À força de se esforçarem por acreditar que têm boas razões para acreditar naquilo que à força querem acreditar, as pessoas chegam a fazer figuras caricatas.
Há quem queira acreditar que o Manuel Alegre foi um traidor.
É muito simples esclarecer. Fazer resistência a uma ditadura não é traição, é patriotismo, seja em Cuba, no Chile, em Portugal ou na Checoslováquia. Mas, por exemplo, divulgar segredos militares e, com isso, colocar em risco ou mesmo provocar a morte de soldados portugueses é traição.
O Manuel Alegre fez resistência à ditadura e, por isso, foi um patriota, mesmo que haja quem o queira considerar um traidor por ter feito resistência à ditadura. Pode ter revelado segredos militares que podem ter colocado em risco ou mesmo provocado a morte de soldados portugueses, e se o fez foi mesmo um traidor. Se se quiser determinar se o Manuel Alegre foi efectivamente um traidor é isso que é necessário esclarecer. Eu não tenho informação que me permita esclarecer isto, nem sou dos que fazem de a procurar um objectivo de vida. Não sei se é ou se não é. Se um dia souber que sim considerá-lo-ei um traidor, até lá não considero.
O que não faz dele traidor é acreditar em notícias falsas. Por exemplo, acreditar na imagem de um suposto cartão de militante da Frente Nacional de Libertação de Angola, ou FNLA, que circula nas redes sociais.
E acreditar na autenticidade do cartão não é grande referência como garante da lucidez do crédulo.
Primeiro, é preciso estar disposto a acreditar que uma organização terrorista, como lhe chamava o governo português de então, ou um movimento de libertação clandestino que também se dedicava à guerrilha, como era visto na época pela generalidade dos governos ocidentais e provavelmente pelos próprios, tinha uma máquina burocrática que passava aos seus militantes cartões de membro, talvez para eles poderem facilmente ser identificados como membros do movimento se fossem revistados pela Pide.
Segundo, é preciso estar disposto a acreditar que a imagem que circula é uma fotografia a cores de um cartão real, apesar do ar imaculado do cartão supostamente fotografado, sem um vinco, sem um risco, sem uma amolgadela, tão perfeita como se fosse uma impressão do PDF do cartão original, e esquecer que nos anos 60 do século XX não havia PDF, não havia imagens digitais, nem sequer havia fotocópias a cores, havia cartões de cartão escritos à mão ou à máquina com o retrato colado a que se podiam tirar fotografias se se estivesse interessado em fotografá-los.
Terceiro, se o cartão supostamente fotografado tivesse um formato do tipo das clássicas cartas de condução, é preciso acreditar que a página um, a capa, poderia ser fotografada lado a lado com a página três, a que continha o retrato e os dados do membro, ou que a capa estaria na página dois, ou os dados do membro na página quatro. E, se fosse um cartão de frente e verso, acreditar que se conseguia fotografar a frente e o verso simultaneamente, Tudo problemas que o PDF resolve de uma penada, mas os cartões reais não resolviam.
Quarto, é preciso acreditar que o Manuel Alegre usava camisas havaianas, que era um resistente da ditadura que se vestia como o Wolfman Jack.
Quinto, porque não é esta a única "fotografia" do cartão da FNLA que circula nas redes sociais, que o Manuel Alegre se vestia no mesmo alfaiate que o inglês a quem calhou o outro cartão da FNLA idêntico ao dele, e escolhiam juntos as camisas havaianas.
Sexto, mas ainda é preciso continuar? não é, mas vamos até ao fim para ninguém ter desculpas para não perceber, que o Manuel Alegre morava na Argélia na mesma rua onde morava o inglês que morava em Hareford, na Inglaterra.
Tudo junto, espero que a esta hora já tenham percebido que, independentemente de o Manuel Alegre ter cometido actos de traição ou não, o cartão da FNLA do Manuel Alegre é forjado e sem grande cuidado para dirfarçar a trafulhice. E que os que chegados aqui ainda acreditam na sua autenticidade são tontos.
