Estou comovida de ver tantos "liberais" preocupados com a "segurança" dos cidadãos que se preparam para atravessar a ponte na manifestação da CGTP.
Compreende-se. A ponte é muito alta, e muito estreitinha, e muito comprida, e só de olhar é aflitivo. Não faz sentido comparar com as maratonas, nem com as feijoadas, porque nessas circunstâncias os cidadãos estão todos alegres e amigos uns dos outros, partilhando momentos de convívio saudável em que a felicidade e o bem estar afastam a hipótese de acidente.
De resto, pela natureza das outras travessias, estiveram adultos, crianças, velhos, famílias inteiras de pessoas cujo interesse era a correria, a patuscada, e o ordeiro regabofe. No caso da manifestação, trata-se maioritariamente de adultos, unidos no interesse de protestar em conjunto contra as políticas deste governo, portanto o mais provável é decidirem trocar uns estalos e sabe-se lá onde é que isto pode ir parar.
Pessoalmente, mais depressa me travava de razões por motivos de uma orelha de porco. Eu nem sou apreciadora das extremidades dos bichos, mas há princípios que não estou disposta a abandalhar. E uma maratona dificilmente passava sem um desaguisado: não vejo com bons olhos que uma série de imbecis passe por mim aos encontrões, correndo enlouquecidos para provar que são os melhores a fazer uma coisa que não serve para nada.
Facilmente me apanhavam numa manifestação, desde que ela tivesse propósitos concretos e pretendesse varrer quem prejudica directamente a minha vida, levando o meu dinheiro e servindo-me embaraços ("o governo" é uma coisa muito genérica e, aparentemente, por razões que presumo de etiqueta, é suposto que todos os países devem ter um). Estaria disposta a atravessar a ponte a pé se fosse rodeada de uma multidão que injuriasse a RTP, por exemplo. Ou a Direcção Geral do Património Cultural, que também é uma flor que nem vos conto (como tudo o que se chama "cultural"). Ou a Agência para a Energia, "ADENE" para os mais chegados, que em matéria de extorsão não tem lições a aprender.
Encarava mesmo com gosto uma descida até Almada para gritar insultos, gratuitos e pessoais, a um frontão de pássaros (quase todos medalhados) cuja bazófia, vacuidade, e superior descaramento, os portugueses têm suportado com paciência. Penso até que, a par com o chinquilho, esta actividade devia ser reconhecida pelas suas propriedades terapêuticas. E a quem sobra tempo, como os reformados, os desempregados, e os contemplativos, podiam ser emprestadas figuras desta malta à escala natural, construídas em papelão, para servir de mote em bonitas sessões de improviso a decorrer nos jardins públicos. Ganhava o concorrente que acertasse no insulto mais relaxante (fosse "madraço", "bichona", "totó", "badalhoca", "azeiteiro" ou "corno manso"), independentemente de estar ou não adequado ao boneco.
Anualmente, seria agendada a gala final deste concurso com uma passagem a pé sobre uma obra do regime, e os portugueses estavam todos convidados a celebrar os insultos com que se aliviaram durante a fase das eliminatórias. Seria uma manifestação de despudor e liberdade, sobrevoada pelos helicópteros das estações de televisão, e o país inteiro poderia assistir (em directo ou em diferido) ao acontecimento nacional, devidamente esmiuçado por painéis de comentadores, eles próprios representados na sessão solene através do respectivo gigantone.
Fica a minha sugestão. Até lá teremos de aproveitar as iniciativas da CGTP, que será responsável por devolver a ponte em condições. Cada cidadão tem a liberdade de decidir arriscar ou não a sua vida num percurso tão "perigoso". E os "liberais" portugueses, com a vossa licença, que se ocupem da "segurança" da sua instrução política, se não querem continuar a aparecer ao povo como uma penosa cambada de presumidos.
O departamento do PCP para assuntos sindicais resolveu fazer uma manifestação que atravessa a Ponte 25 de Abril.
Não se sabe - eu, pelo menos, não sei - porquê atravessar aquela ponte e não uma das praças, ou avenidas, habituais. Talvez o vermelho das bandeiras ganhe com o azul do céu em fundo, talvez os manifestantes, com os semblantes irados, segurando virilmente cartazes com censuras ásperas ao governo fascista, deem excelentes photo-opts sem o enquadramento habitual dos prédios lisboetas - vá-se lá adivinhar.
