A direita não tem, graças aos bons préstimos do comunismo, falta de mártires, exactamente como a esquerda não a tem graças aos bons préstimos do fascismo, ou dos regimes autoritários de direita, para não melindrar os que por falta de rigor técnico ou por defesa da reputação própria não gostam que se designe genericamente de fascismo qualquer regime autoritário de direita, mesmo se o termo, mesmo que possa estar ferido de alguma inexatidão teórica, seja adequado para designar aqueles que designa por ser perfeitamente claro que são eles, e não outros, os nomeados.
Mas hoje em dia há uma direita que não se satisfaz com os mártires do comunismo, que no entanto ainda continua a produzir mártires, nem se revê mais no combate da direita clássica ao comunismo em defesa da democracia liberal com economia de mercado, até prova em contrário a organização de sistema político e de sociedade mais livre e próspera de todas quantas foram experimentadas ao longo da história da humanidade, mas se reclama vítima de outros totalitarismos que encontra exactamente nas democracias liberais com economia de mercado do mundo ocidental em que vive e que se dedica a combater. A direita clássica combatia em defesa deste sistema, esta nova direita combate-o. O mais denunciado de entre eles é o totalitarismo do politicamente correcto.
Infelizmente para quem quer à viva força encontrar mártires, e felizmente para os mártires propriamente ditos, o politicamente correcto não dispõe dos instrumentos clássicos do comunismo e do fascismo para os produzir. Não prende nem tortura nem assassina as suas vítimas, não lhes arranca unhas nem olhos nem lhes parte ossos para lhes arrancar confissões ou declarações de arrependimento ou de conversão, não as obriga sequer a passar horas ou dias de pé em torturas de sono, não as condena a trabalhos forçados em regiões inóspitas onde a probabilidade de sobreviver ao cumprimento da pena é quase nula nem a internamentos em instituições psiquiátricas de onde se sai doido ou morto. A ofensa mais frequente com que o politicamente correcto os martiriza é do domínio do name calling: chama-lhes racistas, xenófobos, homofóbicos, misóginos, ou mesmo fascistas quando os quer injuriar genericamente sem se dar ao trabalho de procurar a injúria mais adequadas a cada circunstância específica.
É verdade que os vigilantes do politicamente correcto se eriçam e exigem punições exemplares para os que, por descuido ou com dolo, dizem coisas que lhes violam a exigência de um discurso bactereologicamente puro de focos de racismo, xenofobia, homofobia, misoginia ou outras fobias que combatem, por vezes formando grupos de linchamento verbal, mas apenas verbal, é verdade que os governos formam Comissões para satisfazer as exigências destes grupos preenchidas por gente que pensa do mesmo modo que eles, é verdade que as campanhas mediáticas de sensibilização para essas desigualdades estimulam as queixas e fazem aumentar o seu volume de ano para ano, mas também é verdade que quando chegam a tribunal a esmagadora maioria das punições aplicadas por essas comissões são neutralizadas. São mais as vozes do que as nozes.
Podemo-nos queixar de eles serem irritantes, podemo-nos queixar de lhes ser dada mais trela do que merecem, podemo-nos queixar da evidência de que se pudessem e dispusessem dos meios de repressão apropriados nos infernizariam a vida, e se viessem a conquistar o poder o fariam, mas dificilmente nos podemos queixar de vivermos martirizados por eles. Até porque não têm esse poder.
E portanto, sentindo necessidade de apresentar mártires e à falta de vítimas de ossos partidos ou olhos arrancados, ou escondidas em valas comuns, ou desaparecidas no oceano depois de terem sido lançadas de helicópteros, esta direita que combate o sistema tem de recorrer à criatividade para criar os mártires do politicamente correcto. E o melhor que tem arranjado é um inglês que se tornou conhecido como Tommy Robinson.
E quem é Tommy Robinson?