Precisamente. E por não se ter adaptado acabou por, no termo de uma guerra inútil, fazer uma descolonização presumivelmente pior para os descolonizados e seguramente para os colonos, que tiveram que fugir sem sequer terem tido tempo, a maior parte deles, de pôr a recato ao menos uma parte do que tinham granjeado em vidas de trabalho. Que as Forças Armadas se tenham comportado naquela maré, como disse algures Marcelo Caetano, como um exército fujão, e que muitos dos postos de comando tenham sido ocupados, como no caso de Rosa Coutinho, por gente objectivamente, quando não também subjectivamente, ao serviço da estratégia da União Soviética, não tira nem põe ao gigantesco erro de cálculo que a guerra colonial foi.
Isto na minha opinião, discutível como todas. E não na do senhor tenente-coronel, que não apenas acha, suponho, que a guerra colonial podia ser ganha como entende que no essencial nada a diferenciava, por exemplo, da guerra da Restauração, pela qual nos libertámos do domínio espanhol.
A minha opinião, suponho, coincide com a da maioria das pessoas; e a do senhor tenente-coronel não. Que diz isso a respeito do mérito relativo das nossas opiniões? Nada - nada porque a verdade histórica, quando se consolida, o que nem sempre acontece, não fica cativa da opinião dos contemporâneos dos sucessos, aos quais falta sempre, entre outras coisas, recuo.
Isto quanto à guerra. Quanto ao que Alegre fez em Argel aos microfones da rádio suponho que não seria muito diferente do que o senhor tenente-coronel seria capaz de fazer se, no caso de o 25 de Abril ter evoluído para um regime comunista, fosse exilado e o país invadido por forças da OTAN. Hipótese louca, decerto, mas just for the sake of the argument - caso em que não haveria de faltar quem declarasse Brandão Ferreira um traidor.
Não pretendo num post anódino despachar o problema da guerra colonial; mas apenas tomar partido pelo tenente-coronel Brandão Ferreira no diferendo que o opõe a Alegre. Não porque Brandão tenha necessariamente razão - mas porque o tribunal não sabe, não pode saber, nem tem que saber, quem tem razão.
O tribunal não é um intérprete qualificado de factos históricos: saber se um conjunto de atitudes integra a figura de traição à Pátria é uma questão de opinião, desde logo porque o próprio conceito de traição, salvo na definição do Código Penal, que "supõe o uso da violência ou a ameaça dela ou usurpação ou abuso de funções de soberania por parte do alegado traidor", conforme lembra Vital Moreira, para demonstrar o contrário do que devia, não é aqui aplicável.
Resta o direito ao bom nome e reputação, e é com base nesse direito que o mesmo Vital, num artigo capcioso, aprova entusiasticamente a infeliz decisão do Tribunal da Relação de Lisboa. Condenar alguém por acusar Alegre de traidor, quando para fundamentar a acusação não fez mais do que enunciar factos que são conhecidos e que o próprio Alegre não nega, é o mesmo que dizer que o tribunal tem uma definição obrigatória de traidor, sendo qualquer opinião diferente um ilícito.
O tribunal não se enxerga. E, no exercício do meu direito à opinião, creio saber porquê: os senhores juízes são a favor do respeitinho porque têm receio que amanhã, com estas modernices da liberdade de opinião, alguém se lembre de lhes espiolhar as decisões e imagine que nem sempre têm nem o senso, nem o distanciamento, nem a ausência de paixão política, que deviam ter.
Não é que interesse muito, salvo o tempo perdido pelo condenado e o custo para ele e o contribuinte: a sentença vai ao ar, como outras, no Tribunal Europeu. O mesmo que o europeísta Vital acha fundamentalista. Acha ele; que eu o que acho é que se pode sair do PCP, mas dificilmente o PCP sai de nós.
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