O caso vem contado aqui e é difícil não o ler sem uma surda suspeita de que alguém fez borrada, assim como os quase vinte anos já decorridos desde que Pedro Vilela nasceu, para chegar a uma decisão judicial quase definitiva (falta o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, se os pais tiverem recursos), não podem senão despertar nojo e desprezo pelo nosso sistema judicial.
Não estou em condições de dizer que houve (para além do palpite de que sim, que houve) negligência médica e quem tiver a coragem de ler a sentença - um documento interminável e prolixo com o nº processo 0445/13, data do Acórdão 16-01-2014, descritores HOSPITAL PÚBLICO, PRESUNÇÃO DE CULPA e RESPONSABILIDADE POR ACTO MÉDICO (estas indicações são necessárias para obter a sentença através do motor de busca no site e só disponho delas por causa de um comentador ao post acima referido) - não chegará, creio, a uma conclusão satisfatória.
E isto porque nela se discute não apenas o que se passou no Hospital de S. Marcos, em Braga, há vinte anos, que levou a que Pedro ficasse com uma incapacidade de 100% (não fala, não ouve, não vê), mas também quem tem que fazer a prova da culpa do hospital ou ausência dela. O STA acha, ao contrário das instâncias inferiores, que, tratando-se de um hospital público, esse ónus recai sobre o utente, isto é, na prática, são os pais de Pedro que têm que provar que as lesões decorrem de falhas ocorridas desde que a mãe deu entrada no hospital, às 17H49 do dia 18-12-1994, até às 10H45 do dia seguinte, quando teve lugar o parto por cesariana.
Acha muito mal. E digo-o não por causa da autoridade jurídica que não tenho, mas porque o bordão "dura lex, sed lex", se se justificou historicamente como um progresso em relação à lei não escrita; e se se justifica ainda hoje em nome da segurança jurídica: não pode ofender aquele sentido de Justiça que todas as pessoas bem formadas têm consigo, e que lhes diz que uns pais que têm por filho um vegetal (com perdão da imagem) têm direito a que se não lhes diga que, se fossem a um hospital privado, não teriam que provar o que não podem, nem sabem, mas, como foram a um hospital público, o ónus da prova recai sobre eles.
Assim não o entendeu o Tribunal Constitucional, em sentença que não li (para ver as sentenças é precisa uma inscrição no site do TC e indicar uma password, vá lá o diabo saber porquê) e ficarei assim sem saber por que forma se ignorou o artº 13º da Constituição, que reza:
Quer-me parecer que se num hospital privado não há dúvidas, havendo indícios de más práticas médicas que tenham originado lesões, que o estabelecimento tem que provar que essas práticas ou não existiram ou não originaram aquelas lesões; igual obrigação deve recair sobre um hospital público.
Porque, a entender-se o contrário, os utentes de hospitais públicos têm menos direito de acesso à Justiça do que os utentes dos hospitais privados, quando são, real ou imaginariamente, maltratados.
Não é que eu seja um entusiasta do SNS - não sou. Mas sou um entusiasta da igualdade dos cidadãos perante a Lei.
Dos tribunais espera-se não apenas que dirimam conflitos entre cidadãos mas também, num estado de direito, entre estes e o Poder. Quando o legislador ofenda princípios fundamentais, consagrados pela doutrina, quer estes estejam quer não estejam vertidos expressamente no texto da Constituição, ou alguma disposição desta, pode intervir, a pedido de pessoas ou entidades pertencentes a um certo elenco, um tribunal especializado, que pode anular, com força obrigatória geral, o texto ou a parte do texto que ofende aqueles direitos.
Toda a gente sabe isto. E como, num estado de direito, o legislador tem legitimidade democrática mas a dos tribunais é de outra natureza (é a perna judicial, para impedir o arbítrio e a ditadura de maioria), é de esperar que, aqui e além, haja situações de conflito. A circunstância de a maioria dos juízes serem nomeados pela Assembleia da República, mas sempre de entre a casta dos juristas, não reforça a legitimidade democrática destes juízes, por comparação com os "ordinários" dos restantes tribunais - é apenas um expediente, que não teria natureza muito diferente se a escolha fosse feita, por exemplo, pelo Presidente da República.
