O Partido Socialista já foi o partido de gente
agora, desde que o António Costa tomou o partido à bruta, mas de quem nasce bruto não se pode esperar diferente, é um partido de fantoches e ventríloquos, patetas em funções de responsabilidade sem preparação nem dignidade para as assumir e que não sabem o que hão-de dizer a papaguear o que lhes dizem para dizer outros patetas em funções de responsabilidade sem preparação nem dignidade para as assumir e que também não sabem o que hão-de dizer mas têm ascendente sobre os primeiros para os fazer dizer aquilo que lhes mandam dizer. Nivelados pelo chefe, e exibindo como única competência a de tentarem ser tão ordinários como ele.
Um esgoto a céu aberto.
O Mário Soares que morreu há dias não me era uma personagem simpática. O meu Mário Soares, que tinha aplaudido num comício no estádio das Antas, o equivalente nortenho do da fonte luminosa, veio com o tempo a gastar o capital de simpatia que a minha juventude dedicou fugazmente ao partido Socialista, primeiro, e depois quase só ao próprio.
Por alturas da adesão à CEE já o seu europeísmo feroz me causava urticária; ainda sorri interiormente com a guerra que moveu a Cavaco, um político daninho que desperdiçou a oportunidade - o primeiro a fazê-lo - de reformar seriamente o Estado que dez anos de esquerdismo haviam transformado no principal obstáculo ao desenvolvimento do país; e mesmo antes de lhe conhecer o lado obscuro e ainda por explicar das negociatas de Macau e outros lugares já via nele o socialista típico, capaz de fazer tudo e o seu contrário para comprar votos com o expediente de imprimir dinheiro, podendo, e de pedir emprestado quando tal prática deixou de ser possível.
Como disse, por exemplo, aqui, Mário Soares "declinou na sua importância com a adesão à CEE, já tinha cumprido a maior parte do seu papel quando chegou a Presidente da República, e morreu no fim do seu segundo mandato. Os episódios das candidaturas falhadas a presidente do Parlamento Europeu (cuja concorrente insultou) e de novo à Presidência da República, aos 80 anos, fazem parte da decadência".
Resta porém que num momento crucial da nossa história esteve à altura; e não é nada certo que se não fosse ele teria sido outro qualquer. Outro qualquer, por exemplo Sá Carneiro, não teria conseguido federar todas as aversões ao Partido Comunista, por lhe faltar a aura de esquerda e de combatente anti-salazarista; e outro qualquer socialista, por exemplo Salgado Zenha, não teria a lucidez, nem a determinação, nem a vontade, nem a lata, de ao mesmo tempo defender o socialismo, as nacionalizações, a Constituição e toda a parafernália da revolução, então cara a uma parte significativa do eleitorado, enquanto curava de granjear o apoio da Igreja Católica, dos seus amigos da Internacional Socialista, dos Estados Unidos e do povo do Norte, que abominava os vermelhos.
Ganhou. E por ter ganho posso, e pude sempre, tranquilamente aliviar-me destas opiniões e doutras que me dê na veneta, na certeza de que não corro quaisquer riscos.
Talvez venha a ser preciso, se Rui Ramos tiver razão, um Mário Soares, de direita, para o século XXI. Por mim, estaria disposto a perdoar-lhe a ambição sem freio, a vaidade sem limite, o descaso dos amigos que se lhe atravessem no caminho, o amor dos charutos, das viagens, da boa vida, até mesmo a venalidade, se a ela ceder, desde que nas ruínas da UE, no naufrágio do Euro, e no oceano da dívida, preserve a liberdade.
Existirá esse homem? Porque a circunstância talvez venha.
O primeiro-ministro António Costa foi para a Índia pôr a render politicamente as suas raízes étnicas.
