Na semana em que se tornou evidente para lá de qualquer dúvida razoável que o presidente Marcelo tem todas as suas tropas no terreno lado a lado com as do primeiro ministro António Costa, para não falar nas do militante número um do PSD Pinto Balsemão, a tentar derrubar o presidente do PSD Passos Coelho, nesta semana procurando atraí-lo à ratoeira de uma candidatura autárquica pára-quedista e para ocupar o lugar a prazo apenas como trampolim para regressar ao governo e, portanto, destinada à derrota certa, ou seja, uma candidatura suicida, o que por seu lado torna evidente que todos os três tentam promover a sua substituição na liderança do partido por outro a quem o António Costa consiga ganhar as eleições que perdeu e sabe que voltará a perder contra ele, na mesma semana em que o presidente da república passou a fronteira entre a cooperação estratégica com o governo e a mentira descarada ao reforçar, dizendo sobre a solução para os lesados do BES que os contribuintes poderiam ter que pagar do bolso deles um pequeno custo, a mentira do primeiro ministro, que dissera que havia um pequeno risco de eles terem que suportar custos, quando o risco de eles terem que pagar um grande custo é absolutamente certo, no meio de uma daquelas conversas entre eleitores do doutor Rebelo de Sousa sobre a sua falta de isenção política e de sentido de estado que conduzem sempre à auto-justificação de que... seria suicida não votar no Marcelo e abrir a possibilidade de haver uma segunda volta em que a esquerda votaria em bloco no Sampaio da Nóvoa contra ele..., um amigo fez-me pela primeira vez uma pergunta a que eu sempre soube reponder e sempre estive preparado para responder na ponta da língua:
Desatei logo a debitar o MP3, que já não se vendem cassetes, número um:
E ele olhou para mim e disse-me, com olhos de quem pergunta e não é isso que está a acontecer?
Ou seja, não disse nada e deixou-me continuar:
E nesse dia percebi que tinha deixado de saber responder à pergunta a que até aí sempre tinha sabido responder.
Sampaio da Névoa, rector emeritus da Universidade de Lisboa, dirigiu-se ao povo de Abril, reunido na Aula Magna, lugar recentemente tornado ilustre pelas orações de outros clérigos, e declarou que a poesia é a única prova concreta da existência do homem.
A plateia, parece, irrompeu em aplausos. E que plateia: estava lá Jorge Sampaio, que se especializou como Presidente em recomendar serenidade em todas as situações, mesmo quando ninguém estava nervoso; Cravinho, um conhecido campeão da luta anti-corrupção, oportunamente expedido para o Banco Europeu de Investimentos, para um lugar egrégio que contrariadamente aceitou; Joana Marques Vidal, uma magistrada discreta de cuja existência a opinião pública tomou conhecimento pelo seu amor incontrolável ao falecido pintor Miró, cujos quadros se comprometeu, com a autoridade que não tem, a não deixar sair do País; Ferro Rodrigues, um ex-embaixador na OCDE, ex-secretário-geral do PS, ex-ministro e ex uma data de coisas; Guilherme de Oliveira Martins, Presidente do Tribunal de Contas, notório pela sua honestidade e a sua inutilidade; e todo um friso de ilustres, uns por obrigação, presume-se, e outros por devoção - um discurso de Sampaio da Névoa é como um passeio de balão, apanha-se ar fresco mas não se vai a lado nenhum.
Fiquei escandalizado: que eu julgava assente, desde Descartes, que o simples facto de pensar era a garantia da existência do Homem - cogito ergo sum, como dantes se aprendia no Liceu. Mas não - é pelos vistos preciso pensar em verso, um grande embaraço.
Isto já me deixou meditabundo. Mas Névoa alerta para uma guerra que está insidiosamente em curso contra as "Artes" ("sim, a guerra", sublinhou), e tal ocorrência é de gelar o sangue. Infelizmente, não se deu ao excessivo trabalho de concretizar no que ela consiste, e aqueles cidadãos que, como eu, não veriam com bons olhos estas iniciativas bélicas, vêem-se impedidos de dar o seu contributo para o bom combate.
