Quinta-feira, 5 de Abril de 2018

Funcionários da cultura

Ontem uma actriz queixava-se amargamente na SicN de que os actores também precisam de comer, pagar a renda da casa, fazer compras e educar os netos (tinha idade para os ter, e não lhe foi perguntado se essa seria uma obrigação típica dos avós). A senhora falava com o coração nas mãos e inquiria, dramática: se toda a gente tinha um ordenado, se até os empregados dos bancos os tinham, não obstante nós todos passarmos a vida a lá pôr dinheiro, por que razão é que os actores haviam de ficar numa situação desesperada?

 

Sobre os bancos não vou responder à senhora com detalhe, salvo para dizer que o preço de não os apoiar é ainda maior do que apoiá-los.

 

Mas mesmo que haja, e há, boas razões para supor que a gestão desastrada dos bancos não foi, e continua a não ser, adequadamente penalizada; que uma parte (menor) da destruição do seu valor resultou não apenas do rebentar de uma bolha especulativa mas também de negócios de contornos ilícitos ou inacreditavelmente ineptos, que não são denunciados por envolverem um número demasiado grande de indivíduos que pertencem ao grupo da dança das cadeiras dos gestores públicos, académicos da economia e finanças, e políticos e advogados do Centrão: não se segue que todo o cão e gato tenha o direito de viver à custa do Estado sob pretexto de que custa, comparativamente, pouco.

 

E foi isso que a senhora disse: eu tenho o direito que o Estado me sustente já que sustenta outros com muito menos merecimento.

 

Menos merecimento porquê? Porque a senhora, e a caterva dos seus colegas, são agentes da cultura, que é por definição algo de superior. E, como diz este senhor, numa afirmação lapidar que Marcelo, e todos os outros papagueadores de banalidades, decerto subscreve, “não colhe o argumento da subsidiodependência pois só um Estado inculto não investe em cultura”.

 

Se corrermos os jornais por estes dias tropeçamos com um ror de queixas e reclamações, por exemplo aqui e aqui. E indo o clamor em crescendo, e sendo o governo do dia o que é, esta berrata já está a dar resultado, pelo que se alargarão os cordões à bolsa do contribuinte até ao ponto em que, se houver uma companhia de teatro que queira levar à cena Ionesco em Freamunde, para ilustração dos operários da indústria de mobiliário, o Estado investe e os beneméritos actores forrarão as barrigas famélicas com um bom jantarinho de capão, que por aqueles lados se assa de forma superlativa.

 

É claro que o Estado não se deve demitir da cultura. Mas esta, sendo muitas coisas, não é certamente a prodigiosa colecção de piolhosos que gritam em nome dela, e em nome dela se espolinham num palco em peças que ninguém entende e, por ninguém entender, ninguém quer ver; ou a compor peças musicais exotéricas para disfarçar a incapacidade de interpretar os clássicos; ou a preservar teatrinhos de marionetes e promover exposições de lixo sob a designação genérica de arte contemporânea, das quais a melhor parte seria o catálogo, se por milagre estivesse redigido em bom português.

 

Isto poderia ser talvez assim se o país pudesse alocar a estas festividades mais do que os 0,4% do PIB que lhes dedica; e poderia ser sobretudo se não houvesse monumentos em ruínas, bibliotecas onde chove, escolas essenciais, como o Conservatório, num caco, ou investigação séria que não tem patrocínio; mas houvesse educação que formasse para criar uma massa crítica de cidadãos  que garantisse os mínimos de mercado para a existência de formas superiores de cultura, em vez de analfabetos, ignorantes contumazes, duros de ouvido, vesgos e socialistas sortidos, com perdão da amálgama.

 

Desta vez, à boleia do clima económico de euforia, em boa parte artificial, que a propaganda tem criado, não vai fechar nenhuma das prestigiadas associações que a população dispensa, muito menos as companhias de bandeira a que Santana Lopes, numa engenhosa comparação, se referia há dias na televisão, e que não foram contempladas com subsídios; nem aquela malta do Norte, capitaneada pelo presidente da câmara do Porto, deixará de ser servida; assim como Évora, uma cidade comunista, deixará de ver revisto o descaso a que foi votado o teatro local – Jerónimo de Sousa, com ar soturno, já rosnou umas coisas ameaçadoras sobre a distribuição do bolo.