O conflito é bom: o Poder corrompe, desnorteia, exagera, incrusta-se. E os cidadãos precisam de quem, por ser inamovível e irresponsável, os proteja de abusos. Esses abusos podem ofender um só indivíduo, um grupo deles, ou categorias inteiras de cidadãos, por via legislativa, e seja a protecção exercida por um Senado vitalício, uma secção especializada do Supremo Tribunal de Justiça, ou outro arranjo qualquer, o que importa é que exista.
Mas os juízes sempre serão pessoas, e portanto as opiniões do TC podem evoluir, porque as mesmas pessoas mudam de opinião e porque novas pessoas terão novas opiniões. Porém, o papel do juiz é interpretar a Lei, e nenhuma interpretação aceitável de um texto legal, qualquer que seja a ginástica argumentativa, o esforço de adaptação a circunstâncias novas, ou a evolução da opinião, pode resultar no oposto à sua letra e ao seu espírito. E não se diga que, qualquer que seja o texto constitucional, sempre haverá princípios não escritos a que o intérprete está obrigado: porque o problema não está em identificar princípios, mas em harmonizá-los; e porque a harmonização (mais igualdade contra menos liberdade; mais confiança contra menos governabilidade, por exemplo) sempre terá que fazer-se em obediência ao espírito da Lei.
Estes senhores juízes em concreto são maioritariamente, na minha opinião, que não me dou ao trabalho de tentar demonstrar, estatistas. Mas pergunto: outros juízes, com a mesma Constituição estatista, prolixa e socialista, que é a nossa, poderiam chegar a resultados substancialmente diferentes, salvo numa ou noutra disposição?
A verdade é que o Acordo com a troika era inconstitucional, por, desde logo, implicar despedimentos na Função Pública, mesmo que o não dissesse explicitamente; e inconstitucional (a menos que se entenda que o vértice do ordenamento jurídico português não é a Constituição) é o Tratado Orçamental, por implicar a mesma coisa, quer seja quer não seja cumprível por outras razões. Daí que estas discussões sobre um novo arranjo para a nomeação de juízes me pareçam ociosas - o problema não reside neles.
O primeiro-ministro Costa não quererá correr o risco de desafiar a Constituição e, por conseguinte, o TC. Mas como tentar corrigir o défice com aumentos de impostos, como com louvável franqueza sugeriu o TC, não é simplesmente viável; e conseguir que a Europa nos subsidie permanentemente, transida de respeito pelas nossas leis e as nossas instituições, é impossível; tendo em conta que, permanecendo no Euro, nada de substancial mudará: está desenhado um nó górdio.
Dizia-me uma querida amiga há dias, a propósito deste meu texto: o que tu queres é um PREC.
Não sei o que vai haver. Se soubesse, em vez de trabalhar muito e ganhar pouco, começava desde já a negociar em moeda, a fim de, como seria justíssimo, trabalhar pouco e ganhar muito.
E quanto ao nó górdio? Terá de ser cortado, claro - é da natureza dos nós górdios que alguém os corte. Mesmo que almas puras imaginem que, empurrando os problemas com a barriga, eles tendam a desaparecer. Com PREC ou sem PREC.
