerância porque a política é isto: um jogo de grupos de pessoas, do qual, com gosto, fazem parte.
A política não é isto, e por isso a Quadratura há muito tempo deixou de ser um programa de debate. Pode ser que dure mais um ano ou outros catorze anos. Mas está moribunda, como o regime.
Não se conhece o conjunto de erros que levou a que umas pessoas fossem encaminhadas pela GNR, em Pedrógão Grande, para uma estrada onde morreram queimados.
Supõe-se que o Ministério Público esteja a investigar. Mas aquela instituição trabalha em segredo, o nome dos responsáveis pelas averiguações é geralmente ignorado, não há memória de algum magistrado se ter alguma vez justificado publicamente pelos processos a seu cargo não chegarem a parte alguma em tempo útil, nem muito menos por um grande número de acusações, após anos de diligências, não desembocarem em condenações.
Isto é assim porque os magistrados são independentes, isto é, não investigam assim ou assado, deixam de investigar, acusam desta ou daquela maneira, em obediência a ordens; obedecem à sua consciência e às leis.
Que fosse de outra maneira seria, no nosso país, um perigo; e que, sendo assim, se esperem resultados positivos, uma quimera.
Os magistrados envolvidos nesta teia, se perguntados, dirão fatalmente que lhes faltam pessoal e meios; e que o nosso direito é demasiado garantístico, razão pela qual investigar e acusar são caminhos eriçados de escolhos.
É o que diz qualquer burocracia ineficiente; pior se os burocratas estiverem recobertos pelo anonimato e pela inimputabilidade; e a diminuição das garantias não é mais do que reclamam, em qualquer lugar, as polícias, para suprirem a sua incapacidade.
Como se desenlaça este nó cego não sei; e acho que já faço muito se enquadrar correctamente o problema.
Somente me ocorre que, se fosse PGR, não mobilizaria magistrados para se ocuparem de quanto processo o governo, ou a comunicação social, me despejassem no colo, mas apenas daqueles que tivessem alguma dignidade penal; não mobilizaria pessoas e meios sem uma dose razoável de probabilidade de chegar a algum lado; e exigiria que, em processos que afectem a paz pública, o magistrado responsável fosse conhecido e desse contas à comunicação social, periodicamente, da evolução do seu trabalho.
Neste caso de Pedrógão um inspector ou polícia eficiente chegaria rapidamente, pelo menos no caso das ordens da GNR, a conclusões. Não essencialmente para deduzir acusações que de toda a maneira viriam a dar, por inexistência de dolo, absolvições ou penas suspensas; mas para que, percebendo-se quem falhou e porquê, se pudessem tomar medidas correctivas.
Como as coisas estão, o famoso segredo de justiça apenas serviu para adensar as suspeitas, a primeira das quais é desde logo que a entrega do processo de investigação ao MP apenas tinha o propósito de o enterrar nos vagares daquele pântano. A quase totalidade da opinião pública tem, pela classe política, com boas e más razões, um grande desprezo; e a parte da opinião que não tem antolhos nutre pelo desprezível primeiro-ministro que nos pastoreia uma justificada aversão, muitíssimo bem traduzida por José Manuel Fernandes neste artigo, e por Paulo Tunhas noutro.
Suspeitas então de quê? De que nesta clamorosa falência do Estado, naquilo em que as suas funções são absolutamente necessárias, alguns membros do Governo, e desde logo Costa e os seus boys, tenham uma responsabilidade apreciável, insusceptível de ser disfarçada por tudo o que sucessivos governos deixaram de fazer ou fizeram mal.
O perigo é real. Daí que o presidente da República pretenda pôr uma surdina na contestação, que lhe pode estragar os planos do remanso que deseja para a sua presidência, que imagina coincidir com o progresso e o bem-estar do país; e daí que dos suspeitos do costume surjam vozes teatralmente indignadas com a suposta falta de sentido de Estado e das proporções que o PSD, com o CDS a reboque, adoptou perante o assunto.
Até aqui tudo dentro da relativa normalidade de um governo anormal. Mas onde se percebe que António Costa deve estar a sentir as barbas calculistas a arder é no facto de o coro de corifeus da Situação se ver engordado com vozes teórica e nominalmente da Oposição.