Finalmente, protesta a necessidade de "recuperar a energia de Abril", recordando o jovem que era então, quando vivia essa "situação única, irrepetível", que fazia crer que "o futuro de todos estava no mais pequeno gesto de cada um".
Isto é comovente: eu também era jovem nessa altura, embora nunca me tivesse ocorrido que os meus pequenos gestos (assoar o nariz, limpar os óculos, fazer xixi) dessem quaisquer garantias de um futuro radioso para a comunidade.
Mas, lá está, como não sou poeta não sei pensar, e em bom rigor talvez até nem tivesse existido, então e agora. O que, tudo visto e ponderado, nem seria má ideia - sempre me poupava a vacuidades pedantes.
Se, no google maps, se procurar "rua Mário Soares", encontram-se resultados na Póvoa de Lanhoso, em Pias (Lousada), Vila Pouca de Aguiar e Vagos; se a procura for por "avenida", a colheita é Abrantes, Oeiras e Chaves. De praças ou pracetas, nada, e nada também para travessas.
Isto é estranho: que eu em 1975 já trabalhava e era atento, e se não estive na Fonte Luminosa estive nas Antas e tenho bem presente quem liderou o movimento de resistência anti-comunista. E mesmo que seja verdade, se for, que o PCP recuou na 24ª hora para evitar uma guerra civil; ainda que, se Soares não existisse, outro desempenhasse o papel; mesmo que a nossa localização geográfica, a importância da Igreja, a existência de numerosos pequenos proprietários e empresários, e uma já razoável classe média, tudo se conjugasse para inviabilizar uma revolução tão obsoleta como o partido e satélites que a impulsionavam, nem por isso Marocas deixará de ter o seu lugar na História - uma meia-página se a História for concisa, que é mais do que está reservado às outras personagens que nos povoam a memória da época.
Se Soares, cuja marca está tão presente no Portugal desde então, se vê escassamente representado na toponímia, isso é porque, depois do seu papel de herói civil no Verão Quente de 1975, nunca foi mais do que um chefe partidário como os outros, e como os outros votado à experimentada desconfiança e desprezo que os Portugueses reservam aos seus líderes. Ah!, tivesse ele morrido providencialmente, e o País inteiro estaria coberto com urbanizações e pontes e pavilhões multi-usos com o seu nome. E dir-se-ia hoje, com um encolher de ombros desalentado e soturno: se Soares fosse vivo, nada disto teria acontecido.
Sucede porém que, com diferenças de grau e de estilo em relação aos colegas da arena política, o Portugal que Soares quis e para o qual trabalhou, é o Portugal que temos: europeu do Sul nos costumes, atento, venerador e obrigado a internacionalismos vários, bem-pensante, com uma diplomacia ágil e competente na chupice de fundos, abrigado debaixo de uma Constituição surreal que garante os direitos económicos de todos desde que os nossos parceiros e os ricos paguem.
No Portugal de Soares, a chuva e o bom tempo vêm do Euro, da UE, do Estado patrão e do Estado investidor; e como, subitamente, o Euro se revelou um fato apertado a uns e solto a outros, curto ou comprido nas mangas, e de forma geral de mau corte, por ser a moeda de uma raça de trabalhadores disciplinados nos dias úteis, e borrachões de fim-de-semana; como a UE é um conjunto suspeito de instituições desacreditadas, recheadas de funcionários parasitas e metediços, afogados em privilégios e tretas; como o Estado patrão alargou o número de dependentes até ao infinito, para garantir votos para os eleitos do dia; e como, na pele de investidor, cobriu os montes de ventoinhas, as esquinas de abastecedores para carrinhos eléctricos, e as escolas maternais de computadores para ver as aventuras do Noddy - a bonanza durou o tempo que durou o crédito.
É aqui que estamos. O Governo que temos, desastradamente embora, quis pôr ordem na tourada. Pôr ordem na tourada quer dizer fazer marcha-atrás. E fazer marcha-atrás é o nosso caminho inelutável, o da UE e o do papel dos Estados - tudo aquilo em que Mário Soares acredita, e a que dedicou a vida.