O PS está actualmente em convulsão, com duas alas correspondentes a duas visões sobre como gerir a coisa pública, ambas dispondo de uma alavanca implícita no nosso sistema político que reforçará qualquer delas quando alcançar o poder: uma, a de Seguro, compromete-se a não aumentar impostos, nem reduzir serviços públicos. Compensará com o crescimento da economia, induzido pela Europa, rendida ao inegável carisma do líder (que cativou recentemente, entre nós, quase um terço de um terço dos eleitores), alguma criatividade nas contas, e cortes na despesa que não afectem nem pessoas nem serviços, cuja natureza de momento ainda não pôde ser apurada mas que será determinada logo que tenha acesso aos dossiers;
Outra, a de António Costa, propõe-se mudar de paradigma de governação, enveredando por apostas: na educação, na qualificação da mão-de-obra, na investigação científica e num novo modelo de desenvolvimento que dará os primeiros passos nos dias úteis a seguir à tomada de posse. E, é claro, não dispensa uma componente diplomática muitíssimo aguda, com o propósito de organizar uma fronda dos países enrascados na Europa do Sul a favor de uma reforma das instituições tal que os do Norte encostem a barriga ao balcão; sem esquecer que porá fim a esta senda de destruição do País que um governo celerado tem vindo a promover com afinco. Sobre impostos e fecho de serviços não garante nada, mas reconhece que é necessário inverter o ciclo - a chave está no crescimento e ele, Costa, explica luminosamente que, em o país crescendo, a importância relativa da dívida diminui.
A alavanca consiste no Tribunal Constitucional, que tem tido a tarefa necessária de interpretar uma Constituição que contém o programa de governo do PS, como se o programa não estivesse lá nem nós no Euro - coisa que os senhores juízes, compreensivelmente, não têm sabido fazer. A pobre Constituição começou por ser sul-americana, versão Che, o PSD esforçou-se ao longo do tempo por a puxar, dentro do mesmo continente, mais para Norte, e o PS, que entretanto tinha metido o socialismo na gaveta, resolveu, sem atraiçoar a querida herança abrilista, casar o projecto com a social-democracia sueca traduzida em calão dos anos sessenta - e é o que temos.
O Tribunal Constitucional não se ocupa directamente, graças a Deus, de crescimentos nem de dívidas, mas, confrontado com a necessidade de reduzir o défice, entende que há margem mais que suficiente para operar a redução através de aumento de impostos.
Temos então que o IVA vai subir. E como a subida prevista talvez chegue para a redução num ano, mas não nos seguintes, convirá desde já interiorizar a ideia de que, num futuro não muito distante, já estaremos nos 25%.
Esta é, claro, a solução que convém à Oposição: o aumento de impostos desagrada a toda a gente, de mais a mais sendo sobre o consumo - sempre se poderá dizer que o pobre pagará proporcionalmente mais, razão pela qual a nova bandeira passará a ser corrigir esta grande injustiça aumentando o imposto sobre o rendimento nos escalões superiores e os impostos sobre o património.
Estão portanto reunidas as condições para o governo ser cozido em lume brando. Pode fazer como a rã, que se vai adaptando ao aumento de temperatura até falecer tenrinha; ou poderia entregar a chave ao Senhor Presidente da República, dizendo-lhe: Excelência, marque eleições. É mais do que provável que as percamos, mas para governar como o PS é melhor, a bem da transparência, o original do que a cópia. Não se apoquente Vossa Excelência: o Primeiro-Ministro Costa, a cumprir o Tratado Orçamental, não dura mais de um ano até a popularidade cair a níveis ainda inferiores aos da fossa de Mindanau. E, de regresso, então ou até antes, e estando o país à beira de um novo resgate, sem o qual os senhores juízes, como os outros dependentes do Estado, terão de viver das suas economias, se as tiverem, talvez possa haver condições para reformar, ou o Tribunal, ou a Constituição.
É certo que, para rever a Constituição, são precisos 2/3 dos deputados, o que significa provavelmente que, como de costume, o PS tem poder de veto. Mas, desta vez, os credores tomarão decerto precauções acrescidas. E é impressionante a capacidade de concentração que deputados e juízes sem vencimentos podem encontrar nas fibras do seu ser: uns descobrirão que afinal a realidade tem muita força, e renovarão os seus votos de europeísmo fazendo o que lhes mandam; e outros descobririam, ainda que fosse na mesma Constituição, se fosse preciso, princípios que já lá estavam, mas dos quais ainda não tinham tido vagar para se aperceberem.
Tenho lido muita opinião sobre a última decisão do Tribunal Constitucional. Mas quer sejam opiniões de juristas, economistas, ou até alergologistas, como no meu caso, sempre quem está à direita está contra a decisão e à esquerda a favor.