Sucede que as autoridades competentes acham o percurso perigoso, mas as razões, decerto ponderosas, não foram divulgadas: pode ser que as palavras de ordem, sincronizadas, tenham um efeito deletério no aperto das porcas, tornando-as soltas; ou libertem, por influência das vibrações, os rebites; ou se admita que um ou outro manifestante possa ser mais liberal no consumo de mines, e, influenciado pelo clima de desgraças e falta de futuro, que a manifestação justamente verbera, vá a ponto de amplificar o impacto da manifestação pelo efeito de se atirar ao Tejo.
Seja como for, a CGTP não aceita a sugestão de se ir manifestar para uma ponte mais consensual e encasquetou nesta. E, sem dizer nada sobre as verdadeiras razões da importância da Ponte Salazar, rebate com bons argumentos os das autoridades.
Pense-se o que se pensar da CGTP, não há dúvidas de que não há perigo de aquela organização não saber controlar uma multidão; e que é perfeitamente capaz de avaliar os riscos em presença e coarctá-los.
O Governo pode portanto poupar-se o risco de um confronto inútil ou, pior, dar pretextos a queixas de perseguição, ou ainda evidenciar um temor para o qual não tem razões.
A CGTP pode perfeitamente bloquear o trânsito naquele sítio, em vez de outro qualquer, tanto mais que o dia não é útil. E, embora não tenha credenciais na área da segurança, creio estar em condições de poder afirmar que, ainda que fosse o dobro a quantidade de autocarros que virão a Lisboa despejar manifestantes, sempre a ponte, que já aguentou uma mudança de nome e de regime, pode bem aguentar uma manifestação.
Creio que é tempo de o benchmarking chegar a "novas indústrias" como a das "Manifestações".
Por exemplo, no Rio de Janeiro a Polícia sugeriu a criação de um Manifestódromo: "‘Manifestódromo’ liberaria vias vitais e evitaria caos no trânsito".
Fica a ideia. Estou em crer que estaria sempre ocupado.
A Grândola foi porventura a única coisa verdadeiramente consensual na Manif. Porque os descontentes que lá estiveram, irmanados no que rejeitam, não se entendem no que querem.
Os desempregados querem emprego, mas se perguntados sobre como criá-lo ou se refugiam na receita do PS, que já provou só ser possível com endividamento; ou na do PCP ou do BE, que conduz a uma Cuba com mau tempo, que só os comunistas, ingénuos e desesperados desejam; ou se queixam amargamente dos ladrões da Troika, cujo perdão de dívida libertaria, acreditam, os meios para investir.
Os reformados não aceitam que o Estado tenha quebrado o contrato sinalagmático que tinha com eles, acreditando que se tivesse antes quebrado os contratos com capitalistas que financiaram o delírio das obras públicas não precisaria de chegar a estes extremos.
Os jovens queixam-se de que foram vigarizados, tendo suado as estopinhas para obter um diploma que agora nem podem pôr na parede, por falta de recursos para comprar a moldura.
E todos se queixam da Merkel, do Passos Coelho, do Relvas, dos partidos, do BPN, da banca, dos plutocratas e da "direita". E os que não vivem da caridade pública e privada, de familiares e instituições, gemem sob o peso de impostos irracionais ao ponto de o que sobra da punção fiscal nem sequer permitir a vida como antes, quanto mais o aforramento.
Ninguém faz contas. A meu ver, muito bem, que se pomos um capataz a tomar conta da quinta é para que ele se ocupe da gestão e da intendência. E como a quinta está falida e ninguém percebe como se regressará aos dias toleráveis, procura-se desesperadamente, no meio de um grande berreiro, um novo capataz.
O novo capataz acabará por vir, porque vem sempre.
Atrás desta manifestação outra surgirá. Os descontentes sentir-se-ão, por um momento, menos descontentes: partilhar as nossa dores e dissolvermo-nos em algo maior do que nós é um conforto. A Situação experimentará algum alívio: vá lá que é só cantorias, ainda não incendeiam automóveis nem partem montras. A oposição comunista e afiliada esfregará as mãos: épá, as contradições do sistema capitalista estão-se a aprofundar, a Revolução está na ordem do dia; e a oposição socialista sonhará com o regresso a um módico de tachos, logo que as contas estejam minimamente equilibradas e desde que a "Europa", para salvar o Euro, continue a fazer transfusões, mas reforçadas e a preço de saldo.