É a esta luz que se deve interpretar o que se passou na Aula Magna: todos os que lá estiveram querem evitar o inevitável, embora nem todos pelas mesmas razões. E, se me é permitido, mil vezes o velho discurso republicano, jacobino e socialista do homem que, mais do que outro qualquer, é responsável pela abjecção a que o nosso País chegou, do que os arroubos líricos do Professor Sampaio da Nóvoa, que não tem a desculpa de ter uma obra a defender nem uma vida de fé que as consequências abalam todos os dias, mas é reincidente nestas lides.
O homem está xéxé, dizem-me próximos. Não está não, digo eu: tem o mesmo síndroma de Cunhal, que manteve a fé no céu terreno mesmo depois da queda do muro de Berlim.
Recapitulemos: em Março de 2011 o admirável reitor aprovou, "apoiou", e até se deslocou a Maputo para discursar na inauguração da exposição "Caras e Citações: uma interpelação estética sobre Universidade, Cultura e Desenvolvimento", onde a talentosa filha do dr. Braga de Macedo apresentou as suas obras de "arte" (não deixem de consultar, se quiserem privar com imagens inesquecíveis).
Por considerar que a "aplicação" destas verbas significavam uma "aposta" na "criatividade" dos "nossos" filhos, pôs à disposição desta jovem um atelier permanente nas instalações da Universidade que dirige.
É importante que se conheça o trabalho desenvolvido por estes académicos que, conseguindo identificar as medidas favoráveis "aos interesses do país", "investem" em "arte". Por oposição aos artolas que, não sabendo nada do assunto ou agindo no sentido da sua própria promoção, usam os dinheiros públicos para favorer as filhas dos "brilhantes" conselheiros da nação.
Movida pelo aconselhamento de "conteúdos" do facebook, alterei o curso do meu serão e fui direita à "RTP i" para ouvir falar "um jovem". Chama-se João Marecos, preside aos estudantes, e discursou na cerimónia comemorativa da fusão da Universidade Clássica com a Universidade Técnica de Lisboa.
Cinco minutos foram suficientes para se aliviar de uma série de inconfidências sobre os "sonhos" (sem vestígio de originalidade) dos colegas que representa (e em nome dos quais falou). Por uma questão de rigor científico, presumo que tenha dormido com a quantidade de colegas, de ambos os sexos, suficiente para que o universo estudado possa considerar-se significativo. Se o não fez, já estamos perante o primeiro barrete.
Esse intervalo de tempo chegou também para citar Sophia de Mello Breyner, Vergílio Ferreira, e Manuel Alegre. Só me ficou uma dúvida: falará francês?
Deduzo, ao contrário de Maria Flor Pedroso, que o jovem não gosta de literatura. É legítimo. Mas se em lugar de literatura João Marecos gosta dos autores que mencionei, vejo ali uma espécie de Sampaiozinho da Nóvoa e não dou o meu tempo por bem empregue.
Já devia ter aprendido. Os jovens com idade inferior a (vá lá, não exageremos) 30 anos deviam ser defendidos de falar em público.
Portanto passo. Este rapaz vai direito à reitoria, não precisa da minha ajuda. Estou certa que saberá empregar os anos de universidade para aprender o que lhe falta sobre a arte da intriga. De resto tem bom aspecto, serve para decorar uma sala.
Gosto muito de assinalar datas, e o 10 de Junho ajuda-me sempre. No ano passado aconteceu puézia, porque o dr. António Barrete fez um discurso lindo, a tratar Portugal por tu, "óh Portugal, tu isto tu aquilo", e "os teus filhos não sei quê", e foi muito comovente; todas as senhoras choraram, mesmo as mais acostumadas às câmaras da televisão.
Este ano o dr. Barrete foi medalhado, encontrando-se agora na companhia de todos os artistas do PREC, e nessa qualidade não pôde repetir o momento espiritual. Foi substituido, quanto a mim com vantagem, pelo dr. Sampaio da Nóvoa. Estou certa que rebentaram os índices de audiências, atingindo os níveis mais baixos desde a transmissão, na RTP 2, em Junho de 2004, da totalidade do Festival de Dança de Roda Silenciosa Nijemo Kolo, da Croácia. Refiro-me às últimas duas horas do festival, transmitido em simultâneo com as meias finais do Campeonato Europeu de Futebol, de saudosa memória, no canal do lado.
