Lembram-se da sociedade de advogados que tem o timbre no contrato do Siresp negociado pelo António Costa que inclui a já célebre cláusula 17 que blinda o consórcio contra quaisquer responsabilidades pelo não funcionamento da rede em situações de emergência?
Lembram-se do secretário-geral do Partido Socialista que uma vez disse numa entrevista "Há, em Portugal, um partido invisível, que tem secções sobretudo nos partidos de Governo, que capturou partes do Estado, que tem um aparelho legislativo paralelo através dos grandes escritórios de advogados e influencia ou comanda os destinos do País"?
Sabem qual foi a sociedade de advogados escolhida pelo governo do António Costa para estudar se há volta a dar na cláusula 17 do contrato do Siresp?
O SIRESP do António Costa, e digo do António Costa porque foi ele que o adjudicou por 485 milhões de euros contra o parecer que tinha solicitado ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República de declarar nula a adjudicação feita pelo seu predecessor Daniel Sanches com o governo em funções de gestão e, portanto, sem competência formal para fazer uma adjudicação desta importância, custou, mais coisa, menos coisa, tanto como um dos dois submarinos do Paulo Portas, aqueles que imergem e emergem no parlamento e nos jornais em função das marés dos ciclos eleitorais.
Pelo custo do SIRESP teria sido possível disponibilizar a cada um dos seus cerca de 50 mil utilizadores potenciais um iPhone 7 com chamadas ilimitadas, e ainda um automóvel utilitário com alta-voz para evitarem telefonar ao volante.
Para que serve então o SIRESP, que justifique a exorbitância que nos custou e continua a custar?
Vou ver se consigo esclarecer a população sem recorrer a termos como "dispositivo" ou "meios", sem o jargão hermético que os especialistas usam para dar às pessoas de fora a impressão que lidam com conceitos tão complexos que não lhes vale a pena tentar sequer perceber, quanto mais dominar com auto-confiança suficiente para os criticar a eles, que os dominam.
A explicação para ser necessário montar uma rede própria sem dependência das redes comerciais já existentes e que servem mais do que satisfatoriamente os dez milhões de portugueses está no próprio nome do sistema, Sistema Integrado de Redes de Emergência e Segurança em Portugal. Era necessário disponibilizar às forças responsáveis pela segurança do país, incluindo protecção civil e bombeiros, um sistema que assegurasse as comunicações em situações de emergência, em que as redes dos operadores comerciais de telecomunicações podem ter falhas, por exemplo por uma antena de retransmissão ser destruída por um fenómeno da natureza, um raio, por exempo, ou os cabos que asseguram a ligação das antenas à rede serem cortados por outro, um terramoto, por exemplo. Era necessário assegurar o funcionamento da rede em condições de emergência custasse o que custasse, e custou-nos 485 milhões de euros.
Tendo a sua existência baseada nesta necessidade, devia ser um bocadinho surpreendente que o contrato assinado entre o Estado e o consórcio tivesse a habitual cláusula 17ª - Força Maior * a isentar o consórcio de continuar a assegurar o funcionamento da rede nos casos de força maior,
que correspondem, como é norma, exactamente às situações de emergência que justificam a existência do sistema, mesmo quando um oportuno raio cai do céu. É a cláusula de pára-raios.
Devia, mas não é, e por duas boas razões. A primeira é que o contrato tem a assinatura da Linklaters, uma das mais reputadas sociedades de advogados a operar em Portugal, pelo que é de se presumir que todos os interesses do Estado, e os nossos, foram devidamente salvaguardados. A outra é que, com 60 anos, já não tenho a capacidade que antes tinha de me deixar surpreender.
Não se pense, no entanto, que por ter a salvaguarda da cláusula 17ª - Força Maior o consórcio se desobrigou de assegurar o funcionamento da rede, mesmo em casos de emergência. Para o assegurar, o consórcio dispõe de quatro estações móveis, as elegantes carrinhas ilustradas na fotografia desta publicação, mesmo se no Pedrogão Grande só uma estava operacional para substituir as antenas que ficaram desligadas devido ao incêndio, porque a outra das duas originais está avariada e as duas mais recentes ainda não estão equipadas para funcionar.