O guião consiste em encantar os indianos como o menino prodígio que chegou ao ocidente e se tornou primeiro-ministro, e encantar os portugueses como o primeiro-ministro que trouxe do oriente ouro, incenso e mirra na forma de exportações, investimento, competências tecnológicas e imigração dourada. Tanto uma como a outra parte do guião são ficcionadas, porque ele nem da parte oriental de Lisboa provém, e isto sem entrar na deselegância de comentar o modo como ele ascendeu a primeiro-ministro quando um primeiro-ministro está no estrangeiro em visita de estado, e a Índia está muito longe de precisar de abrir novas portas de entrada no ocidente para a sua economia, actualmente até a Jaguar é uma marca de automóveis pertencente a uma multinacional indiana, mas a ideia de base é boa é um guião inegavelmente bom, e foi a base da superprodução da longa-metragem, de seis-dias-seis de duração, que está neste mesmo momento a ser projectada.
Azar dos azares, mal se iniciou a projecção, faleceu o Mário Soares que, para o bem e para o mal, foi a pessoa mais determinante para o percurso que fizemos nos últimos cinquenta anos da nossa História, e as televisões fizeram zapping da Índia para a superprodução das suas cerimónias fúnebres e foram invadidas por legiões de entertainers a dizerem coisas mais para se fazerem recordar do que para recordar o falecido e a participarem em concursos de disparates onde muitos socialistas e parceiros de percurso se têm distinguido pela sua capacidade ímpar, se bem que já conhecida e reconhecida, de os dizer, pelo que seria injusto destacar nomes. E, entre as reacções iniciais, as cerimónias propriamente ditas, e o rescaldo que se seguirá, os seis dias de antena em que era suposto assistirmos em directo às maravilhas e realizações da visita do António Costa à Índia vão ser ocupados com o funeral do Mário Soares.
Ou por sentir que o dever não lho permitiria, mesmo que vontade não lhe faltasse, ou por mero calculismo político para não deixar fugir a oportunidade de facturar os resultados potenciais da visita à Índia, o António Costa decidiu manter o programa da visita em vez de regressar e protelá-la para outra ocasião ou de a interromper, nem que fosse por um dia, para vir ao funeral. Preferiu manter a sua participação como protagonista na superprodução da visita à Índia que passa no canal Arte, que quase ninguém vê, em vez de aceitar um papel de actor secundário na do funeral do Mário Soares que passa na CM TV, que quase toda a gente vê. Onde aceitou, no entanto, fazer uma breve aparição como artista convidado através do Skype.
Não sei se fez boa escolha. Nem me interessa. Entre os disparates que ele tem uma capacidade inegável de dizer e os que a generalidade dos outros socialistas e compagnons de route têm dito, venha o diabo e escolha. Por mim, até podia ficar na Índia.
Experimente o meu bom amigo escolher um jardim público, subir a uma banquinha, e daí exercer os seus "direitos de cidadania" e de "participação política activa" expressando ameaças de morte, apelando à violência contra o Governo e o Presidente da República, e insultando os juízes e magistrados de "malandros" para baixo. Vamos ver durante quanto tempo o deixam lá ficar.
Mas se o seu nome for Mário Soares, a seguir ainda espera o reconhecimento da Pátria pela sua "coragem", o seu "desassombro" e a sua "determinação". Não existe "coragem" quando não há risco, e Soares não tem neste momento rigorosamente nada a perder. O que existe é desconsideração, raiva fanática, e irresponsabilidade.
Mário Soares escavacou nos últimos anos uma reputação política importante, sabendo muito bem o que fez, o que disse, e o que faz; António Costa resolveu homenageá-lo, entendendo que os cidadãos de Lisboa mereciam ter neste comportamento um exemplo; o CDS não concordou, nem podia concordar.
Aparentemente o dr. Mário Soares censurou o Governo porque se “meteu num grande sarilho” com Ricardo Salgado, ao ter-se “intrometido” no BES e no GES, e avisou: “Quando ele falar, e vai falar, as coisas vão ser diferentes”.
Na reportagem que a RTP vai transmitir, durante o Telejornal de hoje, prometem-se “depoimentos” de outros beneméritos, uns defendendo Salgado e outros apontando o dedo a quem lhe tornou a vida menos fofa.
No dia em que o assunto chegar aos tribunais, e vai chegar, Soares falará em “governos de juízes” e dirá dos magistrados que se estão a pôr “em bicos dos pés” – como disse toda a vida sempre que a justiça incomodou algum dos seus quadrilheiros. E nesse sentido, só nesse, as coisas não vão ser diferentes.