É um activista político inglês da classe operária, de 36 anos, de nome verdadeiro Stephen Yaxley-Lennon, que fez parte em tempos da English Defence League, um movimento de protesto da extrema-direita com historial de activismo violento contra o Islamismo militante, que significa mais ou menos um grupo de jovens que dedicam o seu tempo a andar à porrada na rua com grupos de jovens muçulmanos. Tem cadastro com condenações por diversos tipos de crimes, da violência em recintos desportivos, ou hooliganismo puro e duro, à fraude hipotecária, passando por uma tentativa de entrar nos EUA com um passaporte falso para contornar a impossibilidade de obter visto para o seu passaporte com o cadastro criminal que conseguiu acumular. Em suma, não é flor que se cheire, nem ninguém que se ambicionasse para genro. Mas tem, para a extrema-direita populista, e eu chamo-lhe assim sem preocupações de grande rigor taxonómico mas porque identifica bem aqueles de quem estou a falar, a vantagem de personificar a virtude das origens humildes que combatem os pecados das elites, e o curriculum vitæ de denúncia persistente do islamismo reforçada com doses industriais de cacetada em muçulmanos.
E de que é vítima Tommy Robinson?
De limitações da sua liberdade de expressão, uma forma de os seus defensores designarem uma série de desobediências a ordens de tribunais, por exemplo por ter organizado uma manifestação à porta de um tribunal onde eram julgados muçulmanos por crimes de pedofilia que o tribunal proibiu por assumir que poderia ser aproveitada pela defesa para pedir a anulação do julgamento por pressão ilegítima sobre o juri, ou por ter sido apanhado em sessões de um julgamento de gangs violentos a filmá-lo e transmiti-lo online, ordens que eles consideram serem motivadas para calar as suas denúncias dos crimes dos muçulmanos e da protecção que o sistema lhes proporciona.
Ora nas ordens jurídicas das democracias liberais ocidentais, e exceptuando as sentenças dos tribunais cíveis a ordenar o pagamento de dívidas que não são automaticamente assimiladas a ordens do tribunal para as pagar mas apenas a um pretexto necessário para os credores instaurarem novos processos de execução com mais custas judiciais e de patrocínio, e estas são a aberração e não a virtude, a desobediência a ordens de tribunais é tratada com mais dureza do que o conceito que parece relativamente inócuo de desobediência sugere, com penas de prisão. E o Tommy Robinson, com a acumulação de desobediências a ordens de tribunais, acabou por ser mesmo condenado a uma pena de prisão nesta nova vida de activista político. Correndo, defendem os seus defensores, risco de vida por ficar internado em estabelecimentos prisionais onde também estão internados os seus arqui-inimigos, os muçulmanos, como se ele fosse uma flor de estufa frágil e não um calmeirão que passou boa parte da vida a rachar cabeças a golpes de matraca, e até já as veio rachar a Guimarães.
Acresce que ele recebeu convites de activistas da alt-right americana para visitar os EUA que não lhe foi possível satisfazer por estar impedido de entrar nos EUA, por causa de ter sido apanhado a tentar entrar com passaporte falsificado como se devem lembrar. O que junta às limitações à liberdade de expressão e ao encarceramento com risco de vida as limitações à liberdade de circulação.
E ficou instituído o mártir desta direita, censurado, encarcerado em risco de vida, impedido de voar para o mundo livre, como se estivesse num Gulag.
Só que não está.
Ser objecto de name calling pelos vigilantes do politicamente correcto, mesmo sabendo que eles, se pudessem, lhe limpavam o sebo, não faz de ninguém mártir, tal como ser olhado de lado por declarar homofobia não faz de ninguém vítima de heterofobia, tal como ser condenado em tribunal por crimes cometidos não faz do réu mártir, mesmo sabendo-se que as prisões estão cheias de criminosos, alguns deles violentos, mas apenas um criminoso aos olhos do tribunal que o condenou.
E se esta direita a que eu chamo por economia de palavras a extrema-direita populista anda à procura de mártires entre quem não é realmente martirizado como tantos foram ao longo da história por razões religiosas, políticas, raciais ou mesmo sexuais, e alguns ainda são, mostra uma pieguice insuportável. E se os procura entre hooligans anda mesmo aos caídos.
Ontem, em mais uma acção de rua da campanha eleitoral da candidatura que integro, em que paramos para conversar com todas as pessoas que conversam connosco quando as cumprimentamos e lhes distribuimos um prospecto informativo da candidatura ou simplesmente quando vêem que estamos a fazer uma campanha eleitoral e nos interpelam espontaneamente, veio à conversa connosco um eleitor habitual do PNR.