Sempre, vírgula: que pelo menos uma surpreendente excepção conheço, de um constitucionalista e socialista, que, tranquilamente, com argumentos pela sua maior parte jurídicos, censura a sentença, aqui. Tiro-lhe por isso, com respeito, o chapéu que, retoricamente, raramente despego da cabeça. Não por concordar, como concordo, mas pela raridade do pensar, e pensar bem, desalinhado.
Isto vem confirmar-me nas suspeitas que sempre tive, e que se aplicam ao TC desde que este entrou em rota de colisão com o Governo (ou ao contrário) e que, num post seminal, enunciei assim: Que se me não fale de argumentos jurídicos e subtilezas escolásticas. Porque é sempre possível construir raciocínios jurídicos diferentes mas igualmente impecáveis na sua fundamentação, consoante os princípios que se escolhem para nortear a conclusão.
Acrescento o seguinte:
A maior quebra de autoridade do Governo não lhe vem de, na situação de aperto do País, ir ao bolso de pensionistas e reformados; vem-lhe, na minha opinião, de fazer isso sem nunca ter sido verdadeiramente convincente no corte de despesas do Estado, por poupar o que não devia ser poupado (RTP e fundações, por exemplo, de uma extensa lista de parasitagens sortidas) e por não se ter dado nunca ao trabalho de explicar, em termos perfeitamente inteligíveis mas que não implicassem necessariamente descer ao detalhe ou à inconfidência, por que razão na renegociação de contratos no âmbito das PPPs, ou swaps, ou quaisquer outros que envolvam bancos ou instituições, em particular se estrangeiros, tem, se tem, as mãos atadas.
Os tribunais em geral, e o Constitucional em particular, servem para defender o cidadão do abuso, seja de outros cidadãos seja do Estado. A nossa perversa Constituição, porém, faz com que o Tribunal que privilegiadamente a interpreta sirva muito menos para defender o cidadão do Estado e muito mais para defender os supostos direitos adquiridos de uns contra a obrigação forçada de outros. Devemos este texto iníquo a todos quantos o aprovaram em 1976, e ao PS que sempre arrastou os pés para o rever.
Talvez o TC, com o golpe de asa que não tem, pudesse perceber que se pode interpretar bem um texto mau, indo buscar ao extenso catálogo dos princípios os que o bom senso manda, mesmo que circunstancialmente pareçam de direita.
Os senhores juízes, porém, deixaram-se inquinar pela interpretação autêntica, em vez de adaptar o texto ao estado de necessidade do País. Talvez, numa próxima revisão, se pudesse incluir uma tabela de princípios, indo buscá-los à doutrina e hierarquizando-os: se o legislador quer interpretações de funcionários o melhor é não deixar nada ao acaso.
O problema do Tribunal Constitucional é simples na sua complicação, e consiste nisto:
Ou o TC incorporava no seu modelo de raciocínio o facto de Portugal já não ser um país independente, ou não; ou o TC incorporava no seu modelo de raciocínio o facto de o governo do País ser uma parceria decisória com os credores, ou não.
Que se me não fale de argumentos jurídicos e subtilezas escolásticas. Porque é sempre possível construir raciocínios jurídicos diferentes mas igualmente impecáveis na sua fundamentação, consoante os princípios que se escolhem para nortear a conclusão. A alteração das circunstâncias em que se fundava o contrato social que a Constituição consagrava deveria justificar, só por si, uma interpretação compatível com o estado de necessidade do país.
De resto, a nossa Constituição nasceu sob o signo do equívoco, da má-fé e da reserva mental: equívoco por incluir não apenas um modelo de sociedade, que é para o que as constituições servem, mas também um programa de governo, para o qual deveria bastar a aprovação de uma maioria absoluta da AR; má-fé dos comunistas, que quiseram e conseguiram que ficasse impossível o governo da direita fascista, mesmo que com legitimidade eleitoral, e do PS, que se garantiu como indispensável para a revisão, que sabia inevitável; e reserva mental do PSD, que aprovou um texto a léguas, já então, das suas convicções.