Considera-se um pensador, apesar de ter sido um estratega e um homem muito agradável sempre que a lisonja lhe servia os objectivos. Não está disposto a abdicar de um poder que já ninguém lhe reconhece, nem sequer dentro do partido. Rodeou-se de uma corte de intriguistas fracassados, porque os intriguistas com talento não precisam dele nem lhes sobra tempo para visitas de cortesia. Reune-se, pública e periodicamente, com um conjunto de aduladores que se penduram no seu passado político como se o prestígio fosse transmissível por contágio. O nome de Mário Soares atesta, julgam eles, uma virtude "humanista" no currículum de muitos cavalheiros. E assina artigos de opinião - numa prosa baixa, rude, desabrida e pesada, sem cor nem recursos linguísticos, com o garbo de um carroceiro e o estardalhaço de um sarilho na taberna.
Nunca suportou ser contrariado. Quando se candidatou à presidência do Parlamento Europeu (e perdeu para Nicole Fontaine), disse que os deputados tinham preferido votar numa "dona de casa". E há uns meses (não muitos), quando azulado de cólera apelou à violência contra o Governo e o Presidente da República, guardou uns insultos para os comentadores que não gostaram. Nunca admitiu que o fizessem para expressar uma discordância legítima, em resultado de uma inteligência própria e de uma diferente interpretação dos acontecimentos. Discordaram, escreveu Mário Soares, para "especular", "ao serviço do poder", e "para ganhar dinheiro".
Em 1986, quando se candidatou pela primeira vez à Presidência da República, Mário Soares chamou as "notabilidades" da época. Do mundo do futebol falou-se de muita gente, mas o mais "notável" (lembro-me bem, porque já me repugnava pelos projectos medonhos que desenhava) foi Tomás Taveira, que andava em namoro com a direcção do Benfica por motivos de um estádio, e encheu tempos de antena com aquele paleio aldrabão e cabelos soltos, pose marialva, frente ao ascoroso edifício das Amoreiras.
Eusébio não apareceu. Nem nessa altura nem noutra, porque Eusébio sempre fez - muito bem - o que lhe coube, e nunca falou de política. Competiu em partidas de futebol, porque era a sua profissão; e em protagonismo com o dr. Mário Soares, sem esforço e sem vontade, porque Soares não conseguiu associar-se ao seu nome nem conseguiu interpretar as coisas de outra maneira. O rancor foi ganhando volume naquela vaidade sem medida, e nenhuma oportunidade é melhor para aplicar um golpe no adversário do que apanhá-lo... morto.
Aconteceu hoje. O espectáculo repelente não desiludiu ninguém: foi baixo, como é marca do artista, vingativo como um filho mimado; vil como a sua prosa, confundindo (Soares sempre confundiu) coragem com desconsideração; ambíguo como julga que é próprio da alta política; cobarde como há muito não se via - mesmo em Portugal.
Soares disse que Eusébio era "modesto", "pouco instruído", "com pouca cultura", e "não se esperava dele que fosse um pensador". Fosse Eusébio comunista, ou lunático do PREC, e Soares (dominados os maus fígados) tê-lo-ia bajulado com encómios estremecidos, exigindo que o seu peito não descesse a enterrar sem uma dose apreciável de quinquilharia dourada - por serviços à Pátria. Mas Eusébio distinguiu-se no desporto, onde o mérito é possível de medir. Sabe-se (nenhum letrado contesta) que não está no mesmo plano das proezas intelectuais.
