A história conta-se em poucas palavras. Aos 22 anos V. filmou-se, ou deixou-se filmar, a ter relações sexuais. Depois casou e empregou-se, seguiu a vida. Aos 27 o filme apareceu nas redes sociais, talvez colocado pelo co-protagonista? e foi descoberto e começou a ser circulado pelos colegas da empresa, que cuidavam de apontar "é aquela ali". Ela assustou-se mas o mundo continuou a andar à roda (eu sou heliocentrista e tenho a convicção por razões da ciência da Mecânica que a Terra anda à roda num movimento de rotação sobre o eixo e não é o resto do universo que todos os dias anda à roda dela), até a cunhada, que também trabalhava na empresa, o ter visto e o ter ido mostrar ao irmão, o marido de V.. E V., com vergonha, suicidou-se.
Vamos não discutir se o facto de ainda haver gente com vergonha em pleno século XXI é uma excentricidade, porque a pior das pessoas com vergonha é melhor do que a melhor das que não a têm.
Que papel tiveram na morte dela o autor da publicação original do filme nas redes sociais e todos os que, por maldade ou galhofa, o fizeram divulgar até ele chegar aonde chegou? O mesmo que tem num pelotão de fuzilamento o soldado a quem calha o cartucho vazio: mataram-na sem a bala ter saído da arma que todos lhe apontaram para a matar.
O que merecem?
[Aqui abro um parêntesis para opinar sobre justiça.
Não há ninguém mais exigente do que eu de rigor na prova para considerar legítimo condenar um criminoso. Lamento muito dizê-lo mas, apesar de estar convicto e sem a mais pequena sombra de dúvida que o ex-primeiro ministro socialista José Sócrates é um criminoso e de desejar a sua punição tanto quanto qualquer outra pessoa que considere a corrupção merecedora de condenação, necessito de informação muito mais sólida do que consegui ver publicada em todas as notícias publicadas pela comunicação social sobre o processo ao longo dos anos para me convencer que há provas suficientemente sólidas para o condenar. E sem provas prefiro que ele seja solto a que seja condenado para satisfazer o alarido da multidão e limpar uma imagem que a justiça acumulou ao longo de décadas, talvez com alguma justiça, de ser tolerante com os poderosos. E tenho até noção que há crimes quase impossíveis de provar com solidez, nomeadamente os que são cometidos em privado e que só são testemunhados pela vítima e o criminoso, como grande parte dos crimes sexuais e de violência doméstica, e que esta posição de princípio de algum modo pode dificultar ou mesmo impedir a aplicação de justiça nalguns desses crimes, mas é o meu princípio e não é daqueles que estou disponível para substituir se tiverem outros melhores. É pior punir um inocente do que deixar partir um criminoso, e não é apenas por ser injusto para o injustamente punido, é mesmo por, sinalizando que inocentes podem ser punidos em vez deles, a justiça incentivar os criminosos.
Já relativamente à graduação das penas sou mais medievo. O princípio "olho por olho, dente por dente" não é injusto, é justo. Não é justo cortar a mão a um ladrão, mas não é injusto cortá-la a quem cortou a mão a outro. Sou muito céptico relativamente à pena de morte mas não é por não considerar que determinado tipo de criminosos não a merece, mas pelo risco do erro judicial que qualquer cedência no princípio da exigência da prova torna possível. De resto, qualquer pena é irreperável. A de morte por motivos óbvios (eu também não acredito na ressurreição), mas qualquer dia encarcerado numa cela à espera de ser ouvido por um juiz ou qualquer dia de prisão preventiva à espera do julgamento e de uma possível condenação são irrecuperáveis como dias em liberdade, às vítimas ninguém os tira.]
Merecem, portanto, um processo justo em que se apure com todo o rigor se fizeram alguma coisa que tenha contribuido efectivamente para a morte de V., como partilhar o filme nas redes sociais, mostrá-lo aos colegas e amigos, deixá-la perceber que faziam do filme motivo de galhofa, fazê-lo chegar aonde, ao ter chegado, a induziu ao suicídio. Uns por dolo, outros por negligência, todos por cretinice. A gentleman never tells, e estes cretinos não passaram de filhos da puta.
E, se fizeram, merecem ser responsabilizados pela morte dela e, na impossibilidade de fazer justiça recorrendo a uma bomba de neutrões que os levasse todos para lhe fazerem companhia, como mereciam, é da mais elementar justiça serem condenados a penas de prisão, é ainda mais justo se foram internados na ala dos sodomitas, e realmente justo seria internarem-nos lá, filmarem-nos a serem sodomizados e publicarem os filmes nas redes sociais. Olho por olho, dente por dente. Mas levá-los a julgamento por terem partilhado o filme em vez de os deixar sair sem um arranhão depois de a terem matado de vergonha já não será muito mau, e está ao alcance da justiça e do enquadramento legal que lhe determina as competências.
Esta situação [divulgação de um filme privado que os participantes quereriam manter privado] tem alguma coisa em comum com com uma praga que nos últimos anos entrou a pés juntos no debate público, a divulgação de notícias falsas nas redes sociais para incutir opiniões e, em determinados casos, encorajar à acção quem as toma por verdadeiras. Que é o facto de quem o faz, ou quem defende que quem o faz não deva ser penalizado por fazê-lo, não estar a fazer mais do que dispôr da sua liberdade de expressão do modo que bem entende, divulgando mentiras ou o filme pornográfico da colega de trabalho, e a liberdade de expressão dever ser inalienável.
A liberdade de expressão é, se me perguntarem a minha opinião, inalienável.
