Tantos portugueses assassinados depois de vidas inteiras de trabalho honesto e duro para tentarem, e nalguns casos conseguirem, construir na Venezuela a vida decente que não conseguiram construir cá, e tantos filhos da puta que mereciam ser abatidos em assaltos ou por snipers milicianos em vez deles nas ruas de Caracas acolitados em departamentos de ciências humanas de universidades europeias para, e sempre à custa de dinheiro dos contribuintes, inventarem folhas de cálculo com indicadores cientificamente calibrados para defender os assassinos.
Pronto, o desabafo já está cá fora, passemos à discussão.
A esquerda portuguesa, ou melhor, as esquerdas portuguesas, partilham entre si um grande amor à revolução socialista venezuelana e diferentes níveis de adaptação ao air du temps que lhe identifica uma ditadura indefensável.
Os socialistas sempre viram na Venezuela uma oportunidade de negócio na implementação das suas políticas e estratégias económicas. Fosse para impingir navios construídos em estaleiros assassinados economicamente por negociatas de compra, rescisão e aluguer a outros do, então, presidente do Governo Regional dos Açores, agora, presidente do partido, fosse para passar contratos de construção de habitação social de biliões ao, anteriormente, ministro socialista das obras públicas, então, presidente de uma das construtoras do regime socialista, e agora, o mais moderado anti-passista dos paineleiros costistas da Quadratura do Círculo, fosse até para impingir o computador Magalhães ao povo venezuelano. É verdade que nenhum destes negócios miraculosos montados pelos socialistas se concretizou, e o dinheiro da Venezuela nunca chegou, nem enriqueceu nenhum empresário, nem criou nem salvou nenhum emprego. Vicissitudes recorrentes e mesmo típicas das políticas e estratégias económicas socialistas. Isto enquanto havia o dinheiro do petróleo que, agora, não há dinheiro, não há palhaços. Os socialistas puseram-se ao fresco.
Os comunistas são o que são, andam cá para fazer a revolução socialista e não para serem engraçadinhos nem telegénicos. Mesmo quando se torna impossível disfarçar que o resultado mais notável do socialismo venezuelano foi ter transformado num inferno, em que não se conseguem comprar nas lojas os bens essenciais mais básicos, se mata por meia dúzia de carcaças, e já nem sequer há os medicamentos mais simples nos hospitais, a vida dos milhões de venezuelanos, no entanto os habitantes do país com as maiores reservas de petróleo do mundo, ou seja, o socialismo matou a economia venezuelana, os comunistas continuam a apoiar o regime venezuelano, quer directamente, quer através das suas organizações satélite, dizem uns, fantoches, dizem outros, saídas do jurássico da guerra fria, como o Conselho Português para a Paz e Cooperação que organiza matinés musicais de solidariedade com a revolução bolivariana abrilhantadas pela Banda do Exército. Apoiam o regime venezuelano aconteça o que acontecer, como apoiam o angolano ou o coreano, não para conquistar adeptos mas porque esse apoio faz parte do caminho para a revolução que um dia ambicionam vir a abençoar-nos as vidas.
Já os bloquistas, mais sensíveis às questões de telegenia, e desde sempre, não nos devemos esquecer que o primeiro combate político do BE quando chegou pela primeira vez ao parlamento em 1999 foi contra o PCP por um lugar na primeira fila do hemiciclo, e apesar do amor que sempre lhes despertou a revolução bolivariana e de ela implementar o grosso da sua visão e ideias para a sociedade e a economia, a bloconomics, esmoreceram as suas manifestações de afecto quando a brutalidade do regime se tornou tão gritante que qualquer apoio, mais do que incómodo, passou a constituir para os apoiantes o lastro do apoio a uma ditadura, fama de que o BE se tenta livrar como pode, apesar de não lhe faltar vontade de as apoiar a todas.