[Para os que não sabem, filiei-me no PSD a seguir às eleições de Outubro de 2015, no dia em que percebi que o golpe constitucional do António Costa com o BE e o PCP seria juridicamente blindado e que sustê-lo forçando um governo formado por quem ganhou as eleições seria politicamente insustentável, com chumbos no parlamento que paralizariam a governação, e quando fui convidado por pessoas íntegras, trabalhadoras e capazes para integrar a lista de candidatos da coligação PSD/CDS à Junta de Freguesia da Venteira, concelho da Amadora, não fui nem seria capaz de dizer que não.]
Não é nenhum cabeça rapada dos que vão para o Bairro Alto agredir africanos pacíficos. É um pai de família, deve andar por volta dos quarenta, trabalhador que se pode designar de operário especializado, com um discurso de conservador, de pessoa que respeita princípios como o trabalho a família e a decência, chamemos-lhe assim porque honra é um termo em desuso. E é natural de Rio Maior, se bem que more e vote na Amadora, e, sendo demasiado jovem para ter vivido o PREC em Rio Maior, tem bem presentes os testemunhos da família sobre o que fizeram, e para resistir a quê, os Riomaiorenses.
E anda chateado.
Anda chateado com o milagre da reposição de rendimentos a quem nunca os chegou a perder, porque nunca teve sequer que se interrogar se num fim de mês qualquer chegaria a receber o salário, ele, que nunca chegou a perder o emprego mas, no pico da crise, chegou a estar três meses sem receber porque a empresa para quem trabalha não tinha dinheiro para pagar salários.
E sobre políticas de rendimentos tem ideias tão claras e cristalinas como qualquer catedrático de Economia que mereça o título que detém. Tem bem claro que austeridade não é uma opção que se toma para fazer mal às pessoas, mas o estado natural quando se acaba o dinheiro. Tem bem claro que a austeridade em Portugal não resultou da má vontade das autoridades europeias, mas do facto de o governo anterior ter estoirado o dinheiro até ao fim e de nos ter colocado à mercê das condições impostas por quem esteve disposto a resolver-nos esse problema emprestando-nos dinheiro que mais ninguém emprestava. Tem bem claro que os cortes de rendimentos resguardaram na medida do possível as pessoas de rendimentos mais baixos e foram violentos essencialmente para pessoas de rendimentos altos ou muito altos, mas de emprego e rendimento garantido todos os fins de mês, e tem bem claro que são estes os maiores beneficiários da reposição de rendimentos. Se um dia houver uma subscrição pública para financiar a construção de uma estátua ao Pedro Passos Coelho pelo modo como salvou Portugal da bancarrota, ele contribuirá na medida das suas possibilidades sem a mais pequena dúvida.
Anda chateado com os grevistas da Autoeuropa que, usufruindo de salários e regalias que mais nenhuns operários usufruem em Portugal, a começar por ele próprio, e acomodados a usufruirem deles em toda a segurança apenas por lá estarem e sem terem que dar o litro para os merecerem, querem recusar adaptar os seus horários de trabalho às necessidades de sucesso e mesmo de sobrevivência futura da empresa, mesmo que essa adaptação implique receberem substancialmente mais sem aumentarem o horário de trabalho.
Anda chateado com o CDS, o seu partido natural de voto alternativo ao PNR, por ter desfeito a coligação em Loures por causa de o candidato do PSD André Ventura ter feito afirmações que ele considera de mera constatação da realidade e de apelo ao cumprimento da lei, ele e a maioria das pessoas, até eleitores do BE, inquiridas numa sondagem de opinião.
Anda chateado por ver perseguidas pelas autoridades e mesmo criminalizadas opiniões que ele tem e que considera tão legítimas e respeitáveis como as opiniões opostas que tendencialmente têm vindo a ganhar terreno como únicas o obrigatórias, como, por exemplo, as do comentador que disse que não queria as bloquistas para casar, nem dadas, ou as do André Ventura sobre a impunidade de facto que é tolerada aos membros da comunidade cigana que não cumprem a lei.
