Quinta-feira, 16 de Julho de 2015

Não temos vagar para ler

A ASAE, no cumprimento da sua missão pedagógica de ensinar às empresas como negociar, deu um claríssimo exemplo de como fazer "menos gala em ser forte com os fracos e mais forte com os fortes", impondo uma multa de um milhão de Euros ao grupo Jerónimo Martins, uma conhecida associação de malfeitores.

 

Parece que a escumalha que gere o Pingo Doce vendeu produtos abaixo do preço de custo, e isto gerou uma onda de indignação no seio da concorrência, bem como um intolerável peso na consciência daqueles consumidores que, desde a linda vila de Monção até à Mexilhoeira Grande, concelho de Portimão, adquiriram para cima de 3000 pacotes de fraldas de bebé e uma quantidade indeterminada de tronchudas e maçãs reineta.

 

Estes consumidores gananciosos, porém, nada têm a temer. A ASAE, ao contrário do que tem vindo a ser a sua prática, agora está virada para os fortes - ai deles, se desrespeitarem o DL n.º 166/2013, de 27 de Dezembro, PIRC para os entendidos.

 

Fui ler. É coisa de tomo: só o preâmbulo é maior que certos contos de Pessoa, recentemente publicados, e, como alguns deles, igualmente surreal. O propósito é, parece, a transparência nas relações comerciais e o equilíbrio das posições negociais entre agentes económicos. Gente ingénua poderia supor que, nas relações comerciais, o segredo é a alma do negócio; e que o equilíbrio das posições negociais resulta ofendido com intromissões do Estado - se o Pingo quer vender, por exemplo, tendas de campismo abaixo do preço de custo, e há quem as queira comprar, a situação está perfeitamente equilibrada. O prejuízo que daí decorra é um problema da gerência e dos accionistas; e a concorrência esfregará decerto as mãos por ver este prejuízo no vizinho.

 

Mas não. Este diploma prolixo, que se espraia por 21 artigos e centenas de alíneas, abre a porta a que a ASAE vá espiolhar as transacções de quem quer que tenha a porta aberta; e regula tudo o que se pode imaginar, e também o que ninguém sonharia, deixando apenas um assinalável vácuo legislativo para a circunstância de algum agente económico, no decorrer de uma transacção, a interromper para ir ler, para o quarto de banho, sob pretexto de uma súbita indisposição, os comandos legais.

 

O ministro teve o seu sound bite; a populaça meneará com aprovação a cabeça - é para esse fássista do velho Soares dos Santos, e os outros poderosos, aprenderem; a imprensa e a televisão encheram chouriços, de graça, com a notícia; a Oposição também terá decerto alguma coisa a dizer, provavelmente que há muito mais casos a requererem a intervenção morigeradora das polícias; e o próprio grupo, em tribunal, anulará a coima, que a lei tem tanto artigo, e tanta excepção, que o senso há-de passar por algum buraco.

 

Por mim, redigiria um novo diploma, a assinar pelos mesmos quatro ministros, além do Primeiro, que o subscreveram, com o seguinte preâmbulo:

 

A frequência de Bruxelas, feiras, encontros, conferências, workshops, entrevistas, debates e cocktails, e as viagens para acudir a tudo isso, rouba-nos o tempo necessário para prestarmos atenção à papelada que os serviços nos põem debaixo do nariz para assinar. E tendo os serviços uma tendência, natural em todas as burocracias, para regularem tudo o que mexe, fomos levados a querer corrigir defeitos do mercado, tarefa que manifestamente excede as nossas luzes. Razões por que o presente diploma revoga a legislação que imprudentemente levámos o senhor Presidente da República a promulgar, nomeadamente o denominado PIRC. Do mesmo passo, tomam-se providências para que os funcionários responsáveis pelo deslize que involuntariamente cometemos passem de imediato ao regime de mobilidade.

publicado por José Meireles Graça às 11:45
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Quarta-feira, 2 de Maio de 2012

O Pingo Amargo

As centrais sindicais fazem parte do mobiliário da vida social, e têm assento no Conselho Permanente de Concertação Social, para manter um estado de coisas. Uma parte dos sindicalistas representa aquilo que o PCP acha que são os interesses dos trabalhadores, isto é, uma sociedade comunista adaptada às circunstâncias locais, outra parte aquilo que o PS acha que são os interesses dos trabalhadores, isto é, uma sociedade nórdica imaginária adaptada às circunstâncias locais, e, finalmente, uma outra ainda acredita representar os trabalhadores propriamente ditos, enquanto na realidade lhe cabe o papel de compagnon de route das duas primeiras.

