Não há um número, um gráfico, um dado, uma quantificação que suporte as afirmações. As conclusões, elas, vêm logo ao princípio: Os problemas de Portugal derivam de "obsessão incompetente"; e os europeus de "negligência irresponsável, que nem a entrada em recessão da Zona Euro conseguiu abalar no seu imenso torpor."
Logo a seguir, explica-se o pano de fundo que criou as condições para chegar onde estamos. E é este: "Uns e outros procuram escamotear a evidência maior dos nossos dias, que é a do fim do ciclo ultraliberal iniciado entre finais dos anos 70 e começos dos anos 80 do século passado, com as respostas que Margaret Thatcher e Ronald Reagan deram às primeiras dificuldades que, com a crise do petróleo e as suas consequências, abalaram o horizonte de crescimento que enquadrava a economia ocidental desde os anos cinquenta. Com características, variantes e ritmos muito diversos, a solução ultraliberal impôs-se por todo o lado, com o seu cortejo de desregulamentações, privatizações, flexibilizações e... endividamentos."
Acho esta maneira de argumentar porreira: um grande fresco de história, frases profundas e dramáticas, um dedo acusador e fremente à direita "ultraliberal" e pimba, ponham a máquina das notas a trabalhar numa Europa Federal, e os Carrilhos a administrá-la, que tudo se há-de compôr.
Sobram algumas perguntas (são perguntas verdadeiras, não retóricas - não conheço a resposta):
i) O preço do petróleo é hoje mais alto, em termos reais, do que era em 1973? Quão mais alto?
ii) O peso físico dos Diários da Republica e dos equivalentes registos de legislação em vigor nos outros 26 países, e ainda na UE, é superior ou inferior ao que existia em finais da década de 70? E a quantidade de leis, decretos, portarias, directivas, regulamentos - tem diminuído desde que os "ultraliberais" tomaram conta da maior parte dos países e da barca europeia?
iii) As privatizações contribuíram para o descalabro e o endividamento de que forma? Há evidência de que a gestão privada das empresas antes públicas tenha sido um factor recessivo?
iv) A evolução demográfica é irrelevante?
v) Para além das leis do trabalho, houve flexibilização exactamente de quê? E o regresso a leis do trabalho mais restritivas do despedimento para "defender" os postos de trabalho faria crescer o emprego de que forma?
vi) Admitindo, sem conceder, que tenha sido a desregulamentação a provocar a crise do sub-prime, e esta a originar a global, por que razão o nosso país, entre outros, foi mais afectado, quando o sistema bancário local pouco foi tocado por aquela crise?
vi) O peso da despesa pública no PIB, durante os anos de gestão "neoliberal", tem diminuído? E, finalmente,
vi) Quem deve, deve a alguém - o montante da dívida é sempre matematicamente igual ao do crédito concedido, e para assegurar o seu serviço é preciso contar com os juros. Donde, em princípio e tarde ou cedo, os credores acabam por dizer - agora basta. Onde o crescimento da dívida não se traduziu por um crescimento do produto na mesma proporção, porque há-de pensar-se que no futuro seria diferente?
Carrilho é bem capaz de ter resposta para estas perguntas, sob a forma de proclamação: ele tem uma visão para a Europa. Outros também têm visões, não necessariamente a dele. Isto já é um embaraço, mas há outro: há quem seja pouco dado a visões, talvez por andar com os olhos abertos.
A "Europa" é ou não é "solidária", a Alemanha é ou não é "solidária", e Carrilho debita diagnósticos avulsos - com ar perspicaz e espasmos no pescoço.
Traz a lista completa, "grandes pensadores do projecto europeu" incluidos. Acusa "fanatismos" e identifica "dogmas". Neste ponto concordo, desde que devidamente virados do avesso: a "igualdade", a "convergência", a "cooperação", a "união dos povos", e (a minha favorita) a "pedagogia".
Doutores de trazer por casa, orgulhosos iletrados, temos com abundância. Esquecem, em toda aquela triunfante escuridão, que os países não têm moral. Nunca tiveram, nem é suposto que tenham. Os países têm interesses.
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