 

A grande ambição de toda esta gente é regressar aos níveis de 2009. Ignoro o que se terá passado naquele ano que permita afirmar que a cultura se distinguiu, pelo seu brilho, da sucata que estava antes e do esterco que veio depois.

 

Mas eu, se tivesse a ambição de viver à custa do contribuinte para o efeito de o ilustrar com a minha superioridade mal agradecida, escolhia talvez outra época para comparação: uma em que não estivéssemos às portas da bancarrota.

publicado por José Meireles Graça às 16:39
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Sexta-feira, 30 de Março de 2018

Meter o nariz onde não se é chamado ou, o dinheiro não é do Estado, é deles.

A genética dotou-nos de uma tendência irresistível para metermos o nariz onde não somos chamados.

Desde tempos imemoriais que opinamos, à saída da igreja ou à mesa do café, sobre as mini-saias da paroquiana recém-separada, seja por maus motivos, a galdéria ao mostrar-se assim quer desencaminhar os maridos das outras, ou por bons, até que as pernas dela não são nada feias e a mini-saia fica-lhe bem, e todos sentimos a legitimidade e mesmo o dever de manifestar uma opinião, de tomar uma posição sobre o comprimento das saias que ela usa, de prescrever o que devia usar.

Com as redes sociais o alcance da nossa intervenção cívica tornou-se planetário, e passámos a discutir a cama, além da mesa, de presidentes e reis e a ditar-lhes as regras de conduta que lhes exigimos, na cama como à mesa.

Vem isto a propósito da comoção nacional que está a causar o caso do GPS, um grupo económico formado por um antigo deputado socialista para construir uma rede de colégios privados que conseguiu celebrar com o Ministério da Educação durante o mandato de um governo social-democrata e centrista vários contratos de associação para disponibilizar turmas à rede pública e, descobriu-se há anos em investigação jornalística e agora chegou finalmente à justiça, usou o dinheiro do Estado para proporcionar aos seus gestores hábitos de consumo somptuoso como carros de luxo, cruzeiros, passagens de ano, refeições e estadias em hotéis, bilhetes para o Mundial de Futebol, telemóveis, vinhos, cortinados e utensílios e mobiliário para casa, e até uma refeição para três pessoas onde foram consumidas trinta e seis garrafas de vinho. Para resumir sem entrar em detalhes.

2018-03-30 Audi Mercebes BMW Porsche.jpg

Um cabaz deste calibre de apetecíveis regalias proporcionadas pelo dinheiro do Estado, o nosso dinheiro, não poderia escapar à reprovação dos paroquianos à saída da missa, e depois à análise crítica à mesa do café.

Só que as comoções colectivas raramente acertam no alvo.

O dinheiro do Estado pago aos colégios com contratos de associação não é um subsídio, que obriga o subsidiado a cumprir uma série de requisitos legais para ser elegível para o receber. É o pagamento de um serviço, sendo o serviço a disponibilização por um preço fixado por lei de um determinado número de turmas de alunos da rede pública que as frequentam gratuitamente como se fossem escolas da rede pública.

Onde é que nós, enquanto cidadãos, temos uma palavra a dizer sobre este caso?

Temos uma palavra a dizer sobre a legalidade da celebração dos contratos. Temas como se os colégios do grupo reuniam os requisitos legais definidos para celebrar os contratos, ou se foram beneficiados na celebração por alguma discriminação por terem sido preferidos a outros colégios que nas mesmas condições tenham sido preteridos. Questões que certamente a justiça esclarecerá, mas que não têm a ver com a opulência que nos escandaliza.

Temos uma palavra a dizer sobre o cumprimento dos contratos. Temas como se as turmas contratadas abriram e funcionaram mesmo, se a qualidade do ensino prestado foi a exigida contratualmente, se os serviços pagos foram integralmente prestados. Questões que certamente a justiça esclarecerá, mas que não têm a ver com a opulência que nos escandaliza.

