O Público e a blocalhada inventaram uma questão racista que não existe em Portugal, onde há tanto racismo como noutro país qualquer, e andam a fazer uma lavagem ao cérebro à opinião pública martelando-a com uma profusão de artigos de opinião travestidos de notícias factuais para tentar instalar no centro da discussão pública essa questão, procurando explicar as manifestações de racismo que se verificam em Portugal com um racismo sistémico de que só nos livraríamos, todos os portugueses, pedindo desculpa por alguma coisa de vergonhoso que fizeram os nossos antepassados, ou os antepassados de outros portugueses, ou até se calhar os antepassados deles.
Ora é racista quem diz, ou pelo menos pensa, coisas como "ó preto, vai para a tua terra", e não quem é nacional de um país que teve, há séculos, traficantes de escravos, ou, há décadas, alguns colonos que tratavam bárbara ou exploravam selvaticamente os nativos das colónias que trabalhavam para eles. No limite, quem herdou fortunas realizadas nesses negócios usufrui de um benefício directo deles de que se deve envergonhar. O que não é o meu caso.
E não é racista quem não as pensa nem as diz. Como é o meu caso.
As indignidades racistas cometidas por portugueses no passado remoto ou menos remoto, e até no presente, responsabilizam-me tanto, e fazem-me sentir o exactamente o mesmo grau de culpa e vontade de pedir desculpa a alguém, como as vigarices de um primeiro-ministro corrupto como o José Sócrates. Nem eu nem os meus filhos ou netos alguma vez vamos pedir desculpa pelas vigarices dele, mesmo que nos embarace vivermos integrados numa comunidade que, tendo ele os traços de carácter tão escancarados, o elegeu para primeiro-ministro, até por maioria absoluta, ou que elegeu mais tarde, ainda que através de uma complexa engenharia constitucional que divide as responsabilidades da eleição com o voto dos eleitores, o seu colaborador mais próximo enquanto governou, que também tem os traços de carácter igualmente escancarados. Nem pelo tráfico de escravos, nem pelos abusos colonialistas cometidos por portugueses no passado.
Mas eles persistem nessa cruzada, e o último alvo da sua investida foi a estátua do padre António Vieira no largo Trindade Coelho, em Lisboa, que um bando de activistas liderado pelo conhecido Mamadou Ba intentaram derrubar através da deposição de flores e de uma performance poética, ou, nas suas próprias palavras, integrando "investigadores, professores, artistas e activistas de diversas nacionalidades" com o objectivo de "reflectir, discutir e agir promovendo a construção de uma narrativa crítica, para a eliminação do racismo e da desigualdade", tendo no entanto sido impedidos de aceder à estátua por, informa-nos o Público com a sua objectividade habitual, neonazis.
O padre António Vieira bateu-se, numa época em que bater-se por causas como essas podia resultar, não em ser entrevistado pelos jornalistas activistas do Público ou criticado pela direita nas redes sociais, mas em, por exemplo, ser condenado à morte na fogueira depois de devidamente torturado, pela abolição da escravatura e pelos direitos dos índios. Coisa que é mais do que duvidoso que os ascendentes deste bando de idiotas que o fazem agora em teatrinhos de rua ou nas páginas do Público, do Norte ou do Sul do Equador, tenham feito.
De modo que, já que estamos em maré de generalizações ao pretender obrigar todos os portugueses a sentirem culpas e pedirem desculpas pelos crimes de alguns portugueses há poucas ou muitas gerações atrás, eu proponho mais uma generalização. O Mamadou que sinta culpa e peça desculpa pelos escravos que os seus ascendentes capturaram para vender aos traficantes portugueses que os levaram para revenda no Brasil. Se os ascendentes do Mamadou se dedicaram a essa profissão ou não, se o Mamadou herdou parte da fortuna que eles acumularam a exercer esse negócio ou não, é detalhe que a generalização trata de tornar irrelevante. Por isso, o Mamadou que peça primeiro desculpa por ter capturado e por nos ter vendido os escravos, e só depois nos venha sugerir que também a peçamos por termos revendido no Brasil os escravos que ele nos vendeu. Genericamente, entenda-se.