As sucessivas revisões não depuraram o texto da sua parte programática, por quase exclusiva responsabilidade do PS, que quis conservar capital para outras revisões, e guardar uma aura de esquerda, que é o seu fonds de commerce.
E aqui estamos. Os senhores juízes deverão por certo estar satisfeitos: à força de dizerem como se governa vão tornando o país ingovernável.
Perguntados individualmente, não duvido nada que achem que as dívidas são para pagar, o Euro não se discute e a Europa menos ainda.
Eu que, salvo na parte das dívidas, não acho nada disso, e ademais não sou católico, digo: Perdoai-lhes, Senhor, que não sabem o que fazem.
Ontem, na Quadratura, falou-se do Acórdão do TC, com o qual, previsivelmente, Costa e Pacheco concordam e do qual Lobo Xavier discorda mas mas - se percebi bem.
Costa, uma hábil serpente cheia de aparente bonomia, saiu-se com um argumento novo (para mim): o estatuto dos funcionários públicos não é nem pode ser igual ao dos trabalhadores da privada em matéria de despedimento porque correríamos o risco de, a cada mudança de governo, assistirmos a um colossal despedimento de funcionários para serem substituídos pelos afilhados da nova Situação. Isto é, iríamos testemunhar uma partidarização do aparelho de Estado sem precedentes.
O argumento é bom. Já agora, em lugares de chefia, e ao contrário do que acontece noutras paragens, a mudança de governo - e, às vezes, de apenas um ou outro membro do mesmo governo - dá lugar a uma dança de cadeiras. Isto, que impressiona negativamente as pessoas, a mim deixa-me frio porque não ignoro que a permanência em lugares de mando de funcionários inamovíveis é entre nós um risco maior, e um vício pior, do que o ocasional job for the boy - tivéssemos nós o sistema inglês e a série "Yes Minister" parecer-nos-ia um ingénuo conto de fadas.
Ponto é que os jobs e os boys sejam poucos e comedidos, o que aliás só é possível com um Estado mais pequeno. Mas generalizar o sistema para a máquina no seu conjunto é, de facto, uma perspectiva aterradora. Seja, então: despedir transversalmente, com base em escolhas necessariamente arbitrárias dos responsáveis dos serviços, não pode ser.
Mas o que é que pode ser? É aqui que os Costas, os Pachecos, as Ferreiras Leites e tutti quanti se espalham, porque o que todos dizem é que "temos que redefinir as funções do Estado". Ora, redefinir as funções do Estado é o que andamos a fazer há 40 anos e ainda não chegámos a um consenso.
Por isso, Costa, minha enguia escorregadia, diz lá, em intenção da próxima visita da troica: quais são os serviços que queres extinguir? Ai, não fazes parte do Governo, não estás por dentro? Bom, e na tua câmara caloteira e falida extinguiste o quê, ao certo?
A Pacheco e a Manuela não pergunto nada, porque suspeito que fariam coisas parecidas às canhestras que têm sido feitas, se fizessem parte do aparelho decisório. É um processo de intenções da minha parte? É. Face ao que dizem, não têm no alforge soluções alternativas? Não. Porque, se tivessem, trombeteavam-nas pelos telhados.
A nossa Constituição foi revista em 1982, para extinguir o Conselho da Revolução e criar o Tribunal Constitucional.
Voltou a ser revista em 1989, para pôr fim à irreversibilidade das nacionalizações.
Em 1992 e 1997, foi novamente revista, para consagrar o abandono da independência do País, por causa dos tratados de Maastricht e Amesterdão.
Em 2001 foi, de novo, revista, a fim de permitir a ratificação da Convenção que cria o Tribunal Penal Internacional, alterando as regras de extradição.
A 6.ª Revisão Constitucional, aprovada em 2004, aprofundou a autonomia político-administrativa das regiões autónomas dos Açores e da Madeira, designadamente aumentando os poderes das respectivas Assembleias Legislativas e eliminando o cargo de “Ministro da República”, criando o de “Representante da República”. Ou seja, reforçou o poder de nomenclaturas locais, diminuiu a unidade do Estado, criou focos de permanente guerrilha institucional e escancarou a porta a despesistas contumazes, por nem sempre ser com impostos locais que as despesas locais se fazem.
