Barjona de Freitas tem avenidas em Lisboa e Vieira do Minho, e ruas em Barcelos, Cabeceiras de Basto e Penacova. Em Cabeceiras de Basto tem também um largo, e uma travessa em Penacova, mas em Coimbra, de onde era natural, não tem nada - pelo menos é o que se retira do google maps.
Em Lisboa, aliás, a avenida é uma ruazeca ali para os lados de Benfica, que vai dar à rua Conde de Almoster, este uma personagem ao que parece ilustre sobretudo por se ter dado ao trabalho de nascer.
Barjona de Freitas foi o pai da abolição da pena de morte e a sua ausência de popularidade e notoriedade compreende-se: ainda hoje não é certo que a maioria da população, se consultada, não fosse a favor da restauração daquela pena, sobretudo se ao cabo de uma campanha em que a imprensa, e a televisão, bombardeassem todos os dias a opinião pública com os pormenores escabrosos de quanto assassinato ominoso se comete, em Portugal como em toda a parte.
E daí talvez não. Que os crimes da moda não são bem os mesmos do séc. XIX. Dantes, os crimes eram contra a propriedade e contra a integridade física das pessoas, mas agora são mais a corrupção, a evasão fiscal, o racismo e a violência doméstica.
Para estes é que se reclamam os furores do Código Penal, para estes é que existem polícias especializadas: a Autoridade Tributária tem poderes inquisitoriais, que incluem a inversão do ónus da prova e a impossibilidade prática de quem não tenha meios de se poder defender em tribunal; a corrupção pode dar origem a penas demenciais, como os famosos 17 anos do sucateiro Godinho; gente paga com dinheiro do contribuinte atroa os ares com acusações generalizadas de racismo, e em lado nenhum figura o direito a ter, e manifestar, ideias racistas, embora se possa, com inteira liberdade, defender ideias comunistas, ou que a terra é plana, ou que a ida dos americanos à Lua foi uma invenção da CIA; e o cidadão a quem roubaram o automóvel ou estroncaram a cabeça vai para o tombo geral dos queixosos, mas se a cabeça em questão tiver sido objecto dos cuidados do cônjuge tem direito a uma secção especial da PSP.
Mundo admirável este, em que as cadeias continuam cheias mas crescentemente de gente que infringiu a modernidade.
Seja, cada época tem direito à sua galeria de brutidões e patetices, até ao tempo em que as substitui por outras. Mas no vaivém das leis penais havia um progresso civilizacional que consistiu em eliminar a tortura como método de investigação; em admitir que a necessidade de prevenção geral não se deve realizar com penas infamantes, nomeadamente corporais; em partir do princípio que todo o acusado se presume inocente até prova em contrário; e em concluir que os presos perdem a sua liberdade, ao cabo de uma sentença transitada em julgado, mas não a sua dignidade humana.
A inversão do ónus da prova em processo fiscal foi uma inovação demoníaca, por se partir do princípio que pena é apenas a privação da liberdade. Ficar um cidadão sem parte ou a totalidade do seu património, quando o ladrão seja o Estado, não é uma pena, e portanto para se defender do esbulho o assaltado tem que provar tudo, e o ladrão não tem que provar nada.
Por ela foi entre nós responsável o celebrado Paulo Macedo, com a geral e cobarde aquiescência dos poderes da época, e o aplauso da massa dos cidadãos. Estes foram convencidos de que as vítimas de tais processos seriam os ricos, de cujos bens o Estado, e portanto eles, se apropriariam, com o inerente aliviar da carga fiscal, que todavia nunca se materializou.
Foi um retrocesso civilizacional, desde logo porque desequilibrou a relação entre o Estado e o cidadão: se aquele, com todos os meios ao seu dispor, não consegue provar que o cidadão fez, como se espera que este consiga provar que não fez?
A opinião pública aceitou isto, e o que seria natural vindo de um comunista passou por razoável por o governo da época ser democrático e o Paulo em questão passar por social-democrata. Os sucessores, por sua vez, com a gritante, e incompreensível, saliência de Paulo Núncio, aprimoraram ainda os requintes dos processos da Santa Inquisição, agora denominada Autoridade Tributária, reforçaram os poderes dos familiares do Santo Ofício, agora denominados inspectores, e acabrunharam os direitos dos judeus, agora designados, para efeitos de geral opróbrio, como evasores fiscais.
Neste clima geral talvez não seja surpreendente que tenha quase passada despercebida a notícia de que para a alimentação de cada recluso estejam previstos para 2018 um euro e trinta cêntimos por dia.
Ninguém se escandalizou por a ministra ter dito que a alimentação não seria tão boa como a que existe à disposição dos senhores deputados no Parlamento, num acesso de piadismo tão mais frequente quanto menos os ministros são oriundos das bancadas, e ocupam os seus lugares em homenagem à competência técnica que quase sempre se revela imaginária.
Claro que a diminuição de verbas é apenas mais uma manifestação do negócio abjecto de cortar nas despesas do Estado para poder contentar as multidões de funcionários e pensionistas, cujos advogados são o PCP e o Bloco.
E não duvido nada que, se o caso chegasse às redes sociais em forma de escândalo, vozes virtuosas se levantariam a dizer que se cidadãos inocentes morrem em incêndios porque o Estado cortou nos meios de defesa (não foi sobretudo isso, claro, mas não sou eu a dizer) e se cada vez mais “utentes” do SNS morrem à espera de operações, ou simplesmente infectados por falta de manutenção dos equipamentos, então os presos bem podem rebentar de fome – não fazem cá falta nenhuma.
