O Bloco de Esquerda insurgiu-se desde sempre contra a utilização de dinheiro público para salvar bancos.
(Eu sou do tempo em que ser de esquerda era ambicionar uma sociedade onde a miséria fosse, se não erradicada, pelo menos minimizada na medida do possível, onde não se passasse fome e as pessoas pudessem viver em condições de higiene e salubridade minimamente decentes e ter acesso a tratamentos na doença e à educação, se tivessem vontade e cabeça para estudar. Quis o destino que o modelo de sociedade e de economia que se aproxima mais de possibilitar esta ambição seja o de democracia liberal com economia de mercado e um nível de estado social minimamente sustentável por ela, e eis-me aqui neoliberal de esquerda.
Mais tarde, vim a perceber que ser de esquerda não é ter esta ambição e procurar as soluções que a consigam concretizar no domínio das possibilidades, mas sim exigir que seja o estado, mais do que a regular a economia e os agentes económicos, que somos todos nós, o agente económico que se dedica à produção, desejavelmente em regime de monopólio, dos bens e serviços e, acima de tudo, dos disponibilizados pelo estado social, coisa que em breve fará um século que está provado que não faz nem bem nem com eficiência no consumo de recursos.
Mais tarde ainda, foi-se tornando claro que ser de esquerda já não tem nada a ver com aquela ambição, mas apenas com o controlo da sociedade pelo estado para defender grupos de interesse específicos, que incluem corporações como a função pública e os sindicatos, mas não os mais desfavorecidos e em risco de cair, ou ser impedido de sair, da miséria, que não há sindicatos de desempregados nem de sem-abrigo, em detrimento dos dos que não fazem parte desses grupos de interesses. Isto sem nunca abandonar a retórica, marketing oblige, da defesa dos mais desfavorecidos, que lhe rende votos quando os mais desfavorecidos são também desfavorecidos de lucidez e informação.
E tornou-se também evidente que para se ser verdadeiramente de esquerda é necessário padecer de uma disfuncionalidade cognitiva permanente relativamente à origem do dinheiro colocado à disposição do estado para gastar, ignorando persistentemente que é o dinheiro dos cidadãos passados, quando o estado tem poupanças, actuais, quando se financia com os impostos que lhes cobra, e futuros, quando se endivida para eles pagarem mais tarde, formulando as suas políticas como se o dinheiro caísse do céu. Quem diz caído do céu pode também dizer doado pelas instituições europeias que o vão buscar aos cidadãos europeus, ou por credores que o emprestam sem a preocupação de o vir a receber um dia mais tarde. Dinheiro que há-de aparecer, se Deus quiser.
É este o motivo mais ponderoso para o Bloco de Esquerda ser sempre contra o resgate de bancos com dinheiro público, admitindo que não é necessário porque eles podem ser resgatados com dinheiro caído do céu, ou podem ser deixados falir porque dinheiro caído do céu haverá de compensar os pobres da perda das suas poupanças se o seu banco falir, e um milagre há-de garantir que quem é compensado são apenas os pobres a que recorre na sua retórica e não os ricos.)
No mundo real, quando um banco chega a uma situação de risco de falência, e para evitar o risco de disrupção económica e social que a perda das poupanças e investimentos confiados a esse banco por particulares, empresas e outras instituições teria grande probabilidade de desencadear, resgatam-se os bancos. E resgatam-se por uma de duas vias alternativas:
Na primeira, os contribuintes cobrem todas as reponsabilidades do banco falido. Como aconteceu em Portugal no BPN e no Banif. Na segunda, os contribuintes adiantam aos outros bancos o dinheiro para assegurarem as reponsabilidades que se determina que devem ser cobertas, a juros, e para ser reembolsado por eles. Como aconteceu em Portugal com o BES e deu origem ao Novo Banco.
O Conselheiro de Estado Francisco Louçã acabou de pedir ao governo a nacionalização do Novo Banco. O que significaria desobrigar os outros bancos de reembolsarem o estado pelo crédito concedido ao fundo de resolução, ou seja, fazer serem os contribuintes, e não os outros bancos, a suportar as responsabilidades, seleccionadas de acordo com o critério definido, do BES.
Para quem sempre se insurgiu contra a utilização de dinheiro público para salvar bancos, defender a utilização de dinheiro público em vez de dinheiro dos outros bancos para salvar o Novo Banco é uma grande progressão. Merecia ser nomeado para um Conselho de Administração de um banco, num cargo não executivo para salvaguardar a saúde financeira do banco contemplado, ou, pelo menos, para um Conselho Fiscal.
É o milagre da gravata que passou a usar nas reuniões do Conselho de Estado.
Gente de senso, quando confrontada com escolhas sobre as quais o PCP e o Bloco tenham uma posição firme a apoiar um determinado caminho - vai por outro.