A Al Jazeera e a CNN dedicaram-lhe reportagens. O Governo decretou, pela morte de Eusébio, três dias de luto nacional. No facebook houve logo quem se mostrasse desagradado. Quem pensa que os "humanistas" se distribuem pelos partidos, pelas "plataformas", pela "academia" e pelos fiéis das "ciências" sociais - é porque nunca deu uma volta no facebook, onde o "humanismo" (solto das limitações e dos compromissos de quem tem responsabilidades políticas) mostra os contornos extravagantes que atingiu, em níveis estratosféricos de pureza e intensidade. Um "humanista", quando "sério", opõe-se ao "populismo" e não engole um herói do futebol. Herói que é para ser respeitado tem de vir do "pensamento", dos "valores", da "cultura", ou da "revolução". Naquela arrogância de beatos, na admiração analfabeta pela "academia", no orgulho da virtude que se atribuem para se sentir maiores, e nos feitos dos outros sempre encontrar insuficiências, gostam da "igualdade" teórica, conceptual. Amam a "igualdade" enquanto for abstrata, enquanto for "nobre", e por isso intangível, saco para todas as recusas. Detestam o fenómeno real, que os agarra pelos pés e os faz descer do paraíso seguro das "ideias", onde nada os compromete, à imundície banal das pessoas - esses animais que os esperam, matreiros, vulgares, e mal cheirosos, com toda a espécie de riscos. Um "humanista" casto não digere um herói popular, acima de tudo, porque um herói popular nunca precisou de um "humanista" - nem nunca deu conta que ele existisse.
O país vai unir-se numa homenagem a Eusébio - sentida, franca, e grata. Será comovente. Não é obrigatória.
Daqui a meia centena de anos não haverá ninguém que se lembre, por ter sido contemporâneo, do 25 de Abril, do que se lhe seguiu, da luta para evitar a russificação, da descolonização, da amarração de Portugal à jangada europeia, das personagens.
Sobre o que houver então o nosso passado e presente de agora projectarão sombras. E será o tempo dos historiadores: nunca se entendeu o presente, e muito menos se pôde futurar seja o que for, sem memória, uma verdade como um punho que muito cultor de ciências sociais ignora.
O futuro especialista do Portugal do último quarto de século e do primeiro deste tropeçará fatalmente em Mário Soares, por causa da descolonização, do regime democrático e da adesão europeia; e não tropeçará, com o mesmo grau de importância, em mais nenhum actor. Goste-se ou não se goste, é assim.
Não é porém do Mário Soares histórico que quero falar: esse declinou na sua importância com a adesão à CEE, já tinha cumprido a maior parte do seu papel quando chegou a Presidente da República, e morreu no fim do seu segundo mandato. Os episódios das candidaturas falhadas a presidente do Parlamento Europeu (cuja concorrente insultou) e de novo à Presidência da República, aos 80 anos, fazem parte da decadência.
Mário Soares não soube envelhecer. Deixou de entender o mundo que o rodeia, que não aceita, e a procura de um lugar ao sol da notoriedade e importância têm-no levado a lançar mão de todos os recursos de velho manhoso do jogo político, capaz de todos os truques e cambalhotas, a ponto de hoje os seus amigos (ou os que ele assim julga) serem em boa parte inimigos de ontem, que o aproveitam como alavanca.
A idade, que lhe retirou lucidez, acrescentou-lhe à desvergonha: Soares acha que pode incitar à violência, nomear-se procurador do poder local, gesticular na defesa da "cultura" e tachar todos os que não veem o momento presente da mesma forma estreita, obsoleta, facciosa e economicamente analfabeta que é a sua, como "especuladores da comunicação social, ao serviço do Governo" e "ao serviço do poder, para ganhar dinheiro".
Portas? "Um artista"; Cavaco? "Aconselhe-se com a esposa, que, como antiga professora, tem cultura".
É esta a prosa chula que assina num artigo prolixo e desenxabido no Diário de Notícias.
Nenhum homem é um grande homem para o seu criado de quarto, disse Eça algures, citando não sei quem. O Soares homem público de hoje perdeu há muito a grandeza e o que decerto já lá estava ficou exposto à comiseração de todos e ao aplauso da esquerda obtusa, para que se possa ver o que só alguns criados conheciam e alguns inimigos adivinhavam.
Aqui há uns tempos, Otelo, quando apanhava um microfone a jeito, coisa que infelizmente deixou de suceder, recomendava aos camaradas que se sublevassem para aumentarem o pré e construírem a sociedade socialista. Quando era mais novinho, também não desdenhava umas bombas e uns atentados, que a Reacção sempre precisou que se lhe cortasse a cabeça, a fim de aprender a viver.
