Uma das ideias mais daninhas que importámos, salvo erro, de alguns países nórdicos, e hoje quase completamente pacífica na UE, é a da concertação social.
Consiste ela, a concertação, em envolver as confederações patronais e sindicais numa negociação permanente com o Governo, para o efeito de desarmar a conflitualidade social.
Na vastíssima literatura sobre o assunto, debalde se encontrarão algumas verdades simples:
i) Ninguém sabe, e ninguém quer saber, qual o grau de representatividade das associações patronais. Estas tendem a incluir aqueles patrões de grandes empresas que, por terem quadros bem fornecidos de dirigentes, podem alocar parte do seu tempo às relações públicas, que incluem o conhecer pessoalmente gente da área do Poder, por um lado; e, por outro, os patrões de empresas pequenas ou médias que, ou por serem estáveis ou porque a gestão está assegurada razoavelmente, podem dedicar-se ao desporto de conhecer the right people, o que dá muito jeito, e serem conhecidos do people em geral, o que pode influenciar favoravelmente clientes e fornecedores. Quanto à forma pela qual os patrões dos patrões são escolhidos, há algumas variações de associação para associação e de confederação para confederação, mas no geral os dirigentes são bem mais antigos do que o mobiliário das sedes, e os processos eleitorais tão entusiasmantes como uma sopa de feijão sem sal, e de igual transparência.
ii) Ninguém sabe, e ninguém quer saber, qual o grau de representatividade dos sindicatos. Sabe-se que a maioria dos trabalhadores não está sindicalizada, excepto nas empresas públicas e nalgumas privadas grandes; os dirigentes fingem sem grande convicção que não são do PCP, a maioria, e do PS, e que não estão ali para papaguear o discurso que aqueles respeitáveis partidos têm para o mundo do trabalho; os dirigentes mudam periodicamente, com a serenidade de uma mecânica bem oleada; e os trabalhadores, quer paguem quer não paguem quotas, quer votem quer não votem nos partidos de esquerda dos quais os sindicatos são o braço laboral, vão dizendo para os seus botões que aquele bando de comunas, às vezes, dá jeito.
O chapéu deste edifício com dignidade constitucional é o Conselho Económico e Social, que tem por missão esta que aqui se enuncia.
O Presidente da Comissão Permanente deste importante organismo é uma personalidade consensual, um adjectivo simpático para qualificar uma das rolhas do regime, no caso o gestor Silva Peneda. Podia ser Artur Santos Silva, ou o ministro Machete (antes de repescado), ou Rui Vilar, ou qualquer outra daquelas personalidades do Centrão que se distinguem por carreiras ilustres sem que jamais alguém lhes tenha ouvido uma opinião a contrario dos ares do tempo, ou até alguma ideia que não seja uma banalidade edulcorada, com o benemérito propósito de não ferir susceptibilidades.
Este senhor encarregou-se de organizar o Dia de Portugal, e, solenemente, orou no dia aprazado. Que disse? Bem, alertou para os "números elevados do desemprego", uma realidade que tem passado um tanto desapercebida; protestou a "necessidade de vir a ser estabelecido um compromisso com a duração de, pelo menos uma década [...] que persiga de forma coordenada três grandes objectivos: equilibrar as finanças públicas, reformar o Estado e pôr a economia a crescer", objectivos que não devem ser difíceis de atingir porque são partilhados do CDS ao MRPP; e revelou que "o país precisa de outro modelo, baseado em muito e bom investimento, capaz de gerar alto valor acrescentado em bens e serviços transaccionáveis, com empresas sólidas e sustentáveis, tanto do ponto de vista económico como ambiental". Não disse neste ponto quem são os maus portugueses que desejam empresas débeis, fazendo pouco investimento e produzindo bens de baixo valor acrescentado, além de agredirem selvaticamente o ambiente, mas devemos esperar que venha a denunciá-los ao Ministério Público. E, num final arrebatador, concluiu que "as dificuldades podem ser ultrapassadas se as suas instituições se transformarem em poderosas máquinas promotoras de compromisso entre grandes e pequenos, entre ricos e pobres, entre o Norte e o Sul". Pelo que me diz respeito, estou disponível para, logo que as instituições europeias se ponham de acordo, receber uns suecos em minha casa, oferecendo-lhes dormida e um almoço de rojões à moda do Minho, desde que cá se desloquem para resolver o problema dos sem-abrigo em Guimarães, cidade que, em relação a Estocolmo, se distingue por uma grande meridionalidade.
Temos então que um governo democraticamente eleito discute permanentemente a sua política "de desenvolvimento socio-económico", fora do Parlamento, com os mesmos partidos com que a discute lá dentro; que este organismo prestigiado custou, em 2013, para cima de 1.300.000,00 Euros, dos quais quase metade para custos com o pessoal, e quase outro tanto com transferências para os parceiros sociais; e que o resultado líquido de tanto acordo é nem o governo fazer o que acha que deve nem os parceiros ficarem nunca satisfeitos - suponho que seja a isso que se chama concertação. Ainda com o brinde de o CES cumprir, de certo modo, o seu papel, dado que a qualidade da representação é de modo a pôr toda a gente de acordo - cabeceando de sono.