Eu, é claro, não fui à Manif. Em cada rosto igualdade? Deus me livre - eu é mais em cada rosto diferença. Hinos nos quais caibam as diferenças todas só me lembro de um, o Nacional, e esse brilha pela ausência.
O que não quer dizer que, quando todas as quimeras se esvaziarem, não seja o único que restará no fundo do poço das nossas ilusões.
Que me desculpem os meus amigos d'O Insurgente, mas não me apetece deixar passar.
A propósito de um grupo de reformados que hoje, durante a manifestação, vestiam camisolas a dizer "Nós não somos responsáveis", Rui Carmo comenta:
"Obrigado. Foi também pela inimputabilidade e pelo constante que se lixem as gerações futuras que chegámos aqui."
Este post é vil. Até pelo fundo de verdade que contém (como é costume acontecer com as mentiras mais eficazes).
Eu gostava que o Rui Carmo me informasse onde estavam "os jovens" mais "responsáveis". Aqueles que protestaram contra as mordomias que foram oferecidas aos empregados da função pública. E contra a Expo 98, e o Euro 2004, e as passagens de ano praticamente administrativas. E as internets "gratuitas", e os Magalhães, e as "festas das cidades". E a Fundações constituidas para os besuntarem, a eles e aos pais deles, com as "culturas", e as exposições, os concertos rock, e os "ateliers" das mais variadas "artes" a fim de lhes comprarem os votos ou (na pior das hipóteses) a indiferença. E os "investimentos" e as políticas "expansionistas" de Cavaco, de Guterres, de Barroso, de Sócrates e de toda a espécie de criadores de "um homem novo". Que permitiu, aos pais e aos avós desses "responsáveis" jovens, pagarem-lhes as contas dos iPhones, dos campismos, dos jogos de vídeo, das patuscadas, dos "doutoramentos", e das várias "emancipações" que eles escolheram viver - numa ignorância tão escura que não lhes permitiu sequer darem-se conta da sua dimensão.
Os velhos não costumam estar apetrechados com saúde, vagar, e vitalidade para se organizar em manifestações. São por isso um alvo fácil para cobardes, que lhes inflingem dano sem se arrepiarem.
Os velhos também não costumam passar cartão às boçalidades irrelevantes que se escrevem na blogosfera.
Mas estou cá eu. Que sinto gozo em oferecer umas perspectivas a certo tipo de putos, charilas e malcriados, com vontade de apresentar serviço.
Guardo as tolerâncias para os meus adversários; afinal, eles é que têm de viver dentro daquelas convicções que considero enlouquecidas. E gasto o rigor nas pessoas "da minha área". Porque ser lúcido inclui a ponderação necessária para, quando se analisa um problema, tentar vê-lo de todos os ângulos. A começar pelo ângulo dos envolvidos. Caso contrário, sofre-se de uma maluqueira de módulo igual e outro sinal qualquer.
- Porque é que venho ao protesto? Porque estou contra a política deste governo.
- O que é que é preciso fazer?
- Tudo. Mandá-los embora e fazer tudo diferente.
Depois vai à vida dela. Mas arrepende-se, volta atrás e especifica:
- Eu sou professora universitária, estamos a formar jovens para eles se irem embora. Isto é um custo para as famílias, para o Estado, que vamos dar de mão beijada a outros países. Os nossos jovens formados e bem formados. É uma pena.
Olhe, senhora professora: dizer que é preciso "mudar tudo" equivale a dizer que não é preciso "mudar nada". Não sei que disciplinas "ensina" aos seus alunos. Mas se lhe dessem uma resposta igual a essa, palpita-me que perceberia o que lhe estou a dizer.
E digo-lhe mais: tenho pena que as pessoas emigrem por obrigação. Mas não sinto falta dos jovens "bem formados" por si. Só por acaso, e por interesse autónomo, não terão do mundo uma visão tão alheada como a sua.
Não é possível não gostar de Adriana, que "não acredita em partidos, nem no dinheiro - o dinheiro só gera maus sentimentos, só gera ódios". E o impulsivo abraço dela, com sorte e quando a poeira assentar, ficará como imagem de marca da manifestação do dia 15: temos sempre espaço para a ingenuidade, a juventude, os impulsos e o improviso feliz.
Infelizmente, era de dinheiro que se tratava: o que foi e não devia ter sido gasto e por quem, o que foi e não devia ter sido emprestado, quem paga, quem recebe, como se paga, se é que se paga ... dinheiro, só dinheiro.