Os nossos 400 milhões que, em números redondos, o António Costa deu pelo SIRESP a mais do que teria custado recorrer a telemóves banais valem, se por outras razões não fosse, por estas quatro carrinhas. Por elas e por, certamente, terem feito alguém feliz. Na medida em que o dinheiro traz felicidade. Mesmo o dinheiro de sangue.
* Cópia do contrato roubada ao Carlos Guimarães Pinto no Facebook.
Para além das imunidades formais que o exercício do cargo de primeiro-ministro em exercício lhe confere, o António Costa usufrui aparentemente de duas imunidades extraordinárias informais:
Imunidade jornalística
Ao contrário do primeiro-ministro anterior, que viu a sua vida contributiva vasculhada até ao tostão no parlamento e nos jornais, mesmo a da época em que era precário, a comunicação social tem um saudável e manifesto desinteresse pela vida contributiva do actual primeiro-ministro, mesmo a da época em que era milionário. Nunca se viu grande agitação por ele ter acumulado salários completos pelo exercício de funções oficiais em regime de dedicação exclusiva com honorários milionários como comentador de televisão, nem por ter recebido estes honorários a título de direitos de autor para os poder acumular legalmente com os salários completos e, por ser a esse título, serem parcialmente reduzidos a metade para efeitos de imposto sobre o rendimento. Nem a curiosidade que impele os jornalistas a investigar para aprofundar a compreensão de negócios que indiciariam comportamentos de ética duvidosa, quando não crimes graves, se fossem participados por outros políticos, que não ele. Nem qualquer reacção corporativa de indignação colectiva nem individual da classe quando ele injuria ou ameaça um jornalista, em privado ou em público, que qualquer político normal suscitaria se o ousasse fazer. Verdade se diga que o tom labrego com que se dirige regularmente aos parlamentares, e ele hoje estava em forma, faz parecer quase cordatas as ameaças, mesmo em privado, que dirige aos jornalistas.
Os motivos para esta imunidade estranha, ou notável, conforme seja vista da direita ou da esquerda, não são conhecidos com precisão, se bem que haja algumas explicações com um mínimo de plausibilidade, como por exemplo o facto de a mãe ter sido presidente do sindicato dos jornalistas. Mas, ao certo, não se sabe?
Imunidade judicial
A imunidade judicial é ainda mais estranha. Por mais óbvios que sejam os indícios de alguns crimes, por mais estranhos que sejam alguns aspectos de algumas negociatas que tem promovido enquanto governante, a justiça não lhe pega, não o investiga, não o leva a tribunal, não o condena.
É verdade que, na circunstância específica actual em que é primeiro-ministro, a justiça tem algumas limitações nos instrumentos a que poderia recorrer se o quisesse investigar. Também é verdade que a justiça, se abandonou a sua posição lendária de deixar os ricos e poderosos à vontade sem os incomodar, para se tornar particularmente dura, e até talvez mediática acima da dose recomendada para se fazer justiça com seriedade, na perseguição a alguns deles, continua a parecer preferir incidir a sua acção sobre ricos e poderosos has been, tenham eles sido empresários da bola, banqueiros, governantes ou até primeiros-ministros, e a deixar tranquilos os que ainda estão no activo, como ele está. Mas, mesmo quando as fez em alturas em que não tinha funções governativas, ou nos intervalos entre funções governativas depois de as ter feito, nunca lhe tocaram.
E não há poucos exemplos em que o desinteresse da justiça parece demasiado benevolente.
Caso Casa Pia
No caso Casa Pia, o António Costa, actual primeiro-ministro e terceira figura do estado, mas então mero deputado da oposição, foi apanhado nas escutas a conspirar com o actual presidente do parlamento e segunda figura do estado, mas então também deputado da oposição, com o então presidente da república, e o então procurador-geral da república, para tentarem colectivamente impedir a entrada no tribunal de instrução criminal de um processo envolvendo um deputado socialista.