De resto, o título foi um understatement que corrijo já, filtrados que estão os leitores pela paciência de terem chegado ao fim destas linhas. Onde se lê vai chamar racista à tua tia deve-se ler vai chamar racista à puta que te pariu.
Mamadou deu uma entrevista. E eu, que não conhecia este filósofo social, fui lê-la por a ver citada encomiasticamente.
Venho impressionado porque Mamadou não diz senão asneiras, e asneiras incomodativas porque se inserem na vasta tendência para policiar o pensamento que, com origem nos Estados Unidos, chega agora, com o atraso da praxe, às nossas costas, juntamente com garrafas de plástico, hidrocarbonetos e outros detritos.
E como este pensador é, pelos vistos, assessor do Bloco de Esquerda, as patetices que expectora têm potencial para afectar a nossa vida e as nossas liberdades. A razão, circunstancial, é simples: a economia que o Bloco deseja contraria a que os nossos patrões europeus consentem, e portanto o PS não pode dar à Sara Bernhardt da Companhia de Teatro de Visões Úteis (não estou a inventar, semelhante coisa existiu sem ser o departamento de teatro do Hospital Conde de Ferreira), nem aos restantes dementes que compõem o grupo parlamentar do BE, o que ela quer. E como na economia e nas finanças não pode ser, haverá que ser noutras áreas, seja a protecção dos animais, o combate à evasão fiscal, a igualdade entre os sexos, as novas formas de parentalidade, as modernas teorias pedagógicas, o racismo e quanto disparate o marxismo recauchutado inventou para fazer um homem novo - se não podes para já, enquanto o IRS não chega aos 100%, ser materialmente igual ao teu vizinho, que ao menos penses sob ameaça o mesmo que ele em áreas sensíveis.
Que diz então Mamadou? "Denuncia o racismo estrutural existente em Portugal, visível nas demolições em bairros sociais como o 6 de maio, na Amadora, ou na forma de atuação das autoridades, isto numa altura em que as imagens de uma agressão de um militar da GNR a um cidadão brasileiro, em plena repartição das Finanças, no Montijo, estão a dividir a opinião pública. Para o dirigente do SOS Racismo, o racismo que existe no nosso país é fruto do 'imaginário colonial' que subsiste nos dias de hoje, uma vez que Portugal ainda não foi capaz de fazer a sua 'catarse histórica'. Neste sentido, critica o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, por ainda “não ter descolonizado a sua mente”.
Não conheço felizmente o bairro 6 de Maio, de nome aliás suspeito (que raio se passou em 6 de Maio?), nem sei quem lá vive, mas, mesmo sem conhecer, e sem estar seguro de que a entidade que deliberou a demolição saiba o que está a fazer, há maneiras de reagir contra decisões ilegais. E se essas maneiras nem sempre são acessíveis a quem é pobre, sê-lo-ão certamente a uma associação. É isso que o SOS Racismo vai fazer? Não, que ideia.
Envolvi-me numa discussão no facebook com um polícia que defendia com os argumentos de caserna e corporativos que seriam de esperar a atitude do seu colega do Montijo, de resto sob os aplausos da escumalha justiceira que pulula nas redes sociais. Nem ele, que defendia a selvajaria, nem eu, que a atacava, alguma vez mencionámos a condição de estrangeiro, e menos ainda a de provável gay, que o "arruaceiro" aparentava ter. E não fiquei de modo nenhum com a impressão que isso tivesse para o polícia qualquer relevância: era perfeitamente capaz de adoptar o mesmo procedimento abusivo em relação a qualquer outro cidadão que estivesse a ofender o respeitinho que ele imagina ser devido à autoridade. Mas mesmo que o factor "estrangeiro" ou "paneleiro" tivesse pesado, não deve isso ter qualquer relevância nem sequer como agravante: todos os cidadãos merecem tratamento igual e a sanção das ofensas aos seus direitos não deve ser agravada ou aliviada por causa das convicções dos seus autores. É isto que defende Mamadou? Claro que não.