E partidos, só partidos: pode-se criar um partido - o do interesse nacional, por exemplo - para acabar com os partidos, mas há grupos de pessoas com ideias diferentes sobre o que seja o interesse nacional e essas pessoas, se se organizarem, fazem ... partidos.
A realidade é uma detestável maçada. E pode às vezes ser grotesca: por exemplo, na manifestação podia ter participado este senhor. E não o fez porquê? Mas não se está mesmo a ver? Por decoro, diz o próprio.
Diz bem. Porque estando nós em estado de zanga permanente uns com os outros por causa do que se gastou e é preciso pagar, e sendo ele um dos tenores do "pr'á frente é que é o caminho", só poderia participar com a cara enfiada num tacho.
E isso, realmente, não teria muito decoro.
Margaret Thatcher começou a cair por causa da poll tax - os colegas de partido tiraram-lhe a cadeira porque nenhum partido político permite, conscientemente, que o seu líder o enterre. A poll tax não podia ser engolida pelo eleitorado britânico, tal como o aumento da TSU para os trabalhadores, em conjunto com a redução para as empresas, não pode ser engolida pelo eleitorado português. Não pretendo discutir os méritos da poll tax, que existem, nem da redução da TSU, que também existem. Mas também há argumentos a favor da poligamia (e da poliandria, já agora) e nem por isso um governo sensato decide remover do Código Penal a criminalização da bigamia. Nenhum governo pode, mesmo que tenha, ter razão contra a razão das pessoas, porque os governos, em regime democrático, dependem delas - e não o contrário.
Como foi que Thatcher pisou essa mina, que ela própria colocou, é para mim um mistério. E como na cabeça de Passos, ou de quem gizou o disparate, germinou a ideia peregrina de diminuir os salários líquidos dos trabalhadores, e ao mesmo tempo a contribuição dos patrões, desafia o entendimento. Não há políticos no Governo?
Com uma pitada de vindicta pessoal, e possivelmente outra de encomenda do Presidente da Republica, é a esta luz que devem ser vistas as declarações de Manuela Ferreira Leite: quando um líder claudica, a oposição interna vem ao proscénio oferecer-se para salvar a Pátria em perigo. Manuela deu assim o seu contributo ao sucesso da manifestação de ontem, e não terá sido muito pequeno.
Todavia, convém que haja, no meio da excitação geral, algum discernimento: a maior manifestação nos tempos recentes teve lugar em 5 de Junho de 2011, e deixa a de ontem num canto envergonhado: mais de cinco milhões de pessoas na rua é obra. E mesmo que os quase três milhões que então compraram o Poder actual já não sejam tantos, em caso de esboroamento os herdeiros nunca seriam nem os bons dos comunistas, que ontem andaram disciplinada e discretamente a ajudar, nem os indignados profissionais da agremiação de Frei Anacleto. Seria o PS, com Seguro ou outro qualquer socialista que se tome por predestinado, provavelmente o edil Costa (um ou outro, aliás, sólidos como uma rocha - o poder de distribuir lugares faz maravilhas pela unidade).
Não é credível que na cabeça de um socialista pudesse nascer a ideia do aumento/redução da TSU. Naqueles privilegiados crânios nascem recorrentemente visões de futuros gloriosos através de investimento público, "apostas" na educação e na modernidade, grandiosos projectos tecnológicos, apoios à indústria "virada para o futuro", e iniciativas dinâmicas sortidas, tudo coisa de custos certos e resultados improváveis.
A prazo, e bem curto, a perspectiva duvidosa de regresso aos mercados transformava-se na certeza de uma impossibilidade; o crédito um tanto humilhante do bom aluno transformava-se no descrédito do caloteiro; e as manifestações ordeiras e pacíficas de ontem tornavam-se na barafunda do desacato e da bastonada, senão pior.
Pensando bem, a manif, pelo que teve de manifestação autêntica de desconfiança dos políticos todos, pode ter contribuído para abrir aquelas cabeças de apparatchiks da economia de Excel: teóricos da economia querem-se na universidade, nas revistas da especialidade e nas colunas de opinião. No Governo querem-se políticos, gente que sabe que a Política é a arte do possível, está preparada para o desprezo geral e conhece os limites do viável.
Porque, se não conhecerem, outros virão. E será tarde para o povo se lembrar do ditado popular: atrás de mim virá quem de mim bom fará.
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