Um banco, toda a gente sabia o que era: um lugar onde, mediante uma recompensa, as pessoas que têm poupanças as depositam. O banqueiro emprestava os depósitos a quem tinha uma ideia para os fazer frutificar, mediante um preço, sendo este constituído pelo que era pago de recompensa ao depositante mais o que custava o pessoal do banco e restantes despesas de funcionamento, mais uma pequena margem - que era o lucro do banqueiro.
Claro que o banco serve para uma infinidade de outras coisas (como transferir dinheiro com segurança de um lado para o outro do mundo ou pagar comodamente serviços, ou converter umas moedas noutras, por exemplo). Mas, no essencial, há alguém que investe no capital, alguém que deposita o que lhe sobra ou poupa e alguém que utiliza o depositado.
Não foi sempre assim: as primeiras casas bancárias (os Medici, os Fugger) começaram por emprestar o seu capital a taxas de juro altíssimas, sobretudo a reis e imperadores, com garantia sobre rendas feudais ou do Estado. E ainda hoje a constituição de um banco requer um determinado capital, cujo montante elevado faz com que a iniciativa seja acessível a muito poucas pessoas e instituições.
Parece que a tentação de emprestar mais do que os fundos disponíveis esteve presente desde muito cedo. E hoje é um facto assente (que os depositantes não ignoram) que se houver uma corrida aos depósitos, ao mesmo tempo, banco nenhum detém os fundos necessários para reembolsar os credores.
Todo o sistema repousa assim na confiança - confiança de que quem deve vai pagar, não vai haver corrida ao levantamento dos depósitos e que, se houver, pelo menos uma parte do dinheirinho estará garantida - pelo Estado, pelo banco central, por fundos de garantia, pelo camandro.
Tudo isto é relativamente simples e, por o ser, deve rejeitar-se a ideia de que os arcanos do negócio bancário são uma coisa complicadíssima cuja regulação deve ser deixada a bancários, especialistas e políticos - porque a regulação em concreto exige conhecimentos especializados, sem dúvida, mas os interesses que se visam proteger são um assunto de toda a gente e não de uma coutada de iluminados.
Os banqueiros (sobretudo porque a espécie praticamente desapareceu, sendo substituída por bancários) têm dado, em toda a parte, abundantes provas de que privilegiam os lucros a curto-prazo, sobre os quais se baseiam os seus prémios de gestão, e não a viabilidade das instituições que dirigem; os especialistas concordam na divergência tanto sobre as causas dos problemas como sobre a sua solução, pelo que os estudos soi-disant científicos são na realidade teses que só convertem, em geral, os convertidos; e os políticos têm quase sempre pesadas responsabilidades na origem do mal porque o grau de intervencionismo do Estado na actividade bancária, como regulador, como tomador de financiamentos, como decisor arbitrário sobre a moeda e os investimentos, mesmo privados, que se podem fazer, falseia quase completamente, e de há muito, o funcionamento do mercado.
De resto, falar de mercado na actividade bancária é uma anedota triste: os bancos competiam até há pouco entre si no tráfico de influências para a conquista de negócios seguros que envolviam garantias públicas; no financiamento alucinado de actividades de futuro duvidoso, como a construção civil, à boleia da ideia peregrina de que as garantias reais sobre os empréstimos e o privilégio fiscal de que o serviço da dívida gozava bastavam para não se gerar uma bolha; na especulação financeira; e na publicidade acéfala para incentivar o consumo a crédito. Para o resto, que era a economia sustentável, ficavam as migalhas, e a competição não era dos bancos entre si, era dos clientes para o crédito escasso e proibitivo.
Esta loucura colectiva acabou mal, como se sabe, e estamos no rescaldo: os bancos estão falidos, a economia não cresce, os escândalos sucedem-se, o regulador emite opiniões, circulares, regulamentos e asneiras, e no país cresce o desejo de entregar a gestão desta merda ao estrangeiro, e a certeza de que quem nesta matéria esgrime argumentos nacionalistas (centros de decisão nacional e outras tretas) nem é desinteressado, nem tem credenciais, nem dinheiro, nem garante que, uma vez salvo o tal centro das garras do capital estrangeiro, não vá a correr empandeirar o bem, precisamente, ao estrangeiro - se houver mais-valias que possa embolsar.
Mas, curiosa história: eu compro o discurso a estes patriotas, apesar deles, porque não acho que gestores estrangeiros sejam melhores; não creio que os restos da independência, por serem débeis e cada vez menos, se devam alienar; e porque sou a favor da concorrência de estrangeiros em Portugal com portugueses - não sou a favor da concorrência de estrangeiros sem portugueses. Talvez haja alguma justiça histórica em transformarmo-nos, definitivamente, numa colónia, mas não me parece que o eleitor comum, se perguntado e de olhos abertos, votasse a favor de o país evoluir na Europa para o estatuto que S. Tomé teve antes da independência, e Ceuta tem agora.
Estamos num caco, do qual aliás ninguém reconhece a paternidade. Mas o resto da Europa não está propriamente a respirar saúde; tanto que o senhor Draghi, apavorado com o medo da deflacção, a economia que teima em não crescer, o desemprego que não baixa, as mulheres que não têm filhos, os milhões de imigrantes que batem à porta e querem emprego, resolveu acabar com os bancos.
Acabar sim. Porque se o banco, para se financiar, paga zero de juros, não precisa do depositante para nada, e este deixa de ter qualquer incentivo para poupar. E se o mesmo banco é apenas um balcão que empresta dinheiro que o BCE inventou, feito de ar e vento, toda a economia passa a ser de ar e vento, e o banco uma delegação do BCE com a missão de administrar correntes de ar. Que se espere neste contexto investimento que não seja especulativo, um Estado que se reforme e despesa pública que não seja manutenção de clientelas ou elefantes brancos, para mim, releva de loucura - uma loucura que se espera passageira.
Pois este louco, acolitado pelo seu empregado que "governa" o Banco de Portugal, foi agora convidado pelo presidente Marcelo para vir expor coisas ao Conselho de Estado, e aceitou.
Fez muito bem - um maluco, quando é expansivo, precisa de plateias. E a plateia é de estalo: temos frei Anacleto Louçã, que provavelmente achará que, se a coisa não resultar, o melhor mesmo é o BCE pagar para emprestar dinheiro, através da CGD, à economia real; Domingos Abrantes, que declarará, enquanto esfrega as mãos por baixo da mesa (estes capitalistas estão a torcer a corda com que se hão-se enforcar) que os bancos devem todos ser nacionalizados, porque assim a banca poderá prosseguir actividades nobres e produtivas, sem o pecado do lucro privado; Costa que, em chegando a sua vez, rebrilhará de satisfação enquanto expectora as suas conhecidas opiniões sobre competividade, a Conxituição, o pugresso, a reversão da austeridade e a descrispação; Soares que, se se conseguir manter acordado, lembrará que sempre disse que o dinheiro não é problema - faz-se; e Marcelo, que encerrará a reunião histórica com palavras oportunas e sentidas, realçando o afecto que o liga a Draghi, e que este decerto terá em conta moderando o impulso do BCE para diluir nos gigantones espanhóis as banquetas portuguesas e os seus problemas - os quais bancos espanhóis, recorde-se, foram saneados com mais fundos públicos do que os que a troica destinou à totalidade do último resgate português.
Nada disto interessa muito. É como dizem as canções: Que sera, sera.; When the Going Gets Tough, The Tough Get Going.
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