Pessoalmente considero o juiz que faz acordãos a citar a Bíblia um distúrbio social, não por citar a Bíblia nem por ter uma visão troglodita do papel dos homens e das mulheres na sociedade, mas por citá-la e usar as citações para oferecer a agressores domésticos uma imunidade que a lei não lhes oferece e que com frequência tem sido usada por eles para escalar as agressões até ao assassinato das mulheres queixosas. Penso que não sou o único a pensar assim.
Mas ao ameaçar processar criminalmente todos os que o criticam ele está afinal a assumir uma utilidade social: está a revelar que em Portugal a liberdade de opinião é limitada quando o alvo da opinião são magistrados judiciais que, ao contrário do que acontece quando os criticados são políticos ou polícias ou outros cidadãos quaisquer e as críticas que lhes fazem são julgadas por magistrados que não fazem parte da sua classe, julgam dentro da classe as críticas que lhes fazem. Ou da casta.
E está também a dar-lhes uma (última?) oportunidade para mostrar que estão na Justiça para servirem a justiça e não para se servirem a si próprios protegendo-se uns aos outros. Será o teste de algodão.
Veremos se estão à altura do desafio.
Pergunta-se: Devem os juízes poder ser representados por um sindicato, mesmo que o disfarcem sob a capciosa, para não lhe chamar hipócrita, designação de "associação"? Não, não devem; e seria decerto útil saber se os "cerca de 2100" associados que são reivindicados no site respectivo existem realmente e, existindo, quantos estão filiados por causa das iniciativas úteis de carácter profissional e informativo que a Associação prossegue e quantos reclamam os direitos típicos de um sindicato, em particular o direito à greve.
Do ponto de vista jurídico o assunto foi tratado numa série de posts de Vital Moreira, dos quais o último é este, e mesmo que não fique a matéria encerrada ̶ outros juristas terão, como é normal em Direito, outro entendimento, e desde logo os juízes que se prestam publicamente ao desempenho do papel de sindicalistas, e os que os apoiam - há pelo menos cobertura doutrinária e legal para, pura e simplesmente, se proibir não apenas o direito à greve mas a própria existência de associações de magistrados com carácter sindical.
A razão para a existência de sindicatos é conferir ao empregados a força que estes isoladamente não têm para se opor a abusos dos patrões que perante aqueles estão, ao menos teórica mas com frequência também praticamente, numa situação de força. Isto em abstracto, que em Portugal há outras razões, incluindo históricas, que nem por serem evidentes são mais confessáveis.
Ora, os magistrados não fixam nem a sua remuneração nem as suas regalias e condições de trabalho - quem o faz é sobretudo a Assembleia da República, que se auto-regula neste aspecto, isto é, legisla em causa própria.
Mas as coisas, num regime de separação de poderes, não podem ser de outra maneira: não pode a Assembleia da República julgar nem os juízes legislar. E seria forçar o senso e a experiência de vida defender que há, entre deputados e juízes, algum grau, mesmo que ténue, de dependência destes em relação àqueles.
Não há: todos os deputados que já foram alguma vez julgados pela prática de ilícitos foram-no por juízes, mas nunca nenhum juiz foi julgado senão pelos seus pares; os deputados legislam como entendem e pagam por isso um preço sob a forma de sanção eleitoral, mas os juízes decidem como entendem e não pagam por isso qualquer preço porque são, e têm de ser, irresponsáveis.
O Governo, e dentro deste o ministro da Justiça, pode evidentemente fazer alguma coisa em favor ou desfavor dos magistrados. E é ao primeiro-ministro que se dirige uma senhora juíza Maria Manuela Paupério, numa carta a meu ver muitíssimo mal redigida, reivindicando "medidas concretas que garantam, entre outros aspetos, o aumento do suplemento salarial de exclusividade, a progressão na carreira, o reforço das garantias de independência e a articulação com a nova organização dos tribunais".
Não faço ideia de quais são as garantias de independência dos juízes que carecem de reforço, e menos ainda de que articulação se fala (articulação de quê ou de quem com o quê ou com quem?), mas não fosse a suspeita de que no essencial do que estamos a falar é do vil metal, e ficaria alarmado: a independência dos juízes é uma pedra angular de um Estado de Direito, e se ela, a independência, para não ser posta em causa carecesse do aumento de um suplemento salarial, estaríamos mal, muito mal.
