Gosto de Heloísa Apolónia por causa do que diz, que é uma espécie de cantochão tranquilizador porque familiar e previsível. Excepto quando discursa, por o dizer vários decibéis acima do tolerável.
Pois Heloísa vai censurar o Governo, os colegas da bancada comunista vão secundá-la e a boa gente do BE também. Se ela tiver cuidado com a censura, o PS acompanha, se não abstém-se - na realidade nem interessa. Incidentalmente, a censura dá jeito à maioria - serve para mostrar que existe, coisa que anda um pouco esquecida.
Por razões misteriosas, porém, toda a gente finge que os Verdes não são um artifício para o Partido Comunista ter mais tempo de antena. E porque tal expediente é legal, talvez não fosse despropositado os outros partidos, agora que Cavaco resolveu, a benefício da estabilidade como a interpreta o seu profundo umbigo, antecipar as eleições, os partidos democráticos, e o BE, lançarem os seus mais coloridos departamentos sob a forma de partidos, de modo a que àquelas eleições concorram apenas coligações.
O PSD bem poderia parir o Partido da Âncora, destinado àqueles seus simpatizantes que têm ideias muitíssimo lúcidas sobre o que o Estado deve fazer como investidor, em particular no que toca ao mar que nos rodeia por todos os lados menos dois, dado que o mar em questão contém uma Zona Económica Exclusiva que o sector privado incompreensivelmente despreza.
Do PS poderia brotar o Partido Neo-trotskista do Calote Permanente, aproveitando aqueles seus militantes que têm na matéria posições definidas. O uso de brinco, ainda que não obrigatório, poderia ser a marca identitária do novo movimento.
No CDS sente-se a falta dolorosa de uma autonomização da ala sacrista, que defende o governo do País a golpes de encíclicas papais e a reza do terço antes da Ordem do Dia. Imagino que a designação Partido das Bulas seria do melhor gosto.
Finalmente, o BE bem poderia desentranhar-se no Partido das Quotas, destinado à defesa de lugares cativos para lésbicas negras, grávidas de dador anónimo e residentes em bairros de lata.
Creio que, com este alerta, de mim não se poderá dizer que não sou civicamente empenhado.
No debate da bi-moção de censura, frei Anacleto Louçã deu a impressão habitual de acreditar nas coisas inflamadas que diz, o Ministro das Finanças fez um pézinho de dança política, engraxando o "povo português" - o "melhor do Mundo" - e os falantes do Governo e da Oposição cumpriram diligentemente a obrigação, ressalvando uma geral crispação e o patente embaraço do CDS. As moções tinham como propósito cavalgar o descontentamento popular e encravar o PS, colando-a à "direita", e é de admitir que o saldo desta operação meio morna não tenha sido negativo para a Oposição. Convém todavia não empolar: Sá Pinto vai abandonar o Sporting, e os meios de comunicação social sabem bem quais são as prioridades noticiosas.
Crispação, disse acima. Bernardino Soares, uma pessoa geralmente cordata, esteve particularmente indignado: o Ministro das Finanças é um pantomineiro, foi um dos mimos com que o brindou.
Não devia. Nem precisava.
Há por aí uma dúzia, vinte, trinta, cem Portugueses relativamente ricos. Têm negócios em Portugal, mas também no exterior, e as fortunas estão estimadas em torno dos dois mil milhões para Alexandre Soares dos Santos e uns míseros quinhentos milhões para os décimos no ranking, Luís Silva e Maria Perpétua.
No Mundo, Alexandre aparecia, em Março último, na casa 491, Belmiro de Azevedo na 1153 e Américo Amorim, recentemente destronado pela revista Exame, na 242.
Estes rankings valem o que valem, suspeito que não muito. Mas mais bilião menos milhão o regime fiscal, se pode penalizar as empresas destes senhores, não pode penalizá-los pessoalmente: não há empresas grandes, nem grandes empresários entre nós, sem internacionalização; e o dinheiro flui para onde o tratam bem quando existe em quantidade suficiente para haver facilitadores.
Não é aliás preciso ter grandes fortunas: se fica demasiado caro ter barcos, aviões ou mesmo automóveis topo de gama (verdadeiros topos de gama, não os charelos que jornalistas famélicos assim descrevem) Espanha é mesmo aqui ao lado; e se em Espanha embarcarem no paleio engana-tolos dos "ricos que paguem a crise", Marrocos é um sítio estimável e discreto (ou Gibraltar, ou, ou).
