Quando fiz um MBA na Universidade Nova de Lisboa no milénio passado o professor José Neves Adelino disse numa aula de Finanças uma frase de que nunca me esqueci, ao longo da vida vamos guardando frases de que nunca nos esquecemos e para mim esta foi uma delas, "quando os gestores não se conseguem justificar um investimento que querem fazer aprovar através de números defendem-no dizendo que é estratégico".
Em decisões de investimento "estratégico" é a palavra mágica que cala qualquer oposição ou sequer dúvida. Tal como, incapazes de recorrer a uma verborreia cheia de palavras como "orgânico", "telúrico" ou "estruturante", temos vergonha de mostrar que não percebemos uma instalação de arte moderna, ou arquitectura já que estou com a mão na massa, dizendo que não vemos ali arte, mas merda, também temos vergonha de não estar à altura de entender o pensamento estratégico que sustenta uma decisão de investimento pelo que, para evitar passarmos por parolos, nos calamos prudentemente. O que é estratégico é para aprovar.
Vem isto a propósito das declarações recentes do professor, chamemos-lhe assim, Fernando Teixeira dos Santos, explicando o episódio Berardo como uma consequência natural da estratégia dos "centros de decisão nacional" que orientou muito do pensamento de política económica português nas últimas décadas, e intensamente o dos governos Sócrates de que ele foi membro.
O professor Fernando Teixeira dos Santos será avaliado pela história a partir de muitos pontos de vista contraditórios e não sei, nem me interessa por aí além, qual deles prevalecerá. O financeiro que sustentou até ao fim os governos corruptos de José Sócrates, ou o herói que desencadeou no último minuto o pedido de assistência financeira à revelia e contra a vontade e a ira do comandante? A minha impressão pessoal, que vale o que vale, é que ele não deverá ter sido menos honesto que o antecessor mas, ao contrário deste que se levantou sem tocar no prato logo que se apercebeu da qualidade das matérias-primas usadas na cozinha, teve estômago para ficar na mesa até ao fim e sofreu as consequências de sucessivas gastroenterites até se tornar insuportável aguentá-las e chamar o 112. De qualquer modo tem, como testemunha desses tempos, a qualidade inegável do conhecimento directo de os ter vivido por dentro do núcleo mais duro que os conduziu.
Eu já me tinha aqui dedicado a apelar a que se olhasse para o caso Berardo com distância suficiente para perceber o quadro mais completo em vez de se ficar preso no detalhe que alimenta o populismo fácil dos "quando se deve mil tem-se um problema, quando se deve um milhão o banco tem um problema", "os ricos safam-se sempre", "rouba e ainda goza com o pagode", contextualizando o papel que ele desempenhou no projecto montado pelo governo Sócrates de assumir o controlo da gestão do BCP sem o nacionalizar.
Teixeira dos Santos abre ainda um bocado mais o zoom e explica, e bem, que a conquista do controlo da gestão do BCP pelo PS não deve também ser apenas vista como um mero golpe de um grupo de fora-da-lei aparentemente dentro da lei para dominar uma instituição financeira com capacidade para desviar dinheiro para projectos de investimento "amigos", ou "de amigos", mas como uma peça de um projecto mais largo que estava no núcleo da política económica do governo Sócrates, o da defesa dos centros de decisão nacional nos sectores estratégicos da economia.
Vale a pena registar algumas frases carregadas de objectividade que contextualizam os Berardo, como "Não nos podemos esquecer do que há 20 anos se tornou quase um paradigma, pelo menos entre as elites bem pensantes económicas, que achavam que precisávamos de ter centros de decisão nacional ... Foi esta ideia de os bancos arranjarem empresários portugueses que personificassem estes tais centros de decisão nacional e de os financiarem para que pudessem existir que está na raiz do que se tem assistido com a CGD". Ou até um olhar lúcido sobre a profundidade da crise como "Tivemos um capitalismo próprio sem capital próprio ... Com a crise todo esse status quo foi abalado".
Da política económica do governo Sócrates e, de facto, da filosofia económica do Socialismo, quer na forma clássica e fundamentalista do Comunismo Soviético, quer na forma mais moderna e manhosa do Socialismo Democrático. Que bebem a inspiração do princípio comum e o interpretam por caminhos diferentes.
Na primeira o controlo dos sectores estratégicos só pode ser garantido pelo Estado, sendo que o partido assegura, por seu lado, o controlo do Estado, o que significa que o controlo dos sectores estratégicos é exercido pelo partido, e como não há nenhuma alternância política este controlo é estável.
Na segunda pode ser aceitável a existência de sectores estratégicos no sector privado, ainda que volta e meia socialistas menos sofisticados se distraiam e exijam a sua nacionalização, e o seu controlo deve ser garantido através da colocação de socialistas na gestão desses sectores, o que lhes garante alguma estabilidade de manutenção dos sectores em boas mãos mesmo quando o ciclo político lhes é adverso e o governo cai em más mãos. E de algum modo comprova a estupidez dos que berram pela nacionalização mesmo depois de ouvirem o hino da CGTP horas a fio para acalmarem a sua ira revolucionária perante um mundo que nem sempre a segue: os Constâncio vão-se com as mudanças de ciclo político mas os Mexia perduram.
Para atalhar conclusões, não nos fiquemos por atribuir o caso Berardo, que é trágico, não por ele se rir, mas por nos sair do bolso a todos, à chico-espertice do próprio, apesar de ela ser real, não nos fiquemos também por atribuí-lo à chico-espertice de um partido corrupto e de um governo corrupto que o utilizaram para concretizar um plano corrupto, apesar de também ela ser real, mas percebamos que a ocasião que faz o ladrão é a intervenção do Estado na economia, e essa está na raiz de todo o pensamento económico socialista, qualquer que seja a versão do socialismo em execução.
Não querem Berardos? Retirem o Estado da economia.
O pirómano amador ateia um incêndio, com a ajuda solícita de um bombeiro, por este ser especialista na área de ignições.
O incêndio ganhou proporções inesperadas, e os dois ficaram em risco de ser consumidos pelas chamas. O pirómano não se assustou por aí além: estava convencido que mantinha o fogo debaixo de controlo com o sopro dos seus discursos. Mas o bombeiro apanhou um cagaço mortal; e chamou os colegas.
Foi, por este acto de coragem, condecorado no 10 de Junho.
Costa achou bem. Outros idiotas também.
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