Sucede que a queixa a Costa incide principalmente sobre a ministra da Justiça:
"Em tudo aquilo que envolvesse impacto orçamental, por mínimo que fosse, a Senhora Ministra apresentou-se completamente manietada na sua capacidade de decisão. Chegou ao limite de se tornar constrangedor assistir, em reuniões havidas, a funcionários das finanças ou da administração pública negarem à frente da Ministra a possibilidade de concretização de soluções que a própria assumia como viáveis e equilibradas. Será que não podemos dialogar ao nível dos órgãos de soberania? Temos que nos sujeitar ao veto de funcionários administrativos?"
Olhe, senhora juíza, um ministro que não cede a reivindicações salariais porque não quer prejudicar equilíbrios orçamentais (que aliás ainda nem sequer existem), a mim, merece-me respeito; e qualquer diálogo "ao nível dos órgãos de soberania" que ignore a condução da política orçamental, e que a tache de "veto de funcionários administrativos" - não. Porque o Governo (mesmo este, com a legitimidade duvidosa que tem, e a sua particular inépcia, sobre a qual não há dúvida nenhuma) governa em nome do Povo; e os juízes julgam em nome do Povo - mas não em causa própria.
Exceptuando um processo judicial de cobrança de uma dívida comercial de que fui autor, e ganhei, se bem que depois não tenha conseguido receber a dívida, porque as sentenças judiciais que determinam o pagamento de dívidas, ao contrário das criminais, não são de acolhimento obrigatório pelos réus, nem a justiça faz nada para os encorajar a cumpri-las, e alguns familiares com profissões judiciais, não tenho tido ao longo da vida grande exposição directa ao mundo da justiça, nem como magistrado, nem como operador judicial, nem como cliente, activo nem passivo. E estou muito bem assim, como se prova adiante.
Pelo que a minha estatística é provavelmente tendenciosa, porque meramente baseada nos casos que chegam aos jornais. E, nos casos que chegam aos jornais, a justiça portuguesa parece ter o hábito de deter arguidos à quinta-feira, e levá-los para outra cidade, para serem presentes ao juiz de instrução apenas na sexta, depois de trazidos de volta à cidade de origem, pelo que uma noite na prisão nunca ninguém lhes tirará, quando não na segunda ou terça seguintes, mantendo-os presos durante quase uma semana. Por vezes, rumores não confirmados sugerem que nem banho podem tomar nem mudar de roupa durante esse dia ou dias de espera.
Existem certamente alguns bons motivos para, em circunstâncias muito específicas, um magistrado ordenar a detenção imediata de arguidos antes do dia em que tem preparação ou disponibilidade para os interrogar, fazendo-os passar uma ou mais noites na prisão: evitar a consumação de um crime iminente; ou a fuga de um arguido; ou a destruição de provas. Mas, noutras circunstâncias, não consigo imaginar motivos que não sejam uma desprezível falta de respeito pelos direitos dos cidadãos e, acima de tudo, pela liberdade dos cidadãos.
Nestes casos a detenção antes de tempo parece uma praxe destinada a integrá-los no sistema prisional, habituando-os desde a primeira hora do seu processo, ou de antes da primeira hora se se considerar início do processo o primeiro contacto com o magistrado à ordem de quem são detidos, à privação de liberdade, não para cumprimento de uma pena judicial que só foi decretada depois de correr um processo nos termos exigidos pela lei e pelos princípios do estado de direito, nem sequer com uma medida de prisão preventiva decretada de acordo com as exigências legais para a sua aplicação, que de facto são nenhumas, mas adiante, mas por um mero acto administrativo para os manter disponíveis para quando o magistrado tiver preparação, ou disponibilidade, ou vontade para os receber.
Uma praxe que denota que, na sua hierarquia de valores, ou por natureza, ou por formação profissional, ou até por deformação profissional, estes magistrados colocam a liberdade (dos arguidos) atrás da conveniência administrativa (dos tribunais) ou até da (sua própria) conveniência pessoal. Além de parecerem pouco esforçados a tentar montar uma operação logística, que raramente será tarefa impossível, que garanta a audição dos arguidos sem os ter feito antes passar pela prisão.