Mamadou, ou outras cabeças pensadoras, vão fazer trabalhos de investigação e publicar livros onde se vertem teses dolorosas e convincentes para corrigir o "imaginário colonial" e promover a necessária "catarse histórica"? Que trabalheira, credo, há maneiras mais expeditas de convencer as pessoas. A toque de caixa, por exemplo.
Que o presidente Marcelo "precisa de descolonizar a sua mente" - não poderia estar mais de acordo. Mas Mamadou não parece entender muito de processos mentais: semelhante operação implicaria que Marcelo removesse previamente a prodigiosa quantidade de ficheiros inúteis que lhe entopem o disco duro, mais uma grande acumulação de bugs, após o que estaria em condições de instalar o software do Bloco. Mas nem o novo software é recomendável segundo as opiniões mais avisadas nem o disco duro em questão tem tamanho para uma operação de tal envergadura.
"Prova disso é que as questões raciais 'deixaram de ter centralidade na intervenção dos partidos políticos' e que o Governo português não foi, ainda, longe o suficiente no que diz respeito à lei da nacionalidade ou à criminalização do racismo, considera Mamadou Ba".
Não estou muito familiarizado com esses momentos abençoados em que as questões raciais tiveram "centralidade", e portanto igualmente não me apercebi de quando deixaram de ter. E como o ilustre, e até agora ignoto, entrevistado explica lá para o fim que ir mais longe no que diz respeito à lei da nacionalidade significa que quem nasce em Portugal é português, vejo-me coagido a fazer-lhe um processo de intenção, declarando: se é para entupir o país de Mamadous, não, obrigado, já sustentamos uma quantidade mais do que razoável de inúteis. Quanto à criminalização do racismo receio bem que seja exigível previamente uma definição objectiva do que por tal conceito se entende, e em que consiste o crime: se é para proibir as pessoas de terem, e emitirem, opiniões racistas, sou contra, por privilegiar o direito à livre manifestação da opinião; se é para proibir comportamentos discriminatórios com base na cor da pele, ou na religião, ou nas convicções políticas, ou na orientação sexual, tais proibições já estão contempladas na lei.
"Temos o 'racismo ordinário' e o 'racismo subtil' - apesar de eu não gostar muito desta expressão. O 'racismo subtil' está na atuação das instituições públicas e privadas, está presente no acesso aos serviços mais básicos e está nas relações sociais quotidianas. Quando eu, por exemplo, pretendo alugar uma casa e o proprietário ou agente [imobiliário] descobre que eu sou diferente, ou pelo sotaque, pela cor da pele ou pela origem, é uma forma de racismo".
Em matéria de ilícitos e crimes não há lugar para presunções, mais ou menos ou assim-assim. Portanto, o agente imobiliário não alugou a casa a um preto mas arrendou-a a um branco com a mesma situação económica e que oferecia as mesmas garantias? Provem e queixem-se. Dá muito trabalho, custa dinheiro, e consome tempo? A Justiça funciona mal para todos, tenham paciência, brancos, pretos, pobres, ciganos e tutti quanti; e funciona um pouco menos mal para quem tem recursos e advogados, situação que só nos deve interessar se o seu remédio não for pior do que a doença. Agora, não me venham cá com distinções especiosas entre racismos ordinários e subtis: as mesmas distinções de atitude existem para mulheres bonitas e feias, ou ricos e pobres, sem que para toda a discriminação subtil exista remédio, e sem que todas as categorias de ofendidos andem por aí a gemer e a reclamar uma especial atenção à sua condição.
"Temos uma violência policial muito enraizada no racismo. Vários jovens foram mortos pela polícia, em circunstâncias absolutamente indefensáveis do ponto de vista da absolvição dos códigos de procedimento da atuação da polícia, simplesmente porque eram negros ou ciganos".
