Há muitos anos, mais de 42, antes das maravilhas do "poder local", não havia eleições autárquicas. Quem escolhia os presidentes das câmaras era o dr. Salazar através do Ministério do Interior. Como sucedeu naquele caso. E no dia agendado o povo reuniu-se no Salão Nobre para assistir à sessão solene da tomada de posse. Chegada a sua vez, o alentejano levantou-se e discursou:
- O meu nome é Francisco Palma e fui nomeado para ser o novo presidente da Câmara Municipal de Serpa; - ouviu-se a si mesmo, baixou o tom de voz, e tirou a conclusão: - O que é que não irá por esse país fora...
Lembrei-me desta franqueza a propósito de Guterres, que chegou agora a presidente do Mundo. Também ele terá de apresentar as suas perplexidades, cinquenta e tal anos depois do presidente Palma.
A ONU é uma organização onde cinco países têm, em certas matérias, direito de veto; e onde a maioria dos países membros tem regimes não-democráticos.
Há boas razões históricas e práticas para o direito de veto - se não existisse, a ONU não teria possivelmente nascido, e, se tivesse, já haveria implodido há muito: ninguém imagina a China, ou os Estados Unidos, ou qualquer dos outros membros permanentes do Conselho de Segurança, a aceitar que a comunidade internacional lhe imponha decisões que considerem ir contra os seus interesses vitais. E a circunstância de a maioria dos países serem governados por ditaduras, ou autoritarismos sortidos, ou teocracias, ou democracias de fachada, não obsta a que, geralmente e na ordem internacional, os países saibam bem o que lhes convém.
Este arranjo é sem dúvida discutível e seguramente imperfeito. Mas a longevidade mesma da organização mostra a sua utilidade - o mundo é decerto mais seguro se houver mecanismos permanentes de diálogo entre diplomatas representando interesses diferentes ou antagónicos, assim como o velho jogo do poder ganha em transparência se exposto aos olhos experimentados e cínicos dos profissionais da política internacional e ao escrutínio da comunicação social.
Infelizmente, a ONU é também um monstro burocrático. Nenhuma burocracia se reforma por dentro e nenhuma, entregue a si própria, deixa de crescer em dimensão e poder. E como a reforma da ONU interessaria a quem paga muito mas a maioria paga percentagens irrisórias do orçamento (o mínimo fica abaixo de 0,01%, o máximo em 22%, que é o que os EUA suportam, quando cinco países apenas suportam mais de metade do orçamento), resulta que a multidão tem pouco interesse em alterações das quais não beneficia, para já não falar da imensa massa dos funcionários, da própria ONU e das suas agências, cuja maioria não é originária nem do Grande Satã nem de nenhum dos grandes países.
Recentemente, o Comité dos Direitos da Criança da ONU resolveu criticar a alegada passividade da Igreja Católica sobre a pedofilia.
Pessoalmente, não acho que a Igreja Católica, ou outra qualquer igreja ou confissão, esteja acima de críticas de pessoas e organizações, nem sequer me parece que a hierarquia esteja isenta de culpas na matéria. Mas que organizações multinacionais sob a égide da ONU "exijam" isto e aquilo de uma Igreja, indo a ponto de emitir opiniões doutrinárias sobre questões como o aborto e a contracepção, releva para mim de puro e simples abuso e ingerência: o direito à livre opinião existe para as pessoas e as organizações de pessoas; os Estados não têm opiniões, apenas interesses. Ingerência selectiva, de mais a mais - práticas como a mutilação genital feminina, ou casamentos forçados de menores, são objecto das mesmas atenções? Ah.
Pois este Comité resolveu "aconselhar" Portugal por causa das escolas de toureiros, nas quais há, pelos vistos, cerca de 100 alunos. A activista e advogada da FFW (WTF?) esclarece: "Se Portugal quiser cumprir a Convenção dos Direitos das Crianças terá de definir os 18 anos como idade mínima para estas atividades".
Suponho portanto que as autoridades irão, prestimosas, alterar a legislação de modo a que as crianças só possam participar nestas actividades cruéis e desumanas a partir dos 18 anos, passando directamente das mãos do pediatra para as alegrias do voto.
Seja: um país de cócoras perante quanta patetice estrangeira se inventa em nome de noções absurdas de modernidade e bem-pensismo não pode senão começar por proibir as touradas a adolescentes; e depois outra agência qualquer chamará a atenção para a barbárie da tourada para adultos, como aliás já começa a suceder.
Já agora: estes senhores tão preocupados com os desmandos da Igreja Católica e a barbárie de alguns povos atrasados, são de onde? Fui ver. Itália, Brasil, Áustria, Noruega...não está mal. Gana, Bahrain, Arábia Saudita, Egito, Rússia...hum.
Antes que esqueça: os EUA não fazem parte. Devem imaginar que os assuntos americanos são para resolver por americanos, ganda malucos.
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