Quinta-feira, 18 de Agosto de 2016

O trotskismo flower-power

Não fosse o hábito irresistível do Bloco de Esquerda para reescrever a história, e quase seria surpreendente vê-lo a travestir o festival de Woodstock de memória bloquista.

Mas de uma esquerda radical que cresceu inspirada nas ditaduras comunistas, tanto mais selvagens quanto mais genuínas se reclamavam, ou mais genuínas quanto mais selvagens conseguiam ser, mas hoje pede meças em social-democracia a um Willy Brandt, um Olaf Palme ou um Sá Carneiro, que, com o estado social, foram a principal muralha da resistência europeia à penetração das suas ditaduras comunistas, tudo é de esperar. O travesti histórico é o seu património genético.

Percebe-se que para o marketing bloquista dirigido ao segmento de mercado "juventude rebelde", talvez um dos mais significativos e certamente o mais promissor dos segmentos de mercado do Bloco de Esquerda, porque dá votos no futuro, é interessante e vantajoso associar Woodstock aos acampamentos "Liberdade" onde proporciona aos jovens muita discussão sobre modos de vida "alternativos", organização de experiências LGBTQIA+ e casas de banho mistas.

Mas há diferenças abissais a separar o Bloco de Esquerda da geração do flower-power.

A primeira é que Woodstock foi em 1969, e o acampamento "Liberdade" de 2016 foi em 2016.

A liberdade e o pacifismo de Woodstock podem inspirar os bloquistas de 2016, mas em 1969 não inspiravam os "bloquistas" de então, os trotskistas, os maoistas, os estalinistas mais puros que os outros estalinistas, ou outros idiotistas, que se inspiravam sim na repressão selvagem das diversas modalidades de ditaduras comunistas alternativas à soviética que então existiam ou se ambicionavam, da China à Albânia, tanto mais selvagens quanto mais exóticas, cujo auge veio a ser atingido uns anos mais tarde na utopia agrária do Camboja khmer vermelho liderado, aliás, por um dirigente educado para a revolução em universidades europeias, em França. A juventude bloquista de então não queria a paz, se bem que apreciasse o pacifismo da juventude americana como se apreciam os idiotas úteis que atrapalham ou bloqueiam o inimigo, queria vencer, pela deposição unilateral das armas do outro lado, a guerra que, no Vietname, aliás, acabou mesmo por vencer. E admirava e praticava a anulação de liberdade individual e da personalidade própria dos comunismos, tão magnificamente personalizada na sujeição "voluntária" à auto-crítica pública. Até a música detestava, ou por ser um símbolo de alienação burguesa, ou por ser um negócio, havendo mesmo revolucionários mais puros, como o Pacheco Pereira, que confessam que nem Zeca Afonso ou José Mário Branco conheciam, porque só ouviam os discos revolucionários ou étnicos da etiqueta "Le Chant du Monde". Tivesse havido em qualquer país comunista algo semelhante a Woodstock, milhares de jovens a juntarem-se para curtir três dias de sexo, drogas e rock and roll, e teriam sido chacinados como burgueses alienados à metralha, a tiro de canhão ou mesmo à bomba. E os sobreviventes condenados à re-educação prescrita a quem tinha comportamentos desviantes do socialismo, porque no socialismo isto eram comportamentos desviantes. Por mais que hoje em dia baptizem os seus acampamentos com nomes como "Liberdade", não apagam da memória que nasceram para a política a detestar a liberdade e a lutar contra ela. E perderam, pelo menos até agora.

Outra, e mais fundamental, é que tudo o que, quase 50 anos depois, ainda é debatido em grupos de trabalho ou de discussão, analizado, escalpelizado e experimentado desde que devidamente enquadrado e hierarquizado num quadro teórico qualquer, naquela circunstância era simplesmente vivido.

A geração de Woodstock não se distinguia pela retórica sobre o seu modo de vida, distinguia-se pelo seu modo de vida. Não debatia os prós e os contras da droga ou do amor livre ou do rock and roll, drogava-se porque se sentia bem a fazê-lo, fodia com quem lhe apetecia porque se sentia bem a fazê-lo, e ouvia e curtia a música daqueles com quem se identificava porque se sentia bem a fazê-lo. Não andava a tentar mudar as pessoas para as levar a mudar o mundo, limitavam-se a mudar ela própria e a lutar pela liberdade de se mudar a si própria. As mulheres que tomavam banho nuas em público podiam ignorar os rapazes que olhavam para elas ou convidá-los para tomarem banho com elas, mas não faziam queixa à organização por se sentirem incomodadas por ter rapazes a olhar para elas. Não havia, aliás, "organização" dos comportamentos, havia apenas autenticidade. E, quase 50 anos depois, este conceito de liberdade individual e de personalidade própria ainda continua a não ser percebido pelo Bloco de Esquerda que, quando tem iniciativas legislativas sobre coisas como o consumo de drogas, à liberalização, que faz de cada indivíduo um soberano sobre as suas opções de vida pessoais, continua a preferir o enquadramento, o consumo em clubes sociais, associações "...sem fins lucrativos com a finalidade de estudo, investigação e debate sobre a cannabis, bem como do cultivo e cedência aos seus associados de plantas, substâncias ou preparações de cannabis em estabelecimentos devidamente autorizados" onde os tontinhos dos consumidores possam ser protegidos dos seus próprios vícios. Woodstock nunca entrou nestas cabecinhas de bota de elástico impermeáveis à liberdade e à autonomia individuais, nem nunca entrará.

A terceira, que resulta da segunda, é que, ao contrário da geração bloquista que coexistiu com ela, a geração de Woodstock fez mesmo uma revolução.

Enquanto a grande referência revolucionária europeia da época, o Maio de 68, legou à posteridade inúmeras boas frases revolucionárias, aquilo que hoje se designa por sound-bites, sobre a liberdade, a violência e a sexualidade, obras-primas da provocação aos preconceitos da burguesia que se estendiam desde atirar pedras até sugestões de pedofilia, que ainda hoje são uma referência inultrapassável, e, com algum esforço, e ignorando fenómenos como a mini-saia, é tida como tendo tido um papel determinante na evolução dos costumes conservadores europeus em domínios como a pílula ou o aborto, e depois de uns meses de farra foi mandada embora pelo povo francês em eleições, a geração de Woodstock nunca se foi embora e mudou para sempre a sociedade americana pelo menos tanto, mas em determinadas regiões, mais conservadora que a europeia e, por via da globalização cultural anglo-saxónica, todo o mundo, pelo menos aquele em que o rock and roll não é proibido, e em muitos regimes socialistas foi proibido, em domínios como a liberdade dos costumes, incluindo os sexuais, a igualdade de género ou racial, o combate a todo o tipo de discriminações, e o respeito pelo ambiente, mas, em sound-bites, legou pouco mais que o simplório "make love not war".

Isto é talvez o resultado das diferenças entre a cultura americana, mais virada para fazer e ter resultados, e a europeia, mais virada para reflectir, planear e comunicar? Das diferenças entre uma cultura mais virada para ser e outra para parecer? Uma mais virada para a liberdade individual e outra para o enquadramento institucional? Uma mais liberal, outra socialista? Não sei. Mas sei que o Bloco de Esquerda não pesca, ainda hoje, um boi do que foi a geração de Woostock, mas compensa a falta de compreensão com uma grande lata a usá-la na sua propaganda.

publicado por Manuel Vilarinho Pires às 12:37
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