1.300.000,00 Euros são peanuts. Tal como todos os outros organismos espúrios ou deletérios que não se extinguem - cada um deles são peanuts. Nem sei, bem vistas as coisas, porque se extinguiu a Câmara Corporativa - a menos que tenha sido pelas mesmas razões que levaram à extinção da Ponte Salazar.
A propósito do Pingo Doce disse em tempos umas coisas sobre o Conselho Permanente de Concertação Social. Possivelmente o nome nem estaria correcto, seria Comissão Permanente de Concertação Social. Ou mudou entretanto - se há coisa que os burocratas adoram é mudar o nome dos organismos, sempre dão a impressão que estão a fazer alguma coisa.
Não disse quase nada de elogioso. Nem podia: a concertação social, tão querida da social-democracia, é entre nós um mecanismo vicioso pelo qual uns senhores que dizem representar os trabalhadores se põem de acordo, ou em desacordo, com uns senhores que dizem representar os patrões, de modo a que uns e outros (os senhores) tenham a notoriedade que de outro modo não teriam. Quando concluem um acordo (o que por estes dias amargos não tem sucedido) felicitam-se uns aos outros, os patrões pela sua tolerância, compreensão e modernidade (são quase quase suecos, dá gosto) e os sindicalistas por mais uma vitória duramente conquistada nas arruadas, manifs e greves. Claro que aos sindicalistas ninguém corta no vencimento por causa das greves; muito grevista recupera em horas extraordinárias o que perdeu nas ordinárias; quem corre realmente o risco de perder o emprego dificilmente faz greve; e quem dirige PMEs expostas à concorrência e sem ajudas do Estado não terá tempo para perder em reuniões intermináveis em Lisboa, a menos que lá viva. Mas isso, com toda a certeza, não é estatisticamente relevante e supõe da minha parte um esforço de adivinhação. Que na verdade há muito tempo não sou, nem quero ser, sócio de coisa alguma.
Na realidade, os sindicalistas não defendem os trabalhadores - defendem um tipo de sociedade que acham ser a melhor para os trabalhadores, a qual, por infeliz coincidência, não é a que temos. E os patrões dos patrões papagueiam o que imaginam ser o interesse dos seus "representados" mais esclarecidos, que os menos esclarecidos são de todo o modo uma malta refractária à modernidade destes areópagos da treta, pelo que lhes compete comer e calar.
Tudo isto custa, e custa muito, ao erário público: ninguém se concerta do seu próprio bolso. E a concertação ainda não é tudo: o organismo que nela superintende (CES) prossegue outros fins da maior relevância, já na emissão de pareceres, quer lhe sejam, quer não sejam, pedidos, sobre política económica e social, já em assuntos que tenham que ver com o ordenamento do território e desenvolvimento regional - um Mundo.
Quem preside a este mastodonte corporativo (corporativo mesmo, não a tradução deficiente do Inglês que a ignorância encontrou para uso da palavra) é Silva Peneda.
Pois este tradicional prócere do establishment resolveu sossegar as multidões atordoadas com a crise, oferecendo a sua lúcida e serena interpretação. E, com argúcia, disse coisas da maior profundidade mas insusceptíveis de gerar controvérsia. Explico: Silva Peneda passa por ser de direita; mas não diz nada que, por exemplo, Boaventura Sousa Santos, um conhecido paladino da esquerda okupa, não subscreva. É obra.
Não me atreveria a tentar condensar em meia dúzia de frases a riqueza de um discurso que impressiona pelo rigor e originalidade. Mas o próprio Peneda resume-o assim: "A época da experiência neo-liberal fracassou e a suposta auto-regulação do mercado é apenas uma teoria sem qualquer correspondência com a realidade, porque o mercado não é capaz por si só de se auto-regular e daí que a intervenção dos poderes e das políticas públicas seja decisiva".
É certo que, para não sairmos do nosso torrão: nunca as nossas dívidas, pública e externa, teriam atingido os níveis demenciais que atingiram sem a adesão ao Euro - a terceira chamada do FMI teria tido lugar muito antes; a distracção do investimento dos bens transaccionáveis para os não transaccionáveis resultou, além do mais, de numerosos incentivos públicos (a subsidiação dos juros dos empréstimos à habitação, por exemplo); o combate à crise e, mesmo antes dela, a criação de emprego e do crescimento, fez-se pela via do investimento público de retorno duvidoso; o nível de despesa pública manteve-se permanentemente em torno de metade do PIB; e conviveu-se resignada e permanentemente com défices.
Tudo, mas absolutamente tudo, resultou de escolhas públicas - a tal "intervenção" dos "poderes públicos". E olha, Peneda, terei estado porventura distraído mas não me lembro de em nenhum momento te ter ouvido alertar para a insustentabilidade do caminho que se estava a seguir. Por isso, se quiseres insistir na tese, sugiro uma reformulação, a bem da lógica: o neo-liberalismo resultou no desastre; por isso rejeito o neo-liberalismo que resultou no desastre; sou a favor do meu neo-liberalismo, porque o meu neo-liberalismo não resultaria no desastre; a diferença entre um neo-liberalismo e o outro só eu sei; e não divulgo, porque não sou de ditos.
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