O meu pai dizia, já não me lembro se de autoria própria, se citando algum dos mestres que teve ao longo da vida, e já não tenho possibilidade de lho perguntar para me esclarecer, "Uma asneira dita com convicção não é uma asneira, é uma opinião". Se a frase não era da autoria dele podia bem ser, porque continha a mistura de bonomia e ironia nas proporções exactas que faziam o retrato dele e que eu tento, com o gosto genuíno por elas que lhe herdei nos genes, e alguma aproximação na parte da ironia, mas muito longe na da bonomia, não desonrar.
A deputada Mariana Mortágua tem sempre opiniões para dar e vender, tanto no parlamento, como nos écrans de televisão de onde raramente se ausenta mais de vinte e quatro horas, como em colunas que lhe são concedidas para as publicar em jornais. Tanto a qualidade do asneirol como o débito estão assegurados, e a convicção é o seu middle name, de modo que, de opiniões, estamos conversados.
E publicou mais uma destas, com a graça de "A borla fiscal ao Estado chinês", no Jornal de Notícias, onde lamentou o excelente negócio realizado pelos investidores chineses na EDP por, diz ela, terem conseguido receber nos últimos anos, que são cinco, digo eu, 725 milhões de euros em dividendos, que conseguem subtrair ao IRC através do recurso a holdings em paraísos fiscais e às engenharias fiscais habituais, mesmo entre capitalistas socialistas.
Eu, por mim, nem lhe leria a opinião, sei que ela diz as suas asneiras sempre com grande convicção mas que não têm nada que se aproveite, mas como vi gente a citar esta, porque lhe parecia bem apanhada, achei que valia a pena desenganá-la. À gente que citou esta opinião. Vamos lá então ao desengano.
Asneira! O Estado português recebeu à cabeça 3 mil milhões de euros do investidor chinês pelas acções que lhe vendeu, mais do quádruplo do que já teria deixado de receber em dividendos, e isto se os lucros e a política de dividendos tivessem sido semelhantes sem a entrada do accionista chinês, hipótese que não tenho meios de validar mas posso aceitar como boa para seguir em frente na discussão. Entre o dinheiro certo que recebeu à cabeça e o incerto que tem deixado de receber o Estado ainda está a ganhar, portanto, 2.275 milhões de euros até agora. Além disso, com esses 3 mil milhões pôde amortizar dívida e deixar de pagar os juros correspondentes que, se a dívida amortizada remunerasse os credores a juros de 4% semelhantes aos dos empréstimos do FMI, significaram 120 milhões por ano de poupanças, ou já 600 milhões de ganhos certos acumulados nestes cinco anos. Tudo junto, o Estado português ainda tem no bolso mais 2.875 milhões de euros do que teria se não tivesse privatizado a EDP. As privatizações são ruinosas para o Estado, mas muito moderadamente ruinosas, pelo menos quando se sai da retórica das colunas de opinião da Mariana Mortágua para se fazerem algumas contas.
Asneira! É tão estúpido dizer que pagar dividendos aos accionistas de uma empresa é entregar-lhes dinheiro do bolso dos clientes, como seria dizer que um banco paga os juros aos depositantes com dinheiro tirado do bolso dos devedores que lhe pagam juros. Os dividendos são a remuneração dos capitais próprios investidos nas empresas, na mesma medida em que os juros são a dos empréstimos recebidos. As responsabilidades contratuais são diferentes para com credores e accionistas, os empréstimos têm de ser pagos e os juros são fixados contratualmente, enquanto os capitais próprios não têm que ser devolvidos e os dividendos são o que puder ser, e pode não poder ser nada, pelo que é expectável os accionistas desejarem uma remunerção contingente dos capitais investidos superior à remuneração certa exigida pelos credores, mas tudo, dividendos e juros pagos, constitui remuneração de capitais investidos na empresa, sejam na rubrica de Capitais Próprios, sejam na de Passivo.
Asneira! Os três mil milhões de euros do investimento financeiro pagos pelos novos accionistas estrangeiros aos accionistas portugueses que lhes venderam as participações foram injectados na economia nacional onde ficaram disponíveis para, entre outras coisas, investir, e onde têm a mesma capacidade de criar emprego que quaisquer outros três mil milhões de euros investidos por portugueses ou estrangeiros em projectos de investimento físico.
Aliás, é justamente esta possibilidade de canalizar poupanças feitas por quaisquer aforradores para investimentos feitos por quaisquer investidores que os primeiros nem sequer conhecem, não lhes metem o nariz nos negócios, e a quem não pedem mais do que remunerar os capitais investidos o suficiente para rentabilizar as suas poupanças, esta independência entre os que poupam porque têm competência e capacidade para poupar, mas não necessariamente para investir, e os que investem porque têm competência e capacidade para investir e multiplicar o investimento, mesmo que não disponham de capital suficiente, esta oportunidade de cada um fazer aquilo que sabe melhor, que faz do capitalismo o sistema mais formidável de criação de prosperidade, liberdade e democracia da história da humanidade.
Tudo junto, o sucesso até agora do investimento chinês na EDP medido pelos dividendos que já conseguiu receber não é caso para nos alarmar, e tanto mais quanto a associação aos accionistas chineses lhe puder ter aberto as portas a novos negócios fora do tradicional de extracção de rendas do monopólio e de reembolso dos favores prestados ao governo socialista Sócrates & Pinho, onde a empresa possa ampliar os seus lucros e o valor para todos os accionistas, incluindo os chineses, mas também os portugueses. No limite é o facto de a empresa enriquecer mais ou menos em novos negócios por ter estes accionistas que determina se Portugal enriquece ou não por ter privatizado a empresa.