Como é que descolou mediaticamente do regime? Com a retórica habitual, o regime deixou-se corromper pelo dinheiro do petróleo, deixou-se vencer pela chantagem imperialista, deixou os reaccionários levantar a cabeça, deixou, em resumo, de ser socialista, e depois não teve como resistir à contra-revolução sem o habitual recurso à violência. Deixou de ser uma democracia, como dizem agora as figuras mais proeminentes do BE, como a mais discreta das manas Mortágua, que baptizou, sem desconfiar, este texto, ou a própria Catarina Martins. O BE podia ter descoberto há muitos anos que o regime populista venezuelano exibia todos os sinais de vir a fazer batota eleitoral e a usar a força bruta quando fosse necessário por a propaganda se tornar insuficiente para se manter no poder, mas mais vale tarde que nunca e descobriu-o agora, quando já há mortos demais a comprová-lo. O que os bloquistas ainda não perceberam é que a miséria em que o regime bolivariano mergulhou o país não resultou de nenhum desvio ao socialismo, nem de boicotes do imperialismo ianque, nem sequer da queda dos preços do petróleo, resultou integralmente das receitas socialistas usadas para controlar a economia do país, da bloconomics, como resultou sempre em todas as experiências socialistas que foram realizadas, e resultará sempre em todas as que se vierem a realizar, para além de períodos limitados em que a economia é inundada de dinheiro em abundância, e até ele ser gasto. Como dizia uma saudosa governante britânica, "The problem with socialism is that you eventually run out of other people's money". Na Venezuela, acabou.
De qualquer modo, não é o encorajamento fraternal dos comunistas nem a descolagem dos bloquistas que fazem do regime bolivariano o que ele é, não é por causa das manifestações do CPPC nem dos textos críticos no esquerda.net que o regime armou dezenas de milhares de milicianos, incluindo snipers, para reprimir as manifestações da oposição, nem que decide se mantém os opositores em prisão domiciliária, ou na prisão, ou mesmo numa vala comum se chegar a sentir vantagem nesta solução, nem que recorre à mais reles batota jurídica e constitucional para contornar a pesadíssima derrota que teve nas eleições que, por distracção, organizou em 2015. Eles não contam para nada na Venezuela.
Mas há quem conte.
Muito do modelo social e económico bolivariano que resultou na desgraça que resultou brotou, não apenas daquelas cabecinhas ocas bolivarianas de onde só podia sair desgraça, mas de crânios lúcidos e informados de académicos europeus. O Centro de Estudios Políticos y Sociales (CEPS), embrião de onde sairam quase todos os dirigentes do Podemos, tem um longo histórico de assessorias ao regime bolivariano nos domínios de "promover los conceptos de emancipación popular, conciencia anticapitalista y controlaría social", ou seja, organização e propaganda, desde 2003, ao longo do qual acumulou proveitos de mais de 7 milhões de euros, parece que nem todos declarados ao fisco espanhol, com o propósito, não apenas de assessorar a revolução, mas também de financiar a criação do partido. Como veio a acontecer. E um dos assessores económicos mais influentes, e também mais radicais, do presidente Nicolás Maduro é outro académico espanhol, também oriundo do CEPS onde foi coordenador, o economista Alfredo Serrano. O regime bolivariano não é apenas uma experiência socialista que apela e interessa a académicos de esquerda radical, agora está na moda designarem-se a si próprios como social-democratas, da área das ciências sociais de universidades europeias, é também a obra deles, das suas ideologias, o laboratório onde conduzem as suas experiências científicas com soluções socialistas. Sem nunca tirarem conclusões da experiência, sem nunca eliminarem as hipóteses que as experiências vão todas demonstrando que conduzem à desgraça, diga-se de passagem. Estes contam para a Venezuela.
Por tudo isto, é retemperador o apoio público que o nosso incontornável Boaventura Sousa Santos, o criador de outro centro de estudos políticos e sociais, o Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, aliás um dos mais bem dotados antros de bloconomicists de Portugal, acabou de dar ao regime bolivariano nestes tempos de miséria, batota política e banho de sangue. Significa que não há fronteiras geográficas nem linguísticas que separem esta corja de académicos sem vergonha que promovem, apoiam e defendem ditaduras socialistas. Mereciam ser premiados com viagens só de ida para fazerem a revolução socialista nas ruas de Caracas e, se levassem um balázio de um assaltante ou de um sniper, poder-se-ia escrever nas suas lápides que morreram em nome dos ideais de sociedade pelos quais lutaram. Assim, apenas se pode dizer que contribuem para a desgraça de outros mas vivem agarrados à mama gorda do capitalismo.
