Não pareço um terrorista islâmico, não me ocorreria apresentar-me num órgão de soberania trajado de camiseta da feira de Espinho, não acho que o confisco da riqueza do senhor Bill Gates ou Alexandre Soares dos Santos tivesse qualquer benefício para os americanos ou os portugueses, não desejo impedir, seja por que forma for, que qualquer democrata, ou comunista ou fascista (mesmo que seja um genuíno, não apenas as pessoas meramente de direita que são assim designadas) emita livremente a sua opinião, não acho que as pessoas pobres tenham um par de asas nas costas e as ricas cornos e rabo, não tenho inclinação para ser generoso com o que não me pertence, não sou fiel de uma seita com livros sagrados, santinhos e crenças lunáticas, não tenho uma concepção determinista do processo histórico nem uma visão conspiratória do mundo e não defendo doutrinas responsáveis invariavelmente por miséria e opressão no presente e por quantidades recorde de mortos no passado.
Ou seja, não sou comunista. E como também não sou ingénuo não acho que os comunistas sejam adversários - são inimigos. Inimigos porque enquanto defendo para eles a mesma liberdade de que gozo, e os mesmos benefícios de que usufruo, ou maiores, se a eles tiverem tido acesso sem crimes, a um pobre diabo como eu seria negado, no mínimo, o exercício da profissão e da opinião na sociedade deles. Isto não exclui que, pessoalmente, possa ser amigo de comunistas (já fui amigo de um que, incidentalmente, se veio a revelar um patife) mas sem ilusões: o bem maior, para eles, é a sociedade comunista, e em nome dela não hesitam, se for necessário, em sacrificar qualquer noção de decência burguesa, incluindo a amizade e seus deveres.
Portanto, não tenho nada de comum com Miguel Tiago. É por isso com grata surpresa que concordo com ele. Não no sentido de Teodora Cardoso ter dito algo que não subscreva - pelo contrário, a senhora está coberta de razão - mas por me parecer que o Conselho de Finanças Públicas não deve, enquanto organismo na esfera do Estado, existir.
Não deveria existir, tal como o Conselho Permanente de Concertação Social ou a generalidade dos organismos de supervisão ou consulta, quando sejam suportados pelo Orçamento de Estado.
Portugal não tem economia para tanto Conselho, Comissão, Observatório e a miríade de organismos que vivem sentados à mesa do Orçamento. E a circunstância de Teodora Cardoso ser uma senhora sensata e competente, com idade para ser independente (a independência é mais fácil, em Portugal, para quem não se importar de não ter lugar futuro se no exercício do seu mandato ofender os poderes do dia), não nos deve fazer esquecer que hoje temos uma Teodora mas, amanhã, teremos um desses economistas yes-man, que são a variedade corrente, ou, pior, um maquiavel de trazer por casa, se na nomeação Marcelo tiver a sua néscia palavra a dizer.
Vem pois aos meus braços, Tiago, se juntamente com a aposentação da senhora quiseres a extinção do organismo (mas, já agora, toma banho e põe uma camisa lavada, que os fachos, às vezes, são uma gente muito dada a manias).
A velha ideia, que nos embalou na infância, de que quem tem dinheiro a mais (ou quem não tem a mais, mas faz sacrifícios para um dia de chuva) põe o seu pecúlio no banco, que por isso lhe dá um pequenino prémio, se o tiver à ordem, ou um maiorzinho, se o tiver a prazo, e que esses pecúlios, postos em conjunto, servem para emprestar a quem não tem dinheiro mas tem uma ideia para um negócio - é uma ideia defunta. Hoje somos todos cínicos, outra maneira de dizer mais sábios, e não ignoramos que o banco emite moeda, sob a forma de crédito, e que esse crédito regressa, sob a forma de depósitos, ao sistema bancário (pode ser de outro país, mas se a gente começa a complicar os raciocínios leva um tal nó cego mental que já se esquece aonde queria chegar), que novamente empresta, numa roda sem fim...
O empreendedor teso, claro, espera um retorno - primeiro para o banco, que lhe emprestou a uma taxa superior àquela que paga a quem lhe fornece os fundos, depois para os trabalhadores e os fornecedores, depois para o Estado, um sócio intratável e sôfrego que calcula a sua parte por processos ínvios, depois para reservas e, se sobrar alguma coisa, para si próprio.
O sistema não está mal engendrado e, desde pelo menos os Médicis, e descontadas as crises periódicas, tem funcionado bem. Claro que repousa na confiança - de que o banco só empresta a quem, em princípio, vai pagar o que deve, de que os incumprimentos se mantêm dentro de limites acomodáveis, de que há uma proporção razoável entre o nível dos depósitos e o do crédito concedido, de que os gestores não são kamikazes que se deixam encandear pelas suas comissões e de que o Estado não vai gerir a coisa pública de modo a criar crises amanhã com investimentos públicos sem retorno e consumo sem produção - hoje.
Diga o que disser a malta contra o sistema de reservas fraccionárias, sem elas haveria menos investimento e logo menos progresso, ainda que se evitassem crises. Mas a questão, por interessante que seja para doutrinários, não está na ordem do dia: o que está na ordem do dia é que os bancos não ganham dinheiro porque o mal-parado está ao nível da exosfera e o Estado falido porque, não tendo cessado nunca de cobrar mais, deu o que não tinha e investiu em fantasias e paixões.
Tenho ideias definidas sobre os culpados pela situação em que estamos e as escolhas públicas que a permitiram. Mas não importa: a História acertará, como sempre, as contas.
Entretanto, a Banca deveria lamber as feridas enquanto compra tempo e o Estado, uma cabeça disforme para um corpo mirrado, deveria tratar da macrocefalia.
Mas não: uns acham bem dedicar-se à pilhagem à borda da estrada, a pobres diabos sem escolta, enquanto a Polícia acha "inadequado" o assalto; e outros entendem que a cura da doença consiste em injecções de líquido cefalo-raquidiano, extraído do crânio dos assaltados.
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