Uma praxe violenta para quem, ao contrário deles, coloca a liberdade acima dos valores usados para fundamentar estas privações de liberdade pré-penais e até pré-processuais, para não falar de quem é forçado a passar a sua primeira noite, ou série de noites, na prisão, que, vista de fora, não parece uma coisa muito diferente de ser sequestrado por bandidos.
Mas, como eu não sou comunista, nem sindicalista, nem judeu, fico aqui bem caladinho. Desta vez calhou aos Comandos. Mas eu também não sou Comando. Oxalá não me calhe um dia a mim.
Um caso exemplar.
Finalmente, saiu a acusação do caso dos vistos dourados.
Um ano e meio depois de o caso ter vindo a público e de terem sido feitas as primeiras detenções, a justiça decidiu levar a tribunal 17 acusados, entre eles, um ex-ministro e vários ex-directores ou sub-directores gerais, que usaram os poderes que lhes foram delegados para favorecer irregularmente terceiros, envolvendo crimes de "...corrupção activa e passiva, recebimento indevido de vantagem, prevaricação, peculato de uso, abuso de poder e tráfico de influência...".
Independentemente da maior ou menor solidez dos indícios e provas recolhidos para sustentar cada uma das acusações, pode-se dizer que está a ser um caso exemplar, em que a justiça não recuou perante e estatuto social e institucional dos arguidos.
Ou apenas quase exemplar?
Ou será que recuou?
No decorrer das investigações foram apanhados nas escutas três magistrados judiciais.
O primeiro foi apanhado a tentar convencer o principal arguido, o antigo director do Instituto dos Registos e Notariado, a encontrar entre os candidatos a vistos dourados comprador para um apartamento em Leiria que um familiar queria vender por três milhões de euros (!). Não nos Champs Elysées, mas em Leiria.
O segundo, à época director do SIS, foi ajudar o mesmo arguido a detectar se estava a ser escutado pela justiça, fazendo-lhe um varrimento electrónico no gabinete.
O terceiro limitou-se a, durante um telefonema para meter uma pequena cunha em que o outro o avisou que estava a ser investigado e devia ter o telefone sob escuta, oferecer-lhe, verbalmente, toda a solidariedade pessoal e institucional na investigação de que estava a ser alvo.
Como é de lei, os indícios contra os três magistrados foram extraídos do inquérito original no Tribunal de Instrução Criminal e integrados num inquérito independente do primeiro a correr junto do Supremo Tribunal de Justiça. Esse inquérito acabou por ser arquivado. A defesa do principal arguido no inquérito original aproveitou mesmo o arquivamento deste inquérito autónomo para procurar suscitar a libertação do seu cliente, então ainda em prisão preventiva.
Lições para a jurisprudência?
Em Portugal, juízes podem ajudar altos funcionários investigados por corrupção a perturbar a recolha de prova nas investigações judiciais de que são alvo e podem meter-lhes cunhas para seu enriquecimento próprio, ou, em termos técnicos, cometer perturbação do inquérito na forma consumada e tráfico de influências na forma tentada, sem correrem o risco de serem levados a tribunal com os seus associados no crime.
Debaixo da alçada da lei, vivem acima da lei.
Sim, Meritíssimos? Mas não pode ser.
Não pode ser porque não é concebível a existência de funcionários públicos que ganhem mais do que o seu chefe máximo, que é precisamente o Primeiro-Ministro. Ou, se acharem que o PM, por não ser funcionário público, não serve de referência - ficamos pelo ordenado de Director-Geral.
Ai não são funcionários públicos, são magistrados, e portanto o limite deveria ser o do mais alto magistrado, que é o Presidente da República?
Perdão mas também não pode ser: o Presidente da República não tem sindicato, mesmo que lhe chame Associação Sindical, não pode declarar greve, e portanto tem que ganhar mais do que os senhores juízes, senão ficaria numa situação de inferioridade. Então o mais alto tem menos direitos e ainda por cima teria ordenado igual - aos mais baixos? Vossas Excelências decerto não defendem esta grande injustiça, para não falar do princípio de não sei quê, que a Constituição consagra.
Portanto, na qualidade de vossa entidade patronal (é certo que em comandita com outros 9.999.999 sócios) sugiro que, em alternativa:
i) Reivindiquem o aumento do ordenado do PM, para apanharem a boleia;
ii) Extingam o sindicato;
iii) Fechem a matraca.
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