É, não fazem falta, o que faz falta é animar a malta, como dizia o outro. Bem vistas as coisas, o tal Barjona não se lembrou que um dia haveria comunistas no governo, e lentamente a civilização começaria a fazer marcha-atrás.
Dever-se-ia ter lembrado. Porque no seu tempo comunistas não havia. Mas já havia maçãs podres e estas, já então, faziam apodrecer as restantes quando no mesmo cesto.
Revogava-se o DL 51/2011, acabavam-se os limites às encomendas, e ao fim de um mês e pouco o preso preventivo já tinha recebido:
Escusam de perguntar, porque o meu pesadelo humanitário não chegou ao capítulo do audiovisual.
Dizem-nos que o dr. Arnaut enviou a Sócrates um livro escrito por si, contendo ensaios, contos, poesia, “textos de intervenção cívica”, e uma mensagem pessoal com a ameaça de o ir “visitar logo que possível”. A cadeia de Évora devolveu a gentileza ao remetente.
A explicação parece razoável e a legislação também (DL 51/2011, de 11 de Abril, disponível online). Prevê limitações de quantidade, até porque o espaço não é infinito; só na primeira semana, foram enviadas a Sócrates mais de 40 encomendas acima do máximo estabelecido. E prevê limitações de identidade, exigindo que o remetente esteja registado na lista de visitantes. Isto deixa que os cavalheiros escolham as visitas e as encomendas que querem receber, protegendo-os, entre outras barbaridades, da alegada literatura de quem calha.
Não há sinais de "prepotência", nem "fascismo", ou ofensa a qualquer património que exceda o narcisismo do dr. Arnaut, e o aristocrático desprendimento que o impede de medir e situar o seu lugar no mundo. Esse lugar, desejavelmente, ainda é fora da prisão.
A cadeia pode ter tido a tocante atenção de não ter querido, por razões prudenciais, que o livro chegasse à mão do seu mais famoso detido - a leitura de poesias e ensaios do paizinho do SNS poderia, em espíritos deprimidos, despertar pulsões suicidárias; ou, com grande sadismo, pode ter tido a intenção de impedir a conciliação do sono de Sócrates, reacção que decerto seria a de um leitor combativo e alerta (como dizem os visitantes ser o estado de espírito em que se encontra) se exposto a uma obra literária perpetrada por António Arnaut; ou ainda, e mais provavelmente, limitou-se a aplicar um qualquer regulamento cruel e gratuito - em Portugal e em todo o mundo os tribunais condenam à privação da liberdade e a organização prisional encarrega-se de tornar a prisão o mais económica possível para o erário público e o mais segura e menos trabalhosa para os funcionários. Que isso implique penas acessórias que se dane - uma prisão não é um hotel de 5 estrelas, como dirá qualquer cidadão justiceiro, pertencente à imensa maioria na qual não me incluo.
Não sabemos. E é pouco provável que aqueles largos milhões que, como eu, têm poucas dúvidas íntimas sobre a culpabilidade do detido se preocupem com tais minúcias. A alguns já eu ouvi - ora, se vier a ser absolvido o tempo de pildra que já leva ninguém lho tira!
Preocupo-me eu. Porque a prisão de Sócrates não é apenas a prisão de Sócrates, é a ausência de liberdade de todos os acusados de qualquer coisa em que dois magistrados entendem que é essencial que o acusado esteja dentro, para não perturbar o inquérito que as polícias prosseguem fora.
Espero que em algum momento venhamos a saber, exactamente, do que consta a acusação. E reitero que, como aqui disse, "O juiz Alexandre andou mal, muito mal, ao produzir um anúncio grotesco cheio de minúcias irrelevantes sem dizer uma palavra sobre os fundamentos da sua decisão, que suponho apenas reservou para as partes". E acrescento agora que a menos que a própria divulgação dos fundamentos prejudicasse a investigação, o que tenho dificuldade em aceitar nesta altura (do que estavam à espera para investigar antes?), e a menos que tome como aldrabice a afirmação do advogado de defesa (o que aliás não descarto) de que não conhece os fundamentos da acusação, começo a vislumbrar um quadro.
E o quadro não me agrada. Que o meu concidadão ache que quem está dentro merece tudo e mais alguma coisa (ora, há muita gente com fome e a viver debaixo das pontes que não fez nada!) eu compreendo, como compreendo que gostem de Tony Carreira, piadas brejeiras, vinho rasca e espectáculos degradantes; que a gente que está do meu lado do espectro político, e que por conseguinte detesta Sócrates e o que ele representa, funcione no regime dos reflexos condicionados, achando bem tudo o que de mal se lhe faça, também entendo - a maioria das pessoas delega a independência do seu pensar na tribo a que julga pertencer.
E que dois magistrados tivessem decidido o que decidiram também aceito, sob reserva de prova.
Que um director de cadeia, ou alguém acima dele, decida que um detido não pode receber a merda de um livro que um amigo lhe enviou - não. Porque, se existe um regulamento, também deve comportar excepções, se forem necessárias, e admitir interpretações - a letra da Lei só é a Lei para juristas burros. E, já agora, a existir, como parece que existe, uma tal disposição, seria boa altura para acabar com ela. De preferência, desta vez, sem consultar o Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Prisional nem, já agora, o resto das várias entidades que, por detestável prática corporativa, se costumam consultar para fazer leis - a estupidez não é menos estúpida se colectiva.
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