O governo que tomou ontem posse começa com confortável superioridade prática: a expectativa benevolente da maior parte da comunicação social; a esperança, crédula nuns casos, céptica noutros, de boa fatia dos eleitores que a aplicação do programa da troica penalizou com um colossal aumento de impostos, despedimentos e cortes, de verem tudo revertido; o apoio de parte substancial dos alquimistas universitários da economia (isto é, dos catedráticos à la Centeno e seus discípulos, que acreditam que o Estado sabe investir, e por essa via induzir o crescimento que pagará no futuro o aumento de endividamento feito no presente e permitirá o alivio dos impostos entretanto aumentados); o apoio nominal dos partidos comunistas, presumivelmente mais sincero no caso do BE; e a simpatia de quase todas as capelas do PS, pelas quais Costa distribuiu equanimemente lugares, incluindo no Parlamento, onde deixou dois ou três galos de combate, como o gongórico Carlos César, o esfusiante Galamba e Trigo Pereira (este último para, albardado com a clássica autoridade doutoral com que em Portugal se embrulha o asneirol, defender ex cathedra o programa económico do PS).
E nem sequer esqueceu as nomeações politicamente correctas: uma negra e uma invisual, em relação às quais temos que fingir acreditar, sob pena de sermos considerados racistas ou insensíveis, que as respectivas condições não tiveram qualquer peso na escolha, no caso de acharmos, como eu acho, que o principal critério para o desempenho de funções políticas deveria ser... a competência para o desempenho de funções políticas ao serviço de uma ideia clara do que é o bem comum nesta ou naquela área - o que, naturalmente mas não principalmente, implica conhecimentos, e aconselhamento, técnicos.
A perfeição não é deste mundo, e as mulheres estão insignificantemente representadas. Não decerto porque tenha havido quaisquer tentações misóginas na escolha do elenco, mas porque não era possível, ao mesmo tempo, cobrir quase todos os ângulos donde possa surdir futuramente o inimigo dentro de portas e ter uma percentagem relevante de mulheres - as coisas são como são.
Este é o governo de um mágico da táctica política, capaz de transformar uma clara derrota pessoal numa vitória em todas as frentes, ou de um desprezível pote de banha ambiciosa - é como se queira, as duas descrições são boas e optar por uma ou outra depende sobretudo da inclinação política e do entendimento que se faça do que é ou não aceitável na gestão da carreira.
Falhará miseravelmente. Porque Portugal é hoje menos independente ainda do que o foi no tempo dos Filipes; a ideia de que escolhas democráticas se podem sobrepor à vontade dos credores, e obrigá-los a manter a bolsa aberta, não é mais do que uma demência que os comunistas por calculismo, alguns esquerdistas sortidos por ingenuidade, muitos socialistas por interesse e intelectuais como Pacheco Pereira por partirem de pressupostos errados, subscrevem; e a fé que norteia Costa de que a sua simpatia, que imagina irradiante, o seu palavreado, que supõe envolvente, e as suas artes diplomáticas, que julga superlativas, levarão a Europa a mudar, só poderia conduzir a bom porto, e mesmo assim transitório, se por artes mágicas uma vaga de fundo socialista, e socialista à maneira do sul, tomasse conta do continente, em particular dos países que pagam mais do que recebem.
Não é que não se possam impor condições aos credores - podem. Em sendo uma super-potência (o que sem dúvida somos, em relação ao Lesotho e Vanuatu) pode-se fazê-lo, inclusive, sem consequências visíveis. Mas em todos os outros casos, que são a quase totalidade, o resultado foi o desastre. E foi desastre mesmo quando, como com Ceausescu, se pagou mas reivindicando uma orgulhosa autarcia.
Isto na ordem externa. Na interna, os senhores jornalistas, mal pagos, com justificado receio do futuro, ressentidos pela maior parte, e pela maior parte ipso facto de esquerda, não resistirão a transmutar a sua simpatia em verrina à medida que se vá alargando o fosso entre o que este governo promete e o que alcançará; o contentamento dos eleitores evoluirá para tédio, e depois aversão, quando Costa for obrigado a defender cortes; e as consultas da comunicação social aos oráculos da economia, que hoje privilegiam uns, amanhã dirigir-se-ão a outros, que os há para todos os gostos.
Sobretudo o PCP, estancado que seja o risco mortal das privatizações que lhe sapariam o poder de facto e, com sorte, revertida uma ou outra, aproveitará o engrossar da voz da Europa que virá, fatal, para se recusar a trair os interesses das classes laboriosas, dos pequenos e médios empresários e do povo; e o novo presidente, se for Marcelo, e mesmo que não seja, não terá outro remédio, consultadas as sondagens, senão dissolver e convocar eleições.
Pode não ser assim. Costa, se conseguir endrominar os credores, conduzirá o país a um quarto resgate, quer Centeno, impante de satisfação por ser ministro, salte quer não salte a tempo; o PCP pode achar que lhe convém prolongar a experiência do governo, à boleia da sábia análise do que convém em cada momento ao avanço das forças progressistas; e de toda a maneira o futuro a Deus pertence.
E é mesmo a intervenção divina que seria necessária para a aventura, de uma maneira ou outra, não acabar mal.
O epitáfio para a merecida morte política de Costa poderá ser: Neste buraco jaz um político, no que a palavra tem de menos nobre. Cavou-o com as suas mãos, convencido de estar a lançar os caboucos para uma estátua à sua glória.
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