Anda chateado porque sente que a sociedade, empurrada por uma pequeníssima elite minoritária que sempre teve tudo sem conquistar nada e é desproporcionalmente acolhida, acarinhada e exibida na comunicação social, e com uma capacidade de intervenção política ainda ampliada pela configuração actual da base de sustentação do governo, anda a ignorar, encurralar e perseguir gente como ele que, em bom Português, se pode designar como a regular, decent, working, God believing, family guy.
Anda chateado, e com razão.
Da conversa connosco resultou ele ter acabado por afirmar que votaria na coligação PSD/CDS nas eleições autárquicas do dia 1 de Outubro, ficando cá nesse fim-de-semana em de o ir passar à sua amada terra. Não por ter assumido que estava a falar com racistas, xenófobos, sexistas, homofóbicos, nacionalistas ou adeptos da ditadura, os lugares-comuns que a opinião pública dominante politicamente correcta cola automaticamente a qualquer eleitor habitual do PNR sem sequer procurar saber o que ele pensa, mas simplesmente por ter sido escutado com atenção e respeito, e acordo naquilo que suscitou acordo em quem falou com ele.
E da conversa com ele resultou também uma certeza. Gente mais do que normal que se anda a sentir ignorada, encurralada e mesmo perseguida por uma sociedade manipulada por elites minoritárias com quem a esmagadora maioria da sociedade nem sequer se identifica, se não se vir minimamente escutada e respeitada pelos partidos do sistema, quer por lhes ignorarem as preocupações, quer por simplesmente os ambicionarem erradicar, vira-se para os partidos dos extremismos, que se apercebem da sua existência e do seu descontentamento, quando não medo, e se posicionam com oportunismo em posição de o canalizar para conquistarem um poder que depois não têm competência nem capacidade para exercer. Gente mais do que normal, repito.
E eu, que não sou trumpófilo, nem sequer moderado, gostava que a estupidez dos extremistas do politicamente correcto que, por trás de uma fachada de luta pelo direito à diferença andam de facto a lutar pela imposição de ser igual, fosse moderada, em vez de encorajada por oportunismo político, pelo bom-senso dos moderados, pelo menos dos que o têm, que no PS parecem escassear cada vez mais, mas no PSD e no CDS deviam ser mais assertivos do que têm sido, para não parecerem menos representativos do que são.
Ganhou as eleições o candidato que assobia às mulheres, emprega imigrantes ilegais para lhes pagar pior e foge aos impostos. Uma oportunidade para os fundamentalistas que defendem a imposição legal do que consideram politicamente correcto perceberem que andam com o carro à frente dos bois e reavaliarem os efeitos, até de ricochete, do seu fundamentalismo moralista.
Perdeu-as a candidata que tinha a esmagadora maioria dos jornalistas, comentadores e celebridades a promovê-la, e que ganhava as sondagens. Uma oportunidade para as empresas de sondagens repensarem os seus modelos de previsão e formação de amostras e para os políticos que também as perdem cá repensarem o seu investimento na propaganda baseada nos fazedores de opinião, nas celebridades e nas boas sondagens.
Resta-nos esperar que as ameaças de políticas que nos são desfavoráveis ou mesmo muito perigosas, do ataque ao comércio livre ao desinvestimento na Nato, do proteccionismo económico à desprotecção militar do mundo livre, políticas bloquistas da direita radical, fossem mais bragging para mobilizar os eleitores red neck do que intenções para levar até ao fim. Se levar, podemos vir a passar um mau bocado com a ameaça e a falta de escrúpulos dos nossos vizinhos de leste, como a Ucrânia está impiedosamente a passar, e o travão à globalização que tirou mais de mil milhões de pessoas da miséria extrema nas últimas décadas também travará o crescimento da economia global e dificultará ainda mais o nosso, e numa época em que as lideranças europeias não têm, nem a lucidez, nem a força, para neutralizar estas ameaças.
E a satisfação de ver a dor de corno dos asnos domésticos que correm a chamar porcos aos americanos que o elegeram em eleições livres e democráticas. Porca era a p. que os p.
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