Podemos portanto ficar descansados: Uma vez por ano teremos direito a saber quanto dinheiro foi transferido para as Ilhas Caimão, e as do Canal, e poderemos sonhar com esses lugares inacessíveis aonde os famosos e os poderosos se deslocam nos seus aviões privados, ou no mínimo nas suas viagens em primeira classe, para se encontrarem com outros plutocratas em festas babilónicas onde mulheres esculturais com menos roupa ainda que princípios se cruzam com jovens atléticos, igualmente proficientes no court de ténis e nos tálamos vagos momentaneamente de maridos.
Jornalistas agudos explicarão porém que a maior parte do dinheiro se destinou a transacções comerciais, sendo os paraísos fiscais locais onde os credores chineses, ou sauditas, ou de outras nacionalidades, exigem, decerto por razões suspeitas, ser pagos; e, para quem for além dos cabeçalhos, explicarão que na realidade os paraísos em questão são em geral lugares pouco aprazíveis e as empresas lá sedeadas meras caixas de correio.
Resta que o propósito da lei não é, como não era o do despacho anterior de Sérgio Vasques, uma das sinistras figuras que ocupou o lugar de secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, exercer qualquer espécie de fiscalização: dizer aos cidadãos todos os anos quanto dinheiro saiu do país para destinos onde os seus donos não são esbulhados demencialmente contribui zero para a fiscalização da evasão fiscal; mas ajuda muito à ideia de que os paraísos fiscais não deveriam sequer existir, como pensa o PCP e se esganiça a dizer o BE; e predispõe o público para a ideia de que o contribuinte é dono apenas do que a autoridade democrática entende que pode conservar do que é seu, sendo tudo o mais um roubo.
É isto que explica que pouco importa que os secretários de Estado deem aulas na Católica ou sejam até do CDS: todos acham que a medida do seu sucesso é o aumento do esbulho; que a riqueza cresce pelo efeito de a transferir para o Estado; que, a despeito das evidências, se todos pagarem o que "devem" todos pagarão menos; e que a diminuição dos direitos dos contribuintes é um mal necessário, em nome do bem maior que é o combate à evasão fiscal. Combate tão importante que já hoje se dá como pacificamente aceite que a inversão do ónus da prova, inadmissível em processo penal para o crime de furto, ou outro qualquer, é rotineira para o mesmo crime se praticado por qualquer funcionário por excesso de zelo, deficiente interpretação da lei ou enquadramento dos factos tributários.
Não é o mesmo crime, dirá por aí algum jurista, porque não foi praticado para benefício próprio, mas sim o da comunidade. E isto se aceita com naturalidade, sem perceber que os maiores crimes do século passado foram cometidos em nome de um bem maior. Ontem a igualdade material dos cidadãos ou a pureza racial, hoje a justiça fiscal. Um progresso, sem dúvida, porque ninguém morre, a não ser talvez de fome, porque as mesmas regras que permitem perseguir ricos, que se podem defender, não o permitem aos pobres, porque a defesa é cara.
Daí que a autoridade fiscal possa impunemente, se estiver para aí virada, enviar cartas a exigir o pagamento de impostos já pagos a milhares de contribuintes, e estes se vejam coagidos a pagar de novo se não tiverem o papelinho que prove que pagaram; ou que existam duas fiscalidades para empresas, as que têm e as que não podem ter aconselhamento fiscal.
Abençoado mundo novo: perseguem-se os ricos porque o são, com a legislação que os pobres sancionaram por inveja e ressentimento; e os segundos com os mesmos instrumentos porque o Estado é insaciável ainda que não imprudente ao ponto de atacar todos, ou sequer a maioria, da mesma forma, nem ao mesmo tempo. Para isso usa outras formas, que são as taxas e os impostos indirectos embutidos nos preços.
A Assembleia aprovou e Marcelo promulgou sem reservas e sem surpresa: seria decerto muito pouco afectuoso da parte dele ter uma opinião diferente da da maioria da opinião pública, que lidera em estima na exacta medida em que a serve com abjecto seguidismo; daqui a um ano haverá uma listinha no Expresso, que terá tanta utilidade como a que tiveram os Panama papers; e o inquérito rigoroso que se ia fazer aos 20 maraus que tiveram o arrojo de pôr dinheiro ao fresco sem serem fiscalizados entre 2011 e 2014 terá o mesmo destino que tiveram todos os outros inquéritos rigorosos que o Estado manda fazer a si próprio. De resto, o papel do incidente já está cumprido: confortou as pessoas na ideia de que os paraísos fiscais são cavernas de Ali-Babá, quem para lá transfere dinheiro ladrões, e quem supervisiona o processo corruptos.
Provas não são precisas porque a acusação está feita. E, no caso de Paulo Núncio, com uma certa justiça poética: o homem é sério mas burro. Só um burro prossegue políticas socialistas com a esperança de que os seus, que não são socialistas, o aprovem porque são seus, e os socialistas porque são socialistas; só um patarata suspende a publicação de umas listas inócuas na prática, salvo na sua carga ideológica, que provavelmente não percebe, sob pretexto de não alertar os infractores; e só um ignorante julga que o aumento da receita fiscal pela via da diminuição dos direitos dos contribuintes (e pela transformação do cidadão comum em fiscal com o engodo de prémios sorteados) seria, mesmo no contexto da troica, alguma obra que ajudasse seriamente, a prazo, na recuperação do país.
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