O Marcelo fala, fala, e continua a agradar a todos com excepção da direita, que gostava que ele derrubasse o governo já, antes de passarmos o ponto de não-retorno para a tragédia, e da esquerda, que gostava que ele derrubasse o governo já, antes de a tragédia passar dos números para o dia-a-dia das pessoas e as sondagens passarem o ponto de não-retorno para a derrota eleitoral expressiva.
A frase de hoje é "Ja, aber das Programm, das er umsetzt, ist nicht so weit entfernt von dem, das die vorherige konservative Regierung gemacht hat".
O que é que isto significa?
Não sei. Mas, a acreditar nas traduções que os jornais portugueses apresentaram, quererá dizer algo como "o programa que implementam não está assim tão longe do que o governo conservador fez".
O que é que isto significa?
Significa que o Marcelo regressou à sua máxima forma na capacidade de dizer coisas ambíguas que todos podem interpretar do modo que preferirem, quer sejam de direita, ou de esquerda, quer queiram uma palavra de conforto, quer se queiram sentir agredidos.
Significa que a margem de manobra dos governos, que alguns pensam ser limitada por restrições de Bruxelas, e alguns desses chegam mesmo a pensar que é limitada em função da orientação ideológica dos governos nacionais, mas é de facto limitada pelas possibilidades financeiras, e tanto mais quanto mais os governos resistem à pressão do bom senso para terem contas equilibradas e aliviarem a dependência da dívida, é tão limitada que os governos, mesmo com preferências, intenções e retóricas radicalmente diferentes, acabam por optar por soluções semelhantes? É muito provável.
Significa dizer aos 38,5% de eleitores da PàF que não estão a ser tão mal governados como pensam, o que seria um elogio ao Costa que os irrita, mas apenas na mesma medida em que também seria um elogio ao governo anterior, de que o actual não se desvia fundamentalmente na governação? É provável. Mas não é certo.
Ou significa dizer aos 61,5% de eleitores que não votaram na PàF que, afinal, o virar da página para o novo tempo que lhes acenaram foi uma treta e o governo não virou página nenhuma, antes continua a governar limitado pelo domínio das mesmas possibilidades que limitavam a governação do governo anterior e que o actual sugeriu que podia ser expandido? Também é provável. Mas também não é certo.
Tudo junto, e aplicando um bocadinho de estatística para procurar descodificar a ambiguidade, podemos dizer que é provável que o Marcelo esteja a elogiar o governo a 38,5% dos eleitores, o que os irrita, mas a elogiar o governo anterior na mesma medida aos mesmos eleitores. E que está a expor a charlatanice do virar da página do governo actual aos restantes 61,5% dos eleitores.
Mas fundamentalmente, está a dizer aos alemães que não está a conspirar contra o governo, coisa que seria imprudente e tonto dizer-lhes, mesmo que fosse, ou que seja, verdade. E, com uma ambiguidade tão esmerada, eu não consigo perceber se é verdade ou não.
É sempre esclarecedor ver os socialistas da nova geração explicarem que as liberdades, aqui a de escolha, por aí a de imprensa (ou aí, ou aí, ou aí, ou aí, ou aí, ou aí) ou a de manifestação (mas não aqui, e muito menos aqui), alguns vão ensaiando a de opinião, e na cabeça deles só Deus sabe quantas mais, são falácias incompatíveis com a ideia de sociedade que eles têm para nós.
Mas não é nenhuma novidade. Desde o tempo das amplas liberdades que já se sabia que as outras liberdades são incompatíveis com a ideia de sociedade que eles trazem na cabeça.
Novidade é serem socialistas do Partido Socialista a virem para a rua fazer a denúncia das liberdades burguesas que, antes, ficava por conta dos comunistas e da esquerda radical, barbuda ou engraçadinha, que agora se auto-intitula social-democrata.
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