Sexta-feira, 28 de Junho de 2019

Já não há Minhotas

Eu nasci e vivi toda a vida em Lisboa, não há ninguém mais lisboeta do que eu, mas sou minhoto dos dois costados, do Alto Minho, das vilas banhadas pelo Rio Minho de Melgaço e Monção, passei todas as férias grandes até ao fim da adolescência em Melgaço, e sou do tempo em que os minhotos sovavam militantes e incendiavam sedes dos partidos políticos que desconfiavam, com razão ou sem ela, na medida certa ou com algum exagero, que lhes ameaçavam o património.

E aprendi desde novo as histórias das heroínas do Alto Minho que se distinguiram, invariavelmente, na liderança da resistência das populações das vilas fortificadas aos sitiantes castelhanos. A Inês Negra de Melgaço que, depois de um cerco tão longo que tanto sitiados como sitiantes estavam exaustos, propôs resolver o cerco andando à pancada com uma das mulheres sitiantes, e depois de a sovar eles levantaram o cerco e retiraram, e a maior de todas, a Deuladeu Martins de Monção que, perante a iminência de acabar a farinha, andou pela vila a recolher toda a que havia, cozeu pão e foi para o alto das muralhas atirá-lo aos castelhanos e anunciar que de onde aquele vinha havia muito mais, o que, também exaustos como estavam, os convenceu a levantar o cerco e a ir embora.

Isto eram as Minhotas que cresci a evocar e admirar, e a ter a prudência de não me meter com elas.

Hoje as minhotas elegem governantes e autarcas do Partido Socialista.

Quando um certo governante socialista megalómano e nem sempre demasiado honesto decidiu deixar para a posteridade a sua marca passando um rolo compressor no país que estava e eregindo no seu lugar um país moderno, líder na nova economia, nas competências tecnológicas e nas energias verdes, as minhotas foram-lhe na cantiga e, dos vinte e quatro deputados eleitos pelos distritos do Minho, ofereceram-lhe doze.

Do país moderno fazia parte também, e desde que ele, chegado da província e habilitado e experimentado nas artes do projecto de habitações, tinha conseguido socializar com as elites culturais da capital, uma exigência arquitectónica que o país que estava não estava à altura de satisfazer. E nomeadamente o prédio Coutinho de Viana do Castelo. E tratou de lançar um projecto ambicioso para alindar as cidades portuguesas, talvez por motivos de exigência estética, talvez para estimular a actividade económica no sector da construção e nos sectores associados como os dos projectos de arquitectura e engenharia, o programa Polis. Através da criação de uma rede de empresas como, para alindar a cidade de Viana do Castelo, a VianaPolis (assim tudo pegado).

A VianaPolis decidiu que o maior problema que era necessário resolver para alindar a cidade era o prédio Coutinho.

Eu nunca reparei por aí além no prédio Coutinho, se bem que ele seja visível à distância, e nunca estive próximo nem dentro dele, não tenho uma ideia precisa da qualidade de construção. Esteticamente não me parece extraordinariamente feio nem bonito, não me parece muito diferente dos edifícios de bairros construídos em Lisboa como a Portela. Se eu fosse um traficante de droga disposto a investir em património imobiliário preferiria investir o meu dinheiro em solares, que não faltam na região. Mas se fosse de classe média, ou imigrante com algum dinheiro amealhado depois de anos de trabalho lá fora mas insuficiente para comprar a empresas sediadas em paraísos fiscais apartamentos em prédios reabilitados com classe e sem olhar a custos, não me pareceria aberrante comprar lá um apartamento. Uma coisa assim para remediados.

E os moradores que lá compraram as casas viram-se de repente ameaçados pelo governante-rolo-compressor que lhes queria demolir o prédio e libertar espaço para eregir a sua utopia arquitectónica através da empresa VianaPolis criada para o expropriar e demolir, para além de albergar ou contratar à peça gente para desenhar a nova cidade. A maior parte, provavelmente ponderando que não tinha capacidade para resistir à investida de uma empresa muito mais poderosa do que eles e propriedade do governo e do município acabou por ceder à ameaça e aceitou entregar os seus apartamentos, mas uma minoria resistiu ao longo de décadas às investidas do governo, da Câmara Municipal e dos tribunais que a queriam expulsar e expropriar compulsivamente.

Até que acabou o prazo determinado para serem despejados.

2019-06-28 Prédio Coutinho.jpg

Não vale a pena repetir a história que tem sido sobejamente relatada, como aqui, por um proprietário de uma fracção no prédio. Os moradores estão barricados nas suas casas e não permitem a entrada aos burocratas que lá estão para tomar posse administrativa delas protegidos por agentes da autoridade e empresas de segurança privadas, e sabem que se sairem as portas das suas casas serão arrombadas, as fechaduras mudadas, e não conseguirão voltar a entrar. Pelo que permanecem dentro de casa há dias. Cá fora a sociedade VianaPolis mandou-lhes cortar a água, a luz e o gás, e não deixa entrar ninguém no prédio, nem para lhes levar alimentos nem para prestar cuidados sanitários e de saúde aos moradores de idade avançada que lá estão barricados. E os familiares só lhes têm conseguido fazer chegar água e alimentos através de sacos içados por cordas das varandas. Como num cerco medieval.

Como num cerco medieval como os de Melgaço e Monção.

Nesta luta desigual e degradante o sitiante é protegido pelo anonimato. Ao contrário dos políticos e dos autarcas que são, estando a comunicação social virada para o fazer, escrutinados até aos fundilhos, os burocratas da empresa VianaPolis que dirige o cerco e a guerra aos moradores são anónimos, não são interpelados nem questionados pelos jornalistas pelas indignidades que ordenam, não são reconhecidos nem apontados na rua, na escola dos filhos ou na missa como os facínoras que querem matar os velhotes do prédio. São anónimos.

Mas os anónimos também têm nome, e se a comunicação social lhes preserva o anonimato e a privacidade não temos motivos para a secundarmos. Olhemos então para o presidente da sociedade VianaPolis e deixemo-lo sair do anonimato.

O presidente executivo da VianaPolis chama-se Tiago Moreno Delgado e é irmão do secretário de Estado das Infraestruturas do ministério liderado pelo marido da chefe de gabinete do secretário de Estado Adjunto e dos Assuntos Parlamentares. É portanto um socialista instalado na teia. Mas a teia das famílias socialistas é tão densa e confusa que dela não se podem extrair grandes conclusões sobre as qualidades técnicas e humanas do gestor. Mas tem uma qualidade que no PS actual é muito valorizada. É um grande mamão nas tetas dos contribuintes. Em 2010 conseguiu impingir por ajuste directo de 75.000 euros a "Prestação de serviços no âmbito da coordenação dos projectos e empreitadas previstas no âmbito das actividades desenvolvidas pelo Programa Polis Litoral Norte" durante o prazo de 365 dias à Parque Expo ao mesmo tempo que era director da Parque Expo. Estando dotado da competência de mamar nos dois lados ao mesmo tempo e fazendo parte das famílias certas pode-se considerar perfeitamente integrado no regime socialista.

E as minhotas?

As minhotas, em vez de lhe invadirem o palácio para o sovarem e expulsarem violentamente da cidade, estão muito caladinhas a assistir ao cerco, a deixar exaurir os velhotes de solidão, escuridão, fome e fraqueza até se renderem e entragarem as suas casas ao sitiante.

As minhotas de hoje não são as Minhotas do meu tempo.

 

publicado por Manuel Vilarinho Pires às 18:03
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