Mas já não é tão evidente assim a utilidade de as Universidades portuguesas atribuirem licenciaturas em Economia a pessoas que não utilizam os conhecimentos que lhes foram ministrados para qualquer finalidade onde pudessem ser socialmente úteis, nomeadamente para a economia, mas apenas para colorir com linguagem técnica, que impõe respeito aos leigos por lhes parecer erudita, mesmo que seja para dar forma vocal ou escrita a asneiras, as histórias da carochinha em que acreditam ou que acreditam que devem contar às massas, como se a Economia fosse uma alternativa a Românicas e a Germânicas.
Eu admiro quem consegue detectar inteligência nesta forma de vida, porque eu não lhe consigo detectar nenhuma, mas apenas uma retórica simplória baseada em pressupostos delirantes e mil vezes negados pela realidade e expressa com a auto-suficiência dos inocentes e dos tolos.
No caso presente, e geralmente sempre que fala, em dois pressupostos.
É o pressuposto mais interiorizado por todos os socialistas do século XXI, os keynesianos graças a Deus, moderados ou extremistas. Foi usado, refinado e quantificado pelos doze sábios convidados pelo António Costa para desenvolver o Cenário Macroeconómico "Uma Década para Portugal" e, depois, no Orçamento de Estado de 2016, em que intervieram alguns desses mesmos sábios. Que conseguiram garantir que "por cada euro de estímulos, retoma devolve quatro".
Este pressuposto gera infinitas possibilidades interessantes. Por exemplo, se se estiver à espera de um deficit de 3% e se aumentar em 1% a despesa, consegue-se um ganho de 4% na execução orçamental que anula o deficit. Genial. Imagine-se aumentar a despesa em 33% e obter um retorno de 132%, um excedente orçamental suficiente para liquidar de um trago toda a dívida pública portuguesa, como se fosse coisa de criança? Fabuloso. E é um pressuposto irresistivelmente apelativo porque, além de oferecer aos seus crentes o consolo desta esperança de acabar com os problemas financeiros sem dor, como funciona à base de devolver rendimentos às pessoas, ou seja, de distribuir dinheiro aos eleitores, também tem um potencial muito simpático no plano eleitoral. É milagroso.
O único senão é que não funciona. Foi usado pelo governo socialista em 2009, e a economia não cresceu. Pelo contrário, o governo estimulou Portugal até à beira do abismo financeiro de onde só se livrou de cair in-extremis, evitando uma catástrofe económica e social, e provavelmente política, com o plano de assistência financeira da troika, de onde até se saiu mais bem do que mal, comparando com o percurso trágico de outros países como a Grécia, com um sofrimento que atingiu muitas pessoas e irritou outras, nem sempre as mesmas. Está a ser usado por este governo, e, ao fim de quase um ano, a economia também não cresce, pelo contrário, deixou mesmo de crescer, com consequências para a economia, a sociedade e as finanças públicas que mais lá para diante, um dia, se revelarão. Se bem que, no caso presente, não se possa desprezar a contribuição que a retórica idiota dos jovens dirigentes socialistas, de dentro e fora do PS, de ameaçar o banqueiro alemão, os mercados, as agências de rating, os patrões, os investidores, os proprietários, os aforradores, até os jornalistas neoliberais, tem tido para fomentar o desinteresse de quem tem dinheiro por investi-lo e criar emprego, crescimento e riqueza, que amanhã qualquer jovem socialista idiota mas voluntarioso pode decretar ir buscar com o aplauso do partido do governo.
Mas, por mais que não funcione, por mais que vá sendo negado pela realidade, quem crê neste pressuposto não desacredita dele facilmente. O que é o caso de muitos, e também da deputada Mariana Mortágua.
Curiosamente, até há evidência empírica de investimentos que proporcionam um retorno de quatro euros por cada euro investido. Não na economia, mas na saúde mental. Isto anda tudo ligado.
A verdade é que aumentar o deficit aumenta o montante total da dívida que o financia, porque não cai dinheiro do céu para o financiar, e os juros pagos por ela, não apenas por aumentar o montante em dívida sujeita a juros, mas também por aumentarem as taxas de juro exigidas pelos credores para continuarem a conceder crédito a quem tem um endividamento crescente, o que faz aumentar os juros ainda mais que proporcionalmente à dívida. Ou seja, é uma grande alhada.
O pressuposto seria inteligente se se tivesse a intenção de não pagar a dívida, e esta metade do requisito ela cumpre-a sem hesitação, e se comulativamente os credores continuassem a emprestar cada vez mais dinheiro a quem não tem a intenção de o vir a reembolsar no futuro. Só que, esta segunda metade do requisito, os credores não são tão otários que a garantam, e em vez de otários são autoritários, como lhe chamam alguns, e não confiam o dinheiro deles a caloteiros que não o tencionam reembolsar. E, infelizmente é da lógica matemática, verdadeiro "e" falso dá falso. Tudo junto, o pressuposto é mais burro que inteligente, assim como os que acreditam nele, porque assenta na crença que os credores são mais burros do que inteligentes, e nem foi assim que eles enriqueceram, nem sempre são assim.
Não se lhe conseguindo detectar inteligência, é de toda a justiça reconhecer-lhe pelo menos uma convicção ímpar. Pelo, como dizia o meu pai, suponho que citando alguém que não retive e infelizmente já não lhe posso perguntar, se
ela é, pelo menos, uma pessoa de opiniões.
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