Posto isto, que a divulgação de informações íntimas pode provocar danos graves às vítimas da devassa ficou mais do que provado no suicídio de V., e não seria sequer preciso um fim tão trágico para haver danos, qualquer pedido de divórcio, crise conjugal, arrufo ou até um não te convido para a minha festa em querendo ela ir à festa dele poderiam ser danos originados pela brincadeira, mesmo que fosse apenas parva e não mal intencionada.
A divulgação de notícias falsas também tem, e a de notícias que insinuam comportamentos tão censuráveis ou perigosos de grupos de cidadãos que pode encorajar outros a reagir contra eles, eventualmente de modo agressivo, pode ter consequências tão trágicas como, ou muito mais trágicas do que, o suicídio de V..
Tem havido atentados terroristas cometidos por gente, normalmente com pouca capacidade de discernimento e alguma predisposição para a violência, e há sempre gente assim em todo o lado, que foi radicalizada nas redes sociais através de notícias falsas que lhes incutiram a convicção que enfrentam ameaças graves, às vezes a convicção que estão no meio de uma guerra de civilizações de que os mais apáticos ou distraídos não se conseguem aperceber mas que eles e quem os informa sabem que está em curso, e que é vital reagir com determinação e urgência a essas ameaças para salvar alguém, eventualmente salvar a civilização.
Não sei o que é que os clérigos das mesquitas onde são radicalizados os novos terroristas islâmicos, os da vaga anterior eram filhos de família oriundos das teocracias do petróleo que viajavam em primeira classe ou de jacto privado, lhes dizem, que histórias lhes contam, como conseguem convencê-los que as pessoas que lhes propõem ou eles se predispõem a matar indiscriminadamente são uma ameaça que merece ser debelada, nem estou muito interessado em saber, mas certamente terão capacidade de os convencer com factos que elas merecem o destino que tiverem. Até porque não frequento mesquitas.
Não sei de que se convenciam uns aos outros os terroristas de extrema-esquerda de há umas décadas atrás, mas também passaria certamente por pintar as vítimas como a tal nível desumanas que era melhor eliminá-las do que não o fazer, mesmo que fossem bebés de colo que um dia poderiam crescer para se tornarem fascistas ou capitalistas. Até porque não frequentava círculos de activismo da extrema-esquerda nessas décadas.
Mas sei de alguns casos recentes de radicalização de terroristas a partir de pessoas normais através de notícias falsas devidamente enquadradas por interpretações sugeridas que os levam à conclusão que só mesmo a passagem à acção directa pode salvar alguém ou o mundo das ameaças que os convencem que são graves e iminentes. Até porque frequento as redes sociais e vejo circular notícias como as que os radicalizam. E até tenho deixado por aqui e por aqui algumas reflexões e preocupações sobre o fenómeno da disseminação de notícias falsas.
Alguns casos de radicalização chegam a ser cómicos, pelo menos para quem se consegue abstrair da tragédia em que podem terminar. Como o do pacato pai de família que a frequência de redes sociais da alt-right convenceu que a cave da pizzeria Comet Ping Pong em Washington era usada para encarcerar crianças por uma rede de pedofilia gerida por Hillary Clinton, o género de "história que os mainstream media escondem pelo que não vale a pena tentar confirmá-la nas notícias", e decidiu libertá-las, viajando 6 horas até Washington e entrando na pizzeria a disparar uma arma automática, para os entendidos uma AR-15, para os leigos uma espécie de G-3, felizmente sem ter atingido ninguém. Depois de se render pacificamente explicou que se tinha rendido por ter verificado que afinal não havia lá crianças presas. Exceptuando a descomunal falta de bom-senso requerida para alguém acreditar que era possível a secretária de Estado do governo americano dirigir uma rede de pedofilia e a facilidade assustadora de se deixar sugestionar ao extremo de criar uma convicção tão sólida sobre a autenticidade da situação imaginária que só a acção directa a poderia resolver, o autor do atentado podia até ser um pai de família decente que agiu na melhor das intenções acreditando estar a salvar crianças de um inferno. Mas transformou-se num terrorista, e podia ter feito inúmeras vítimas. E acabou condenado numa daquelas penas que nos EUA são para fazer doer. Deu cabo da vida dele, e da da família.
E que papel tiveram no atentado cometido por um cidadão que até nem tinha perfil de criminoso o autor da publicação original da notícia falsa nas redes sociais e todos os que a fizeram circular sustentada por argumentos que a faziam parecer sólida e à prova de dúvidas até ela chegar aonde chegou? O mesmo que tem num pelotão de fuzilamento o soldado a quem calha o cartucho vazio: cometeram-no sem as balas terem saído da arma que todos apontaram para o cometer.
E que legitimidade tinham eles para inventar e divulgar uma notícia falsa que fazia acreditar a quem a tomasse por verdadeira que no local do atentado havia vítimas que era necessário libertar? Toda. Todos, exercendo a sua liberdade de expressão, tinham legitimidade para divulgar a notícia falsa, acreditando nela ou não.
E como lidar então com as consequências que podem eventualmente resultar do acolhimento como credível de uma notícia falsa que os autores devem ter a liberdade de divulgar sem colocar em causa a liberdade de expressão? Responsabilizando-os pelas consequências.
Como o tribunal espanhol vai avaliar que papel e que responsabilidade tiveram os colegas de trabalho de V. na sua morte, e que punição criminal eventualmente poderá ser apropriada para os confrontar com essa responsabilidade, quem coloca no exercício da sua liberdade de expressão notícias falsas a circular também deve ser responsabilizável se elas eventualmente tiverem consequências más.
Liberdade e responsabilidade são dois conceitos sem os quais não queremos ser forçados a viver, mas que só têm sentido quando usados em conjunto. Um sem o outro é caminho certo para o disparate.
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