Destas, a mais saliente é Lobo Xavier. E mesmo que à hora em que escrevo a Quadratura do Círculo ainda não tenha ido para o ar, já uma televisão subserviente, e uma imprensa obsequiosa, antecipam o que aquele prócere da opinião, e dos negócios, vai dizer.
Que Lobo Xavier é, tanto como os outros dois comparsas do programa, e talvez até mais do que Coelho, um amigo do "António", não é segredo; e que por causa dessa ligação alinhe quase sempre nos ataques a Passos Coelho, e nas loas à governação socialista, também. Pessoas compreensivas e desenganadas como eu pensarão que num país em que o Estado está na maior parte da economia, e o Governo se confunde com o Estado, ser frontalmente contra faria talvez um grande bem à coluna vertebral, mas um grande mal aos negócios: suponho que não se possa num dia dizer que o ministro xis é um incompetente, e no seguinte telefonar-lhe para desencravar um processo.
Há porém limites: O PSD e o CDS devem pedir desculpa?!
Do PSD sei apenas que certamente o faria todos os dias, se seguisse o conselho de Pacheco Pereira. Do CDS, do qual Lobo Xavier é figura de referência, militante histórico, e suponho que conselheiro, não imagino que o faça ou sequer mencione Xavier senão para dizer, se perguntado, que as opiniões de Xavier apenas vinculam Xavier.
Já eu, que sou apenas um filiado quase anónimo, não-histórico, e conselheiro apenas de quem tenha interesse em comprar frigoríficos industriais, diria, se perguntado, que não supunha que no meu partido chegasse um dia em que uma figura de referência me fizesse corar de vergonha ̶ e indignação.
Nos meus dois posts anteriores informei com humildade a que actividades dediquei a ponte e o feriado do 25 de Abril, num dia passeando na cidade com o nariz no ar, com a tranquila certeza de não topar com manifestações, porque já não há, e no outro carregando cestos de compostagem.
O meu verdadeiro 25 de Abril, porém, foi a 26, um dia memorável. O BPI, uma instituição daninha, trespassou-se para Espanha. E do novo gestor, Pablo Forero, que não conheço, posso dizer o que o palhaço Tiririca dizia de si mesmo, pedindo o voto: pior não fica!
O dia não foi perfeito: Fernando Ulrich, um ser pertencente à multímoda espécie humana, sobre cujas qualidades me pronunciei inúmeras vezes (aqui e aqui, por exemplo) recebeu uma indemnização de 465,5 mil euros, em vez das 100 chibatadas que mais adequadamente coroariam a obra que deixou em herança, para não falar do risco de continuar a poluir as instalações da sede com a sua presença remunerada; Santos Silva, uma conhecida rolha do regime, que pelo menos uma vez já honrei com a atenção que não merece, também junta uma prebenda às que já tem, ficando como presidente honorário e a presidir a uma nova comissão dedicada à responsabilidade social. Seria desejável que, em troca do estipêndio que decerto irá receber, e que o artigo, por pudor, omite, fizesse um voto de silêncio. Mas não, é de presumir que se venha a aliviar junto da comunicação social dos lugares-comuns que o tema da responsabilidade social haverá de inspirar naquela calculista cabeça - as rolhas, como é sabido, não afundam.
E falta ainda Lobo Xavier, um histórico do CDS que vai vice-presidir a não sei quê e que, da Quadratura do Circulo, um programa que por inércia continuo a ver, não cessa de gabar as virtudes da geringonça, os méritos de Costa, a habilidade política de Costa e a bondade dos novos caminhos que imprimiu ao país em geral, e à banca em Portugal. Sim, percebo.
Pode de tudo isto inferir-se que detesto esta gente? Claro que não, que ideia: eu, Ulrich, odeio, Santos desprezo e para Xavier guardo a secreta admiração que sempre tive por videirinhos.
Blogs
Adeptos da Concorrência Imperfeita
Com jornalismo assim, quem precisa de censura?
DêDêTê (Desconfia dele também...)
Momentos económicos... e não só
O MacGuffin (aka Contra a Corrente)
Os Três Dês do Acordo Ortográfico
Leituras
Ambrose Evans-Pritchard (The Telegraph)
Rodrigo Gurgel (até 4 Fev. 2015)
Jornais