Morreu uma adolescente de 17 anos num hospital do Serviço Nacional de Saúde por ter sido contagiada com sarampo, doença para a qual não estava imunizada por não ter sido vacinada, no decorrer de um internamento por uma doença menos grave e não letal, a mononucleose.
O SNS é regularmente apontado pelos seus responsáveis como um dos melhores do mundo com base em estatísticas e comparações várias e, relativamente ao sarampo, é mesmo classificado pelo próprio Director-Geral de Saúde, um dinossauro da burocracia que já enterrou mais ministros do que a viúva negra maridos, talvez por ao longo das últimas décadas ter conseguido com sucesso ser ele o porta-voz das boas notícias no domínio da saúde, por exemplo, o espectacular dispositivo de resposta à gripe A, e delegar nos ministros as más notícias, por exemplo a fortuna gasta em milhões de vacinas para a gripe A que foram adquiridas mas nunca ministradas, como motivo de inveja lá fora.
O DGS foi, prontamente como lhe é tradicional, o primeiro a reagir, apontando as baterias à falta de vacinação, e tendo mesmo sugerido, depois deixou cair à medida que se apercebeu que tanto a tutela como o poder político não estavam para aí virados, a obrigatoriedade da vacinação.
E estava dado o mote, a culpa não era da falta de condições para proteger os doentes contra o contágio por outras doenças nos estabelecimentos do SNS, mas da recusa de vacinação, tanto dos doentes que contagiam os outros, como dos que se deixam contagiar. Esta linha de argumentação é brilhante e está destinada ao sucesso garantido, até porque basta dar o pequeno salto de associar a falta de vacinação à recusa de vacinação, e esta a crenças próprias de seitas religiosas ou atitudes naturalistas de hippies retardados, para iniciar uma guerra ao obscurantismo pelo iluminismo, e qual de nós não adere entusiasticamente a uma guerra em que se sente elevado pela superioridade civilizacional e moral, que no entanto a Zita Seabra explicou cristalinamente que justifica as maiores barbaridades, que tão bem sabe? E assim se iniciou mais uma cruzada contra o obscurantismo da falta de vacinação.
Montada a pira de lenha no pelourinho para o julgamento na praça pública pelo burocrata-mor, foi imediatamente regada com gasolina por médicos mediáticos, e quem aparece primeiro ganha pontos no campeonato do mediatismo, como o pediatra Mário Cordeiro com tiradas a dar títulos como "O movimento antivacinas é idiota e é uma afronta aos mortos" ou "Pais que não vacinam filhos são negligentes e deviam ser responsabilizados". Já havia um embrião de sentança, os pais destas crianças com sarampo são idiotas e deviam ser criminalizados. E os burocratas e os médicos ilibados, digo eu que é uma consequência lógica da anterior.
Mas, mesmo nos tribunais da opinião pública que tendem a ser muito mais expeditos a dissipar as dúvidas e a chegar a sentenças definitivas do que os tribunais de justiça, chegam a ouvir-se testemunhas, e chegou a vez aos jornalistas. A jornalista do Expresso não teve dúvidas em denunciar que "Mãe da rapariga de 17 anos é antivacinas..." mas, pior ainda, "...e adepta da homeopatia", informação que lhe tinha sido passada por fonte médica. Estava dissipada qualquer dúvida sobre a pertença destes pais às forças do obscurantismo. Que andamos todos a combater, digo eu. A notícia foi posteriormente actualizada com informação prestada por familiares dos pais que explicaram que a jovem não tinha sido vacinada contra o sarampo na altura prevista por indicação médica, por ter feito um choque anafilático grave em reacção a outra vacina, mas o título da notícia, que é a única coisa que interessa, não foi alterado num milímetro, e ficou para a posteridade que "Mãe da jovem que morreu com sarampo é antivacinas". Podia-se, pois, passar à execução da pena e pegar fogo à pira e aos pais.
E foi o que aconteceu. No pelourinho das redes sociais, no julgamento dos pais que recusam vacinar os filhos pelos cidadãos que defendem a vacinação, aqueles pais foram condenados ao ridículo do obscurantismo desalmado que lhes fez matar a própria filha. Assunto arrumado.
A alegação de que não tinham vacinado a menina por indicação médica depois do choque anafilático não foi considerada relevante pelos membros do júri, que somos todos nós. Provavelmente foi uma desculpa esfarrapada para fugirem às responsabilidades. E apareceram logo médicos a esclarecer que, mesmo com o choque anafilático anterior, os pais poderiam à mesma ter vacinado a menina, nem que a internassem num hospital para lhe dar a vacina e controlar os efeitos da reacção alérgica num ambiente medicamente controlado. Aliás, a desculpa era desinteressante por transferir a responsabilidade dos pais para a pediatra da menina, e nem o DGS nem os médicos mediáticos gostarem muito de apontar o dedo a outros médicos quando o podem apontar a pais obscurantistas.
E a quem saiu a sorte grande neste julgamento mediático?
Ao Ministério da Saúde, que, com todos ocupados a discutir o obscurantismo dos pais, ninguém questionou seriamente sobre como é possível um doente ser internado num hospital com uma doença benigna e sair de lá para o cemitério com uma doença mortal que apanhou por contágio no hospital onde era suposto ter sido tratado da doença que levou e protegido de contágios de outras doenças. Mas esta é uma daquelas perguntas a que não interessa procurar resposta, para não estragar o ambiente de descrispação em que, graças a Deus, ou ao presidente e ao primeiro-ministro, vivemos.
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