Quer dizer que os 54,5% de IRS para nababos, e sobretudo o surreal aumento médio previsto (de 9,8 para 13,2%, o que dá uns bons 34%) vão castigar não os ricos mas a classe média. E se a isto se somar o demencial aumento dos impostos sobre a propriedade, para sustentar esses antros de inépcia e malbaratação de recursos que são as autarquias, mais toda a litania de taxas, alcavalas e pilhagens sortidas que constituem o nosso sistema fiscal, então Portugal parecer-se-á terrivelmente com Cuba: os verdadeiros ricos, que são poucos, são as eminências do regime; abaixo deles há uma fininha camada de privilegiados que não vive mal - são equivalentes aos apparatchiks; 20% da população está emigrada; dos restantes uma parte morre de fome, e a maioria sobrevive em regime de escravatura.
A comparação não é perfeita, eu sei: em Cuba não poderia escrever nada disto e as categorias, sendo parecidas, não são feitas com a mesma gente - para viver bem não é preciso ter um cartão, gritar morras à América e hossanas a Fidel. Mas não descarto a hipótese de vir a ser lançado um imposto para ter acesso à blogosfera e de todo o modo já não vou podendo fumar, coisa que em Cuba ainda é acessível.
Bernardino, Bernardino, vê bem, pá: se te abstraíres do facto de que quem não é escravo do Estado, e mesmo a maior parte dos que são, não é comunista, desde 1975 que nunca estivemos tão perto do teu regime.
Estás a ganhar, Bernardino. Essa coisa do pantomineiro saiu-te, mas não devia. Nem precisavas.
Fui num pé a Vigo tratar de um assunto, e vim no outro. Parei na área de serviço de Barcelos, para uma água bem fresca, que estava um calor tropical, e vi de relance na TV Heloísa Apolónia, acho que no debate da moção de censura. A sua voz enchia o espaço - a voz da simpática Heloísa enche os espaços como o som de uma broca de dentista.
Dizia as coisas previsíveis que Heloísa Apolónia diz. Hesitei sobre se havia de ficar mais um pouco - gosto dos rituais parlamentares, da oratória, sempre fico à espera de uma boutade, uma frase mais conseguida, um argumento novo.
Fui à vida. Podia ligar o rádio para ouvir o debate, mas não, que gostar, gosto, mas nem tanto. E dei comigo a pensar que, depois da Heloísa, delegada do PCP para aquela coisa da Verdura e dos aumentos de tempo de intervenção no Parlamento, os moços do BE haveriam por certo de falar na colonização do aparelho de Estado pelos boys da nova Situação - se fosse com eles nomeariam pessoas de reconhecido mérito e credenciais democráticas fortemente de esquerda; e no falhanço das políticas de austeridade - se fosse com eles já Portugal liderava os países humilhados e ofendidos para obrigar a Europa do Norte a aceitar inflação, reescalonamento da dívida e endividamento novo para investimento público e expansão do Estado Social; e no caminho do falso rigor que Crato quer impor ao sistema de ensino - se fosse com eles far-se-ia mais com mais, porque recursos não faltariam, e os diplomas de todos os graus seriam atribuídos a quem soubesse a matéria porque os mereceria e a quem não soubesse porque são contra discriminações; e recomendariam novos impostos sobre os ricos, porque estes evidentemente não exilariam capitais, dado que ficariam prestes sem eles; e nacionalizariam bancos, mas não como aquela vigarice do BPN - se fosse com eles as nacionalizações seriam transparentes, justas, limpas, abundantes e rendosas, não havendo quaisquer riscos de retaliação ou sistémicos ou de crédito; e na Agricultura? Oh, na Agricultura, se fosse com eles, mil campos de papoilas floririam.
E assim por diante - não ouvi o debate mas foi como se ouvisse, sei do que a casa gasta.
Vendo bem, o gosto por debates é quase um vício indesculpável, visto que de um lado temos três interpretações da mesma melodia, o que a torna um tanto monótona. Do outro temos uma única, embora um ouvido treinado consiga detectar algumas fífias na orquestra. E no meio fica a secção de percussão, com os tambores rotos, os pratos esbotenados, as congas e os djembés feitos num oito.
Do meio e do lado direito falarei, ou não, noutra maré. Para já, deixo uma representação gráfica do lado esquerdo do hemiciclo, conforme o debate que adivinhei.
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