As consequências destas escutas que alguém dentro do sistema judicial, porque ninguém de fora do sistema judicial era já arguido, tinha advogado, ou tinha sequer conhecimento da sua existência, fez diligentemente chegar à comunicação social, foi mais ou menos por essa altura que a justiça passou a ser mais mediática, talvez para se livrar da fama consolidada de deixar os ricos e poderosos impunes, foram a belíssima anedota "Tou-me cagando para o segredo de justiça", a prisão preventiva do deputado que estava a ser investigado por risco de perturbação do inquérito comprovado pela escuta da conspiração dos seus camaradas, e nenhumas para os conspiradores comprovados, apesar de a perturbação de inquérito ser um crime. Não houve nenhum processo aos conspiradores por perturbação de inquérito na forma, pelo menos, tentada.
Siresp
Outro caso pelo menos enigmático foi o negócio do Siresp.
E o assunto parecia arrumado, e a bem da legalidade, da transparência e da ética na gestão dos interesses públicos. Parecia mas não estava. Em vez de pura e simplesmente não fazer a adjudicação, o ministro António Costa decidiu renegociar alguns termos do contrato com o consórcio, prescindindo de algumas funcionalidades e reduzindo o preço, e acabou por fazer a adjudicação por 485 milhões de euros. Em vez de anular um negócio que tresandava a vigarice por todos os lados de onde se olhava, limitou-se a contornar a ilegalidade da adjudicação para o concretizar.
Quem era o advogado da Motorola, uma das empresas do consórcio? O advogado Diogo Lacerda Machado, o melhor amigo e padrinho de casamento do ministro. Parece estranho? Parece.
O processo ainda foi investigado pelo Ministério Público, mas, ou por não haver indícios suficientemente sólidos para isso, ou por a investigação não ter sido suficientemente diligente para os encontrar, foi arquivado. E depois de o António Costa ter saído do governo não se lhe conhecem quaisquer sequências.
TAP
O negócio de alteração dos termos da privatização da TAP, que está a decorrer, também tem aspectos de transparência questionável.
Numa coincidência notável, os interesses do investidor Stanley Ho, que estiveram activamente na origem da queda da TAP, a quem se associou e de quem se dissociou com mais valias no negócio da VEM, acabaram por ser beneficiados com a autorização do governo actual para entrarem no capital da empresa.
Quem era administrador da Geocapital, e continua a ser, quando foi feito o negócio da VEM, e foi administrador da VEM enquanto a Geocapital foi sua acionista? O advogado Diogo Lacerda Machado, o melhor amigo e padrinho de casamento do primeiro-ministro, o mesmo que negociou o processo que também abriu as portas do capital da TAP aos associados das empresas que dirige. Parece estranho? Muito mais do que parece muito mais do que estranho.
A justiça interessou-se pelo negócio de aquisição da VEM pela TAP, que investigou, mas não se conhecem à investigação quaisquer resultados. De que haja conhecimento público, não há qualquer investigação e decorrer ao negócio da reversão da privatização da TAP. O negócio e a extraordinária teia de interesses cruzados personificada no melhor amigo do primeiro-ministro não parecem suscitar na justiça grandes apreensões. Ou, se suscita, são impecavelmente sublimadas e não chegam a aparecer.
A que se deve esta imunidade milagrosa, que tantos políticos que um dia foram poderosos mas depois de deixarem de o ser se viram agarrados nas teias da justiça, e estou a falar de figuras ilustres como o Duarte Lima, o Isaltino Morais, o Oliveira Costa ou a cereja em cima do bolo, o José Sócrates, por quem a justiça se interessou pela participação em negócios, em muitos dos casos bem mais modestos que estes que enumerei e não são exaustivos do curriculum dele, gostariam de poder ter usufruido e não conseguiram? Será por ter privado com advogados ilustres na sua passagem fugaz pelo mundo da advocacia que lhe ensinaram os truques do ofício que mais ninguém conhece? Será por ter redes de amigos da escola e do partido que intercedem por ele na justiça quando ele se mete em alhadas como ele intercedeu pelo seu camarada? Será coisa de lojas e aventais?
Não sei. O que sei é que ninguém lhe toca.
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