A Comissão Europeia tornou pública ontem a recomendação de retirar Portugal do Procedimento por Deficit Excessivo (PDE).
Talvez não fosse essa a intenção do jornal que hoje em dia mais se aproxima da função que um dia foi assegurada pelo Acção Socialista, mas, de tudo o que foi ontem publicado sobre o tema, os dois títulos que melhor sintetizam os desafios que esta retirada nos colocam são justamente do Público: "Portugal cresce e fica hoje sem alguns travões de Bruxelas. E agora?" e "Centeno feliz: Vamos poder fazer o que não podíamos fazer até agora".
Estes títulos significam que se podem dar os parabéns ao governo socialista, porque sem o policiamento de proximidade do Eurogrupo e das instituições europeias, sem "travões", vai ter mais liberdade para fazer as vontades aos partidos que o sustentam, PS incluído, se não fazendo crescer o deficit, já que é mais fácil controlar o deficit através de artifícios contabilísticos, e tem sido historicamente feito com requintes de fenómeno do Entroncamento pelos governos socialistas, do que controlar a dívida, até porque a dívida não é só contabilizada e divulgada pelos devedores mas também pelos credores que são tradicionalmente relutantes em esquecê-la ou perdoá-la, acumulando dívida a um ritmo ainda maior do que tem vindo a acumular. E que em 2016 já foi bastante superior a dois vírgula tal por cento do PIB.
Aliás, os partidos que sustentam o governo no parlamento não perderam tempo a apresentar exigências para que, uma vez que o deficit contabilizado deixou de ser excessivo, se utilize a folga na vigilância orçamental das instituições europeias para o fazer elevar de novo à categoria de excessivo. E, sem travões, esta gulodice é irresistível e vai ser satisfeita na medida em que o governo a consiga satisfazer.
Pelo que é algo duvidoso que, mesmo se o governo português está de parabéns, os portugueses também estejam, nomeadamente as gerações mais novas a quem vai calhar no fado servir e pagar a dívida que a nossa geração lhes está a deixar.
As entidades independentes, como o Banco de Portugal e o Conselho de Finanças Públicas, podem dar uma boa ajuda.
Em teoria, porque na prática já se percebeu que o governo, além de as procurar ridicularizar sistematicamente perante a opinião pública do modo grosseiro que é o seu, e é decalcado dos modos e da educação do primeiro-ministro, e de o presidente da república não mexer um dedo para o confontar com aquilo onde outros vêem uma intolerável falta de respeito institucional por essas entidades e em vez disso ir também soltando a sua piadinha ocasional sobre elas, está também a fazer o que está ao seu alcance, que não é tudo, mas é alguma coisa, para bloquear o seu funcionamento, nomeadamente pela recusa em nomear para as constituir e dirigir personalidades que não façam parte da sua maioria de sustentação parlamentar. Também sem qualquer reacção do presidente da república, pelo que a eficácia das entidades independentes vai ser reduzida a nível de não terem capacidade para defender os contribuintes.
Terão que ser eles próprios, os contribuintes, ou a opinião pública, a publicada esforça-se mais por apoiar entusiasticamente o governo, ou por agenda política ou porque isso a beneficia em interesses onde o governo tenha uma palavra a dizer, do que os contribuintes.
A medida que tradicionalmente é mais observada para avaliar a sustentabilidade das finanças públicas é o deficit público.
O último governo socialista, de que fizeram parta grande parte dos governantes actuais, conseguiu demonstrar que é possível ir apresentando deficits públicos razoáveis até à iminência de uma catástrofe.
O deficit é, como os resultados negativos nas empresas, um indicador contabilístico calculado de acordo, mas o acordo pode ser mais ou menos fiel, com um conjunto de normas e critérios. Uma empresa pode, com as mesmas despesas e receitas mas ajustando critérios contabilísticos, apresentar resultados diferentes em função do que lhe for mais vantajoso: quando faz uma compra, se e a sua maior preocupação for reduzir os impostos, contabiliza a compra como custo e reduz o resultado; se a sua maior preocupação for o marketing financeiro dirigido aos accionistas e bancos, contabiliza-a no imobilizado e apresenta um resultado melhor. Os governos têm a mesma flexibilidade, e os governos socialistas têm provas dadas de que conseguem dar a volta ao deficit, mesmo quando são controlados pelas instituições europeias.
Não é, pois, acompanhando cuidadosamente a evolução do deficit público apresentado pelo governo socialista que os contribuintes portugueses vão conseguir detectar riscos de catástrofes a tempo de as evitar. O deficit público não é suficientemente eficaz como sinal de alarme para evitar catástrofes financeiras.