As polícias, em Portugal, têm uma tradição de abuso e impunidade, que resulta das deficiências da sua formação, do militarismo dos seus comandos, dos reflexos condicionados das magistraturas (que tendem a não castigar o exercício abusivo da autoridade por suporem que isso pode diminuir a sua própria), do justicialismo presente na opinião pública, e da cobardia do poder político que só quer defender princípios na medida em que com isso não perca votos. Isto será assim, é o meu palpite. Mas nem Portugal é um caso particularmente assinalável pela negativa, nem o problema é fácil de resolver, nem o fundamento racista das atitudes policiais em relação a comunidades "diferentes" está demonstrado. Caberia perguntar, por exemplo, por que razão a comunidade chinesa, aqui e em toda a parte, está relativamente ao abrigo de incidentes.
Em vez das críticas gemebundas do entrevistado, que são aliás as comuns na área política a que se acolhe, o SOS Racismo faria bem em dedicar-se a perceber por que razão a criminalidade é mais alta em certas comunidades do que noutras. E se encontrar como resposta que as famílias estão mais desestruturadas e que a taxa de desemprego é muito maior faria melhor em tentar remediar esses males - dentro de si e não na imposição de comportamentos de discriminação positiva a terceiros.
"A opinião pública está formatada pela opinião publicada. E isto é um problema. A opinião publicada tem procurado criar uma narrativa de perigosidade em determinadas classes sociais e em determinados lugares no nosso país. Há bairros que são considerados perigosos por serem habitados por determinadas pessoas. Essa retórica e todo o circo mediático que se constrói em torno do perigo que existe nestes bairros, da ameaça à ordem pública que representam as pessoas de determinadas características culturais e fenotípicas, faz com que, obviamente, haja a ideia de que a atuação da polícia condiz com a necessidade de garantir a ordem pública".
Lá que a opinião pública está formatada pela opinião publicada estou, em parte, de acordo. A opinião publicada portuguesa, por exemplo, acha há quarenta anos que em tirando aos ricos e dando aos pobres ficam todos remediados, e a opinião pública acha consequentemente o mesmo, donde nem o país cresce, nem a dívida diminui, nem a classe média se alarga, nem os ricos existem em maior quantidade. Mas é inegável que Trump foi eleito contra a opinião publicada, e que Marine Le Pen teve muito mais votos nas urnas do que os indiciados pelo apoio nos meios de comunicação social. Vamos fazer o quê? Um catálogo de ideias acertadas para os jornalistas papaguearem? Mas o catálogo de quem? O meu ou o de Mamadou e Mariana Mortágua?
"No entanto, o que as pessoas se esquecem é de perguntar porque é que a policia não atua da mesma forma quando entra na [avenida] 24 de julho e quando entra na Cova da Moura. Obviamente que o que determina a musculatura da intervenção das forças de segurança é o preconceito racial. Há uma espécie de espaço de sessões jurídicas em determinadas zonas do país onde as forças de segurança acham que, por estas serem habitadas por determinadas pessoas, não são obrigadas a cumprir determinadas práticas deontológicas. Isto tem que ver, efetivamente, com a questão racial, e as pessoas esquecem-se, muitas vezes, de que Portugal ainda é um país que tem uma cultura bastante colonial. Enquanto não for feita a catarse histórica relativamente à escravatura e ao colonialismo obviamente que teremos sempre pessoas que vão continuar a justificar o seu racismo".
Épá, realmente tenho-me esquecido de perguntar isso. Mas estive a reflectir durante quase dois minutos e ainda vou a tempo de responder: a polícia vai aos sítios onde é mais provável encontrar drogas, armas, traficantes e bandidos, de forma diferente da que usa quando vai a sítios onde encontra bêbedos e tipos sem carta de condução. Abusa em ambos os lugares, e abusa de forma diferente porque nos primeiros é mais provável levar um balázio e em ambos os atropelos ficam impunes. Será por racismo? Tretas.
O resto é mais do mesmo e consiste basicamente nisto: o colonialismo foi um horror e os descendentes dos colonizadores devem levar a mão à consciência e ao bolso, pedindo desculpa aos descendentes dos colonizados ao mesmo tempo que rapam da carteira de cheques.
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