A prosa é, como a espada de Carlos Magno, chata e longa. E lá no meio tem este período delicioso: "A paisagem política europeia não é animadora, quando quase todos os partidos europeus em quase todos os Estados-membros estão em forte perda, em benefício dos extremos, porque não conseguem explicar aos seus eleitores que a sua melhor hipótese para enfrentar estes tempos de mudança e de medo ainda pode ser a União Europeia".
Temos então que os partidos em perda não conseguem "explicar". Ah, que se tivessem mais eloquência, falassem mais alto, eu sei lá, se Teresa de Sousa lhes desse alguma formação, num curso patrocinado por fundos da UE, ainda podíamos ter esperança. Assim não: os eleitores são burros, não sabem o que lhes convém, e vão lentamente desbaratando a obra gloriosa que, com desprendimento e generosidade, gerações de vultos como Delors ou Mitterrand, Barroso ou Soares, penosamente levantaram.
Claro que numa Europa onde a economia, ao contrário do resto do mundo, não cresce, mas cresce a burocracia e as directivas que interferem com a vida das pessoas, originadas em órgãos que ninguém elegeu, dirigidos por pessoas que ninguém conhece; onde os países são todos iguais, excepto os grandes em relação aos pequenos, os ricos em relação aos pobres e os populosos em relação aos de menos densidade; onde a natural diversidade de inclinações e ciclos políticos faz com que o sentido que o centro do Império quer imprimir às coisas colida sempre com os interesses, permanentes ou circunstanciais, de alguns países; e onde, finalmente, fenómenos novos como a imigração massiva de gente que não quer aculturar-se não são encarados da forma como os vizinhos querem, mas são-no da forma que os dirigentes acham que os vizinhos deveriam querer:
Tudo inculca a ideia de que serão talvez os eleitorados que querem explicar alguma coisa aos políticos. E estes fariam bem, não em frequentar as aulas da dra. Teresa, nem em tirar cursos de oratória e dicção - mas ouvir.
Veio de Paris (na realidade o artigo apenas diz que era uma equipa da France Culture, mas deduzo que se é coisa de Cultura e de la France deve ser de Paris, tal como em Portugal estas coisas costumam ser de Lisboa) uma jornalista "jovem e competente" que entrevistou, entre outras pessoas, Teresa de Sousa, a propósito dos 40 anos do 25 de Abril.
Teresa de Sousa é uma conhecida colunista cujos escritos não costumo ler para além do primeiro parágrafo, pela mesmíssima razão que, se fosse gourmet, não leria a coluna de um especialista que todas as semanas falasse do mesmo prato - no caso de Teresa é a Europa, que nos é servida nas mil formas pelas quais se deve apresentar para que a possamos engolir com geral satisfação.
A jornalistazinha trazia, parece, uma ideia, que outros entrevistados teriam confirmado, de que "estávamos hoje pior do que no 25 de Abril, por causa da crise" - deve ter andado a falar com gente do PCP, ou a beber gins com gente do BE.
Teresa inteirou a moça da vulgata que toda a gente de representação reserva para estes entreactos, a saber que não senhor, estamos muito melhor, credo!, então e os índices de desenvolvimento, e o saneamento, e a taxa de mortalidade infantil, e a escolaridade e, sobretudo, o Serviço Nacional de Saúde...
E concluiu, triunfante: "A crise está a empobrecer-nos de uma maneira que nunca pensaríamos possível. O Governo não respeita nada nem ninguém, quando se trata de arrecadar. A classe média está a pagar a crise praticamente sozinha e a “compressão” dos seus rendimentos é brutal. Tudo isto é verdade, mas todas as crianças vão para a escola com sapatos".
Que a classe média está a pagar a crise não duvido; dos sapatos só tenho algumas dúvidas por imaginar que serão antes sapatilhas; e quanto às alternativas ao que este Governo está a fazer teria algumas coisas a dizer, que todavia receio fossem muito diferentes das europeíces e piedades de Teresa - mas não é o meu assunto agora.
Por trás destas considerações está, fatal, o seguinte raciocínio: a democracia trouxe-nos estas coisas boas; muitas não tínhamos, ou tínhamos em menor grau, nos longínquos tempos da ditadura; e logo é à democracia que devemos estes progressos.
Peço licença para achar que este discurso é uma falácia: comparar materialmente o agora com o dantes para daí deduzir superioridades e inferioridades de regimes não tem qualquer sentido porque todos os países progrediram imenso nestes quarenta anos, quer sob democracias quer sob ditaduras, e o nosso também não ficaria parado ainda que a Ditadura perdurasse; e sendo indiscutível que há mais democracias do que então havia, não é certo que a maior fatia do progresso material tenha vindo delas - a Ásia, o continente que mais cresceu, não é o que mais se recomenda pelas suas credencias democráticas. Aliás, a democrática Europa, pai e mãe do que melhor e pior a humanidade já produziu em termos de ideias políticas, está, relativa e inexoravelmente, a atrasar-se em relação ao resto do Mundo. Fosse eu apreciador de ideias simplistas, e cultivasse confusões entre correlações e causas, e diria que era por motivo da Democracia - mas não digo, nem penso.
O que eu penso é que para ser democrata não é preciso este massacre memorialista sobre os meninos do pé-descalço: Não houve até agora um só dia em que o nosso País progredisse mais do que o fez em qualquer dos dias da década de sessenta, apesar da chuva dos milhões com que desde 1986 nos aspergiram; nem as contas estão feitas sobre quanto nos vai custar em retrocesso e abrandamento aquela parte do progresso que foi feita a crédito; nem as pessoas que, como Teresa de Sousa e eu, têm mais de cinquenta anos, deveriam ter necessidade de esquecer, ou falsificar, os números do passado, para encher a boca com os imaginários triunfos do presente.
Teresa diz o que quer; eu também. E isso, que não conta para o PIB, é o que merecia ser comemorado no 40º aniversário. O resto não.
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