Supõe-se que o Governo defenda uma certa ideia de interesse nacional, na concretização do qual vai negociando com os sindicatos e os "representantes" dos patrões, de modo a atenuar e, preferentemente, anular tensões sociais.

Tem funcionado bem. É porém carote (são os contribuintes que pagam o Conselho, e indirectamente as mordomias de muito sindicalista) e implica uma quantidade considerável de língua-de-pau: A CGTP nunca está satisfeita, nem poderá estar, por ser obrigada a dizer que quer aperfeiçoar o sistema que na realidade visa destruir; a UGT vive em perpétuo estado de fingimento por, concordando no essencial com o que o Governo do dia quer, ser obrigada a mostrar serviço; as associações patronais, que com frequência ainda são menos representativas que os sindicatos, tentam limitar os estragos das cedências dos governos; e estes colocam a barra mais alto, de modo a simular cedência, a fim de evitar "convulsões sociais".

A geringonça por estes dias anda emperrada: O Governo não pode fazer concessões para comprar paz, Troika oblige; a CGTP discorda das exigências que o protectorado implica, e hesita entre achar que a situação está madura para a Revolução, e achar que ainda não; a UGT quer, mas não quer, cumprir as exigências, tal como o PS, e espera que a "Europa" de uma forma ou de outra descalce a bota; as associações patronais quereriam mais cortes na despesa, menos impostos e mais liberalização, mas não tantas falências nem tanto desemprego - a coisa assusta.

O ambiente radicaliza-se. E é aqui que entra o Pingo Doce, o 1º de Maio e o golpe do saldo a 50% de desconto.

Se fosse apenas marketing marqueteiro, seria difícil de entender: i) o Pingo Doce não tem falta de notoriedade; ii) A clientela pode entrar em estado frenético com a enormidade do desconto, mas não vai no futuro deixar de comparar preços, e a fidelidade só se manterá se a cadeia não tentar recuperar depois o que perdeu agora; iii) A iniciativa não arredará concorrentes do caminho; iv) Salvo algum consumo oportunista (Glenfiddich Reserve 12 years a metade do preço - hum, a fome é negra), o grosso foi de bens de primeira necessidade, cuja venda se vai ressentir durante algum tempo.

Não, contas bem feitas isto não é marketing, golpe de génio comercial ou o catano: é política.

E é por o ser que a direita e a esquerda blogosférica salivam: uns porque acham que o empresário, quando falha, é incompetente e criminoso e, quando tem sucesso, é explorador e ladrão, e nada do que faça pode realmente beneficiar o trabalhador; os outros porque apreciam ter sido feita a prova de que o trabalhador mediano troca com facilidade feriados, passeatas a pé, bandeiras, amanhãs que cantam e ilusões por três carrinhos de compras a saldo, cheios até às bordas. Nada que não se soubesse, mas que ficou demonstrado de forma um tanto crua e por conseguinte imperdoável por parte da esquerda, que não aprecia que lhe desfaçam as ilusões.

A mim me parece que o Sr. Alexandre Soares dos Santos tem tanto direito a fazer política como outro cidadão qualquer. E que, dada a sua merecida notoriedade pública, não lhe faltam púlpitos. Mas se a porta do sucesso é estreita, muito estreita, e isso justifica a admiração por quem por ela conseguiu passar, o génio e as qualidades que exornam quem o conseguiu não dá garantias de nenhuma forma de lucidez na gestão da coisa pública. Tal, e simetricamente, como o sucesso na carreira política, até mesmo de estadistas, nunca deu nem dá nenhuma garantia de igual performance na carreira empresarial. É por isto aliás, entre outras razões, que o Estado empresário costuma ser um empresário falido.

Já bastam as listas de intelectuais e artistas a quererem influenciar eleitores com a imaginária autoridade que lhes dão as suas carreiras; os sindicatos a quererem fazer passar de contrabando sociedades alternativas, à boleia de reivindicações laborais: era o que mais nos faltava se, para fazer vingar pontos de vista políticos, os empresários desatassem a utilizar as suas empresas para fins que são alheios às próprias empresas.

O Pingo Doce tem todo o direito de tomar as decisões que entenda para a prossecução dos seus fins; mas não tem o direito de ser um player político, senão na exacta medida em que o seu sucesso, em Portugal e sobretudo no exterior, é um exemplo de que o capitalismo funciona.

publicado por José Meireles Graça às 18:11
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