Mas não temos nenhuma palavra a dizer sobre o modo opulento como, uma vez prestado o serviço e recebido o pagamento, os gestores do grupo o gastam. O meu oftalmologista tem um Porsche 911 Turbo 4 de matrícula recente. E a senhora que durante mais de trinta anos fez a limpeza da escada aqui no prédio vinha de Audi A3 1.9 Tdi, e a que a veio substituir vem de Smart For Two. E o que é que eu tenho a ver com isso? Não tenho nada! Prestam-me os serviços que lhes encomendo nos termos que acordámos e ao preço que acordámos, eu pago-lhes, e a partir do momento em que lhes pago o dinheiro deixou de ser meu e passou a ser deles e têm toda a legitimidade para o gastarem como entendem. Qualquer interesse adicional meu pelo modo como eles o gastam é calhandrice.

Se os gestores du grupo GPS se apropriaram para benefício pessoal ou de familiares ou amigos de património das empresas que gerem, e neste caso apropriaram-se para além de qualquer dúvida razoável, cometeram actos de gestão danosa que prejudicaram, não a nós que estamos sentados à mesa do café a escandalizarmo-nos com a chico-espertice deles, mas às empresas do grupo e aos seus accionistas, que parecem não ter grandes queixas dos gestores até por serem os mesmos. Os prejuízos que causaram a essas empresas e aos seus accionistas serão certamente esclarecidos pela justiça, mas não são eles que nos indignam.

Se  beneficiaram de regalias atribuídas pelas empresas sem o benefício ter sido tributado nos termos da lei, e neste caso beneficiaram para além de qualquer dúvida razoável, é assunto para ocupar o fisco, mas a que eu pessoalmente não me sinto em condições de superioridade moral para atirar a primeira pedra por, durante muitos anos, além de ter beneficiado da atribuição de carros da empresa para uso pessoal, os ter adquirido no fim do período de atribuição a preços substancialmente inferiores aos preços que eles valiam sem este benefício me ter sido tributado até ao século XXI. Os prejuízos que causaram ao fisco, e portanto a nós, que o fisco não é gente nem tem prejuízos, ao beneficiarem de rendimentos em espécie sem os declarar serão certamente esclarecidos pela justiça, mas também não são eles que nos indignam.

O que nos indigna é a má utilização que fizeram de dinheiro do Estado.

Ora o dinheiro que gastaram não era do Estado, a menos que as duas primeiras questões que levantei sobre a legalidade e o cumprimentos dos contratos tenham respostas negativas, o que não há informação pública que indicie, quanto mais sustente, pelo que a expressão da nossa indignação nos pode aliviar do sentimento de indignação mas não tem justificação. Aquilo com que nos indignamos não é da nossa conta.

 

Resta que temos uma palavra a dizer sobre a ética e o bom senso dos governantes que aceitam lugares em entidades que tutelaram, nomeadamente relativamente às quais participaram na tomada de decisões. A mera aceitação faz deles presumíveis culpados a quem passa a caber o ónus da prova de que as decisões que tomaram foram legais e que a oferta de trabalho posterior resultou numa prestação de trabalho efectivo pago a preços razoáveis no mercado de trabalho e não foi uma recompensa pelas decisões que tinham tomado. Pelo que se têm ética não têm bom senso, e se tem bom senso não têm ética.

Resta outra, que este caso vai ser usado pelos detractores do Estado Social, que coloca à disposição dos cidadãos serviços essenciais independentemente da capacidade económica deles, os que o confundem com Estado Socialista, que produz obrigatoriamente os serviços que coloca à disposição dos cidadãos, independentemente de os produzir com mais eficiência e menos fardo para a economia e os contribuintes, ou com menos eficiência e com custos mais elevados para os contribuintes e menos sustentabilidade económica a prazo do que se fossem prestados por prestadores privados, que o vão usar como uma ilustração pretensamente significativa das burlas dos privados com o dinheiro do Estado que sustenta que o Estado não deve recorrer a prestadores de serviços de privados. Nem é significativa, nem é dinheiro do Estado, nem recomenda, mas é disto que o populismo vigente se vai alimentar nos próximos tempos. E se formos atrás dele somos nós que nos vamos acabar por lixar e, como sempre, só nos aperceberemos disso quando for tarde para o evitar.

Quando a cabeça não tem juízo a perna é que as vai pagar.

publicado por Manuel Vilarinho Pires às 19:45
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