E, sendo a causa inegável de problemas de sustentabilidade das finanças públicas, gastar mais do que se ganha origina problemas no futuro, quer seja a uma dona de casa, a uma empresa ou a um governo, o deficit público também não é "o" problema em si. Se eu gastar mais do que ganho até consigo ter uma vida melhor, e ter uma vida melhor não é para mim um problema. Se alguém me oferecer o que gasto em excesso do que ganho, não é até problema nenhum, é, pelo contrário, um prazer. O problema é que, se ninguém mo oferece, tenho que me endividar para o financiar, o que também não é em si um problema, apenas mais uns envelopes com contas todos os meses na caixa do correio. O problema real é que um dia terei mesmo que pagar a dívida. Não em percentagem do meu rendimento nessa altura, mas em euros.
Pelo que, se os contribuintes portugueses querem doravante incrementar a vigilância sobre a sustentabilidade financeira da acção de um governo com apetência e estímulos para ser populista, e tentar compensar a redução da vigilância das instituições europeias decorrente da saída do PDE, devem observar com o máximo cuidado, não o deficit público, que o governo pode facilmente manipular para lhe dar aparência de controlado, mas a evolução da dívida pública, que representa precisamente o ónus que eles e as gerações futuras terão que suportar pelos excessos populistas dos governos actuais e passados.
Em 2016 o governo português conseguiu um déficit público de dois vírgula poucos por cento. Merece que lhe dêem os parabéns!
Em 2016 a dívida pública de que os portugueses têm que pagar os juros e terão um dia mais tarde que reembolsar cresceu 9,5 mil milhões de euros, ou seja, cerca de 5% do PIB. Mil euros por português, três mil para um agregado familiar de três pessoas como o meu, seis mil para uma família numerosa com quatro filhos. Merecem que lhes apresentem os pêsames.
Amanhã vamos sair do Procedimento por Deficit Excessivo, se Deus quiser. Estamos de parabéns.
Estamos?
Reza uma certa histeria colectiva inoculada e propagada por todos os partidos da esquerda, parlamentar e extra-parlamentar, e também pela direita radical, nomeadamente a populista, que os procedimentos por deficit excessivo, assim como, de uma maneira geral, todos os regulamentos e controlos impostos aos governos dos países pelos tratados europeus em matérias orçamentais, limitam a soberania e a liberdade dos governos para resolverem os problemas dos cidadãos que governam e defendem os interesses egoístas ou até obscuros dos bancos, das economias do centro da Europa, dos seus governos, ou, para resumir a rede de facínoras em poucas palavras, da senhora Merkel e do senhor Schäuble, por acaso ambos Doutores, ele em Direito e ela em Química Quântica, mas senhores, o que é até um elogio comparativamente com os qualificativos que usam para se referir a eles quando falam entre si ou para públicos seleccionados. Pelo que a libertação destas grilhetas permitirá aos governos conduzirem os seus povos até aos níveis de prosperidade que justamente ambicionam. É isso que pregam a esquerda moderada e radical e a direita radical.
Na verdade, não são os interesses da senhora Merkel e do senhor Schäuble que os procediments por deficit excessivo defendem. Servem para proteger os contribuintes de governos perdulários que, em vez de financiar com impostos impopulares as despesas populares que fazem para conquistar o coração dos eleitores, que como toda a gente sabe bate do mesmo lado do bolso onde guardam a carteira, preferem financiá-las com dívida, um conceito quase abstracto enquanto se usufrui dela para se consumir mas muito concreto quando chega a hora de a remunerar com juros e a reembolsar, mas isso será mais um problema dos filhos e dos netos do que deles. Servem para impedir os governos de conduzir os seus povos até circunstâncias em que a cura é mais dolorosa do que a doença foi até aí, se bem que muito menos do que se se deixar a doença evoluir.
É que se vai tornando notório que, mesmo conseguindo dar a muitos problemas respostas que, mesmo quando não são suficientemente satisfatórias, são menos insatisfatórias do que as das alternativas, as democracias têm uma certa dificuldade em tomar as decisões mais adequadas para os cidadãos quando os chamam a decidir entre o curto prazo e o médio e longo prazo, e entre uma prosperidade actual aparente financiada por dívida, que mais tarde se vai pagar à custa de muito sangue, suor e lágrimas, e uma modéstia actual para basear a prosperidade possível no futuro, tem-se verificado que caem muito frequentemente na armadilha encantatória da primeira.
Pelo que a partir de amanhã o governo português que, mesmo com rédea apertada, conseguiu fazer aumentar a dívida pública portuguesa no último ano ao ritmo de 24 mil euros por minuto, ao mesmo tempo em que o crédito ao consumo tem sido concedido ao ritmo de 12 mil euros por minuto, vai ter rédea muito mais solta para nos conduzir muito mais rapidamente até à próxima tragédia, que será pior do que a anterior porque os que nos salvaram na anterior se arrependerão com a inutilidade do investimento que fizeram na nossa salvação.
Amanhã vamos sair do Procedimento por Deficit Excessivo. Apertem os cintos.
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