Isto está tudo meio esquecido, e o próprio não se esforça: bem podia agora dar um salto à Aula Magna, para ajudar à sublevação pré-revolucionária de forma mais consentânea com a idade e os hábitos, visto que os sediciosos na versão hodierna usam gravatas, entendem muito de leis e são inclusivos.
É provável que fosse recebido com uma salva de palmas, tanto mais entusiásticas quanto menos falasse. Que este símbolo vivo do PREC tem, em relação à estátua que talvez um dia lhe erijam, esta desvantagem de abrir a boca.
Isto digo eu, que sou ingrato e maledicente, como qualquer bom português. Já os ingleses, trespassados de admiração e inspirados decerto pela obsessão de Otelo com bombas e revoluções, resolveram homenagear-lhe respeitosamente o nome para designar o síndroma do amor explosivo, uma doença rara que, pelos vistos, atinge as filhas da Ilha.
Não me atrevo a recomendar às entidades competentes uma designação adequada para a síndroma de que sofrem os totós que são objecto das atenções destas mulheres.
Mas sempre vou dizendo que aturar pacientemente as birras gagás dos que teimam em não ver que o tempo deles passou careceria talvez de uma designação científica -síndroma tuga, por exemplo. Exagero?
Mário Soares sofre, aparentemente, de incontinência verbal, porque ultimamente espuma, sem medida, propósito viável ou equilíbrio, baba e ranho contra o Governo.
Isto desperta ondas de entusiasmo aprovador nos membros da seita que fundou, satisfação oportunista nas outras mais à esquerda, e alguma difusa aprovação no resto da opinião pública, misturada com comiseração: o homem está xéxé, mas di-las boas.
Sucede que não está xéxé, nem as diz boas - apenas lhe trocaram o País, a Europa, o Mundo e os dirigentes: o país que podia alargar sem cessar os benefícios do Estado Social, porque nem o aumento da dívida externa nem o da pública assustavam os financiadores, por trás do biombo do Euro; a Europa que deitava um olho benevolente, e abria uma bolsa generosa, à construção de um estado moderno e europeu, a rasgos de legislação evoluída, europeia e socialista, mesmo quando sob a égide de um partido dito de direita; a economia de serviços, em que os aparelhos vinham da China, a fruta de Espanha ou da África do Sul, e para nós ficava apenas a investigação, a alta tecnologia, o turismo de qualidade e os produtos de alto valor acrescentado (que o Estado, através de um lúcido e avançado sistema de ensino, e o patrocínio de ninhos de empresas viradas para o futuro, faria brotar); a Cultura alimentada a subsídios; o acesso à propriedade da maior parte dos agregados familiares, e ao consumo sofisticado da maior parte dos cidadãos, que uma banca avançadíssima facilitava; os nossos amigos Mitterrand, Delors, Kohl, estes e os antecessores, todos os grandes estadistas que criaram a fada que se transformou num monstro e que Soares conheceu e dos quais se imaginava amigo e igual - morreram.
Morreram de morte matada pela globalização, a demografia, o endividamento acéfalo, a crise de 2008 e um longo etc. No que estamos agora é no salve-se quem puder.
Soares não reconhece o mundo actual, não percebe o que se passou e quer, como todos os velhos (até eu, que sonho passar férias em Freamunde de há 50 anos) a juventude perdida. Mas a incapacidade de perceber não vem da idade, vem-lhe das convicções socialistas e europeístas, às quais dedicou a vida. Pode lá ser que a receita que sempre aliviou as dores, curou as maleitas, enriqueceu o médico, tenha deixado de funcionar?
Pode: o medicamento foi, lentamente, corroendo o canastro, e viciando o doente; e, além do mais, tornou-se demasiado caro. Agora é o tempo dos endireitas.
É pena que os endireitas sejam tão canhestros. Mas não adianta resmungar - é o que há. E os médicos à antiga também nunca souberam muito de medicina - nós é que éramos novos.