Sampaio da Nóvoa é um homem sóbrio. Não se vê o dr. Sampaio da Nóvoa sempre a pôr-se em bicos dos pés, aparecendo por tudo e por nada a perpetrar entrevistas, ou a carimbar com as suas reflexões qualquer programa de "mesa redonda". Sampaio da Nóvoa reserva as suas presenças para situações onde ela é, efectivamente inescusável. Como em Março de 2011, pela inauguração da exposição de arte (credo, o teclado até rangeu) lusófona "Caras e Citações: uma interpelação estética sobre Universidade, Cultura e Desenvolvimento", da talentosa Ana de Macedo, patrocinada pelo Instituto de Investigação Científica Tropical, presidido pelo pai da rapariga, e em parceria com o projecto Saber Continuar. Com o "apoio" da Faculdade de Letras que comemorava assim o seu centenário.
A obra apresentada constava de uma série de enormes painéis revestidos com colagens (uma técnica ainda desconhecida dos portugueses) onde, numa combinação de génio cromático com astúcia literária, podiamos observar pretinhos a brincar com computadores Magalhães, intercalados com lixeiras, edifícios de escritórios, salas de aulas, manifestações estudantis, e frases irreverentes como "A lusofonia pode ser aplicada a qualquer parte do mundo", ou "O espaço de parcerias alargou, e muito", ou ainda "Português não é assim um conceito de raça, mas antes uma 'unidade de sentimento e de cultura', que aproximou homens de várias origens". Esta última vinha assinada "O.R.".
No discurso que reservou para esta ocasião, Sampaio da Nóvoa foi inflexível. Disse que "este centenário fica marcado pela criação, mobilidade e cooperação que existe nos dias de hoje nos países lusófonos, que vai muito além das universidades". Concordo. Vai muito além das universidades. Já vai nas "artes". E disse também que "é preciso criar condições concretas para que os estudantes de países Lusófonos possam estudar em Portugal e para que haja dinâmica efectiva de cooperação nos estados lusófonos". Pronto, dr. Sampaio da Nóvoa, já tínhamos ouvido.
Pelo 10 de Junho, Sampaio da Nóvoa voltou a abanar os portugueses com afirmações polémicas e originais. Desta feita, alertou para o "aumento das desigualdades sociais", observou que os portugueses "vivem hoje pior do que viviam ontem", e temeu que esta sociedade fosse "vencida pelo medo e pela radicalização". Depois ilustrou o discurso com mais um sortido de finuras da mesma natureza e, lá mais para o fim, disse que "Precisamos de transformar estes movimentos numa acção sobre o país, numa acção de reinvenção e de reforço da sociedade. Chegou o tempo de dar um rumo novo à nossa história. Portugal tem de se organizar dentro de si, não para se fechar, mas para se abrir, para alcançar uma presença forte fora de si." E acabou, tão entusiasmante como começou, concluindo que "Não temos tempo para hesitações. As universidades vivem de liberdade, precisam de ser livres para estarem à altura do que a sociedade lhes pede. É por aqui que passa o nosso futuro, pela forma como conseguirmos ligar as universidades e a sociedade, pela forma como conseguirmos que o conhecimento esteja ao serviço da transformação das nossas instituições e das nossas empresas".
O que Sampaio da Nóvoa não disse foi nada de concreto. Efectivamente, não disse nada que interessasse aos portugueses. Como, por exemplo, que tipo de acção é preciso exercer "sobre o país", ou qual o "novo rumo" a dar "à nossa história", ou de que forma pensa ele que o conhecimento pode passar a estar "ao serviço da transformação das nossas instituições e das nossas empresas". E não o disse porque Sampaio da Nóvoa não alinha em "facilitismos", e desengane-se quem pensar que Sampaio da Nóvoa nos vai servir a papinha toda feita. Além de que um feriado, como toda a gente sabe, serve para os portugueses dormirem o meio dia da manhã, e Sampaio da Nóvoa respeita o descanso dos portugueses.
Sampaio da Nóvoa distingue-se das restantes figuras do pensamento pátrio, cujo dinamismo só encontra paralelo na vastidão da sua irrelevância. Sampaio da Nóvoa poupa-nos o dinamismo.
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