A razão é simples: o valor supremo para esquerdistas daquelas duas tinetas é o da igualdade material entre os cidadãos e esta só se pode obter em detrimento da liberdade.
De facto, ninguém entrega os seus bens e os seus ganhos pacífica e voluntariamente ao Estado a não ser que ache que está a fazer um bom negócio: em defesa da igualdade de todos perante a Lei, assegurada pelas polícias e os tribunais, em assistência na doença e na velhice, em construção e conservação de estradas, em gratuitidade de ensino mínimo para todos, na existência de forças armadas sem as quais a própria ideia de país do qual se seja nacional deixa de fazer sentido - e um longo etc.
Todos, porém, querem uma vida melhor, e esta só é possível com progresso científico, tecnológico e material que se traduzam em empregos. Sucede que as pessoas comuns intuem que esses avanços resultam sobretudo de esforços de indivíduos que se norteiam por ambição. Ora, a ambição não consiste normalmente em querer ser igual aos outros, consiste em querer ser diferente - saber mais, ganhar mais, viver melhor, ter mais poder, ser mais ouvido, mais admirado, mais influente...
Daí que, ultrapassado que seja o limiar da tolerância em relação à punção do Estado, só seja possível prosseguir na senda do igualitarismo com doses crescentes de violência; e daí também que as sociedades socialistas sejam, além de inerentemente violentas, pobres - o homem comum é saudavelmente egoísta, não uma Carmelita Descalça, e esforça-se por si e a sua família, não pela comunidade.
Estas superficialidades (há bibliotecas inteiras a ocupar-se destes assuntos, e uma vida não chegaria para ler tudo o que, a favor e contra, já se escreveu sobre socialismo e comunismo) servem-me para me desculpar por concordar, por uma vez, com a comunistada do BE e o PCP a apostarem na estatização.
Estatizar é o que aquelas almas defendem sempre, et pour cause. Mas, desta vez, dá-se o caso de a escolha não ser entre a propriedade pública e a privada, mas entre a propriedade nacional de uma instituição portuguesa e a propriedade estrangeira, provavelmente espanhola, da mesma instituição.
Fosse uma fábrica de pentes ou painéis solares e pouco se me daria se o proprietário fosse espanhol, ou chinês, ou da República de S. Marino; e não houvesse o risco de o sector bancário, todo ele, ficar em mãos estrangeiras, e veria com bons olhos que um banco novo, de capitais estrangeiros, se juntasse aos demais no nosso exíguo mercado.
Vítor Bento diz que não há dinheiro português privado para ficar com os restos do BES. Claro que não: os capitalistas de primeira linha foram decapitados no 11 de Março de 1975; o restauro dos antigos grupos foi feito com empresas meio destruídas e, em parte, a crédito - o próprio BES foi um exemplo; os novos grandes capitalistas nasceram sobretudo no ramo das mercearias e pouco mais; os muitos casos de sucesso de empresários não chegaram ainda para fazer grandes argentários ou grupos, nem chegarão - a tributação predatória, a gestão esquerdista do País e a globalização encarregam-se de cortar as asas à acumulação de capital português.
E dá-se o caso de a afirmação de que "as dificuldades com a decisão se inscrevem na estratégia de criar grandes grupos europeus, o que passa por dar o domínio do mercado bancário da Península Ibérica a entidades espanholas" (opinião que não percebi se é a do próprio Vítor Bento se a do autor do artigo) casa bem com a pulsão burocrática e centralista de Bruxelas e o que se passou recentemente com o BANIF.
A pergunta, então, é esta: é melhor para nós dependermos exclusivamente de grandes bancos estrangeiros, mal geridos sob a tutela de gente que não conhecemos (há uma perversidade inerente ao sistema financeiro internacional, ainda não resolvida, que faz com que nem se obrigue a que os bancos sejam suficientemente pequenos para as falências não terem efeitos sistémicos, nem se garanta que sejam geridos por gente que não seja com frequência gananciosa e inepta) ou termos alguns bancos nacionais geridos por gente da confiança política do poder do dia, com as distorções que isso implica, pagando o preço de más alocações de recursos e suportando patetas da Academia metidos a banqueiros quando nem bancários sabem ser - pecha de que Bento não sofre, mas afecta muitos dos seus colegas?
Por mim, escolho os meus. Que é precisamente o que todos os estrangeiros fazem.
Blogs
Adeptos da Concorrência Imperfeita
Com jornalismo assim, quem precisa de censura?
DêDêTê (Desconfia dele também...)
Momentos económicos... e não só
O MacGuffin (aka Contra a Corrente)
Os Três Dês do Acordo Ortográfico
Leituras
Ambrose Evans-Pritchard (The Telegraph)
Rodrigo Gurgel (até 4 Fev. 2015)
Jornais