Se, no google maps, se procurar "rua Mário Soares", encontram-se resultados na Póvoa de Lanhoso, em Pias (Lousada), Vila Pouca de Aguiar e Vagos; se a procura for por "avenida", a colheita é Abrantes, Oeiras e Chaves. De praças ou pracetas, nada, e nada também para travessas.
Isto é estranho: que eu em 1975 já trabalhava e era atento, e se não estive na Fonte Luminosa estive nas Antas e tenho bem presente quem liderou o movimento de resistência anti-comunista. E mesmo que seja verdade, se for, que o PCP recuou na 24ª hora para evitar uma guerra civil; ainda que, se Soares não existisse, outro desempenhasse o papel; mesmo que a nossa localização geográfica, a importância da Igreja, a existência de numerosos pequenos proprietários e empresários, e uma já razoável classe média, tudo se conjugasse para inviabilizar uma revolução tão obsoleta como o partido e satélites que a impulsionavam, nem por isso Marocas deixará de ter o seu lugar na História - uma meia-página se a História for concisa, que é mais do que está reservado às outras personagens que nos povoam a memória da época.
Se Soares, cuja marca está tão presente no Portugal desde então, se vê escassamente representado na toponímia, isso é porque, depois do seu papel de herói civil no Verão Quente de 1975, nunca foi mais do que um chefe partidário como os outros, e como os outros votado à experimentada desconfiança e desprezo que os Portugueses reservam aos seus líderes. Ah!, tivesse ele morrido providencialmente, e o País inteiro estaria coberto com urbanizações e pontes e pavilhões multi-usos com o seu nome. E dir-se-ia hoje, com um encolher de ombros desalentado e soturno: se Soares fosse vivo, nada disto teria acontecido.
Sucede porém que, com diferenças de grau e de estilo em relação aos colegas da arena política, o Portugal que Soares quis e para o qual trabalhou, é o Portugal que temos: europeu do Sul nos costumes, atento, venerador e obrigado a internacionalismos vários, bem-pensante, com uma diplomacia ágil e competente na chupice de fundos, abrigado debaixo de uma Constituição surreal que garante os direitos económicos de todos desde que os nossos parceiros e os ricos paguem.
No Portugal de Soares, a chuva e o bom tempo vêm do Euro, da UE, do Estado patrão e do Estado investidor; e como, subitamente, o Euro se revelou um fato apertado a uns e solto a outros, curto ou comprido nas mangas, e de forma geral de mau corte, por ser a moeda de uma raça de trabalhadores disciplinados nos dias úteis, e borrachões de fim-de-semana; como a UE é um conjunto suspeito de instituições desacreditadas, recheadas de funcionários parasitas e metediços, afogados em privilégios e tretas; como o Estado patrão alargou o número de dependentes até ao infinito, para garantir votos para os eleitos do dia; e como, na pele de investidor, cobriu os montes de ventoinhas, as esquinas de abastecedores para carrinhos eléctricos, e as escolas maternais de computadores para ver as aventuras do Noddy - a bonanza durou o tempo que durou o crédito.
É aqui que estamos. O Governo que temos, desastradamente embora, quis pôr ordem na tourada. Pôr ordem na tourada quer dizer fazer marcha-atrás. E fazer marcha-atrás é o nosso caminho inelutável, o da UE e o do papel dos Estados - tudo aquilo em que Mário Soares acredita, e a que dedicou a vida.
É a esta luz que se deve interpretar o que se passou na Aula Magna: todos os que lá estiveram querem evitar o inevitável, embora nem todos pelas mesmas razões. E, se me é permitido, mil vezes o velho discurso republicano, jacobino e socialista do homem que, mais do que outro qualquer, é responsável pela abjecção a que o nosso País chegou, do que os arroubos líricos do Professor Sampaio da Nóvoa, que não tem a desculpa de ter uma obra a defender nem uma vida de fé que as consequências abalam todos os dias, mas é reincidente nestas lides.
O homem está xéxé, dizem-me próximos. Não está não, digo eu: tem o mesmo síndroma de Cunhal, que manteve a fé no céu terreno mesmo depois da queda do muro de Berlim.
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