Foram também alteradas e clarificadas normas referentes às relações internacionais e ao direito internacional, como, por exemplo, a relativa à vigência na ordem jurídica interna dos tratados e normas da União Europeia, não fosse haver dúvidas sobre os poderes da Assembleia das Centúrias em Estrasburgo, do Senado em Bruxelas e da casa do Imperador em Berlim.
Foi ainda aprofundado o princípio da limitação dos mandatos, designadamente dos titulares de cargos políticos executivos, bem como reforçado o princípio da não discriminação, nomeadamente em função da orientação sexual, um tributo aos ventos da modernidade, assoprados pelo bloco de lunáticos marxistas que se haviam aglomerado em 2000.
Em 2005 foi aprovada a 7.ª Revisão Constitucional que, através do aditamento de um novo artigo, permitiu a realização de referendo sobre a aprovação de tratado que vise a construção e o aprofundamento da União Europeia.
Ainda estamos longe das 27 emendas à Constituição Americana. Mas como as dez primeiras constituem o Bill of Rights, há muito pacíficos, sob diferentes vestes, nas constituições democráticas (excepto o direito ao porte de armas), e no séc. XX houve apenas 12, dos quais uma (a 21ª) foi para anular a 18ª, temos que a americanada tem muito a aprender connosco: o amor à nossa Constituição é tanto que passamos a vida a emendá-la, a caminho da perfeição. As sete revisões são como os antigos rasgões na capa do estudante: reforçam o incontido carinho que se lhe devota.
Parece, porém, que a nossa Constituição não deixa governar a casa, diz quem tem essa responsabilidade. E quem a não tem meneia gravemente a cabeça, esclarecendo que conseguiria perfeitamente diminuir a despesa, desde que não a reduzisse.
A mim me parece que o texto constitucional é tão prolixo, tão extenso nos direitos que consagra e tão respeitador dos princípios que os enformam, que seria sempre possível, com impecável fundamentação jurídica, respeitar o princípio do bom senso, o do mau senso, se existisse, e ainda o contrário dos dois, se fosse possível.
É isso que, creio, este post demonstra. E é por isso, também, que este outro erra, a meu ver, o alvo: podemos fazer mais rasgões na capa - mas não há tempo, em tempo útil.
Nos próximos dias jurista que é jurista dirá que o TC não podia ter decidido coisa diferente, face ao que a Constituição diz; ou que podia e devia, face ao que diz a Constituição. Em ambos os casos, se for um dos bons a argumentar e a gente se deixar embalar no raciocínio, concluirá que tem evidentemente razão - se estivermos de acordo com a conclusão; ou que não tem, porque deve haver uma falha no raciocínio que de momento nos está a escapar - se não estivermos de acordo com a conclusão.
Com economistas, a coisa é consideravelmente mais simples: o TC andou bem, para todos os que acham que a política austeritária conduzirá ao desastre; e andou mal, para os outros, os dois grupos demonstrando, com estatísticas e gráficos, a certeza matemática das suas posições.
Já vimos disto nas decisões anteriores.
É provável que muito funcionário público solte um suspiro de alívio. E não é impossível que muitos cidadãos, incluindo funcionários públicos aliviados, sintam uma vaga compaixão por este governo: não deve ser fácil, com o credor sobranceiro à porta, tomar sob pressão medidas que afugentam votos e ver estas coarctadas por quem dispõe de veto, irresponsável e inimputável, e o usa.
Não é invulgar os cidadãos verem os seus direitos defendidos pelos tribunais contra o Poder; e é mesmo por isso que, em sociedades democráticas, os tribunais são independentes. Mas costumam ser direitos de indivíduos, ou de minorias, contra um Estado intrusivo, ou abusador, ou com uma legislação social que ofende este ou aquele direito.
O País está em estado de necessidade. Só não o estaria se o crédito incondicional não tivesse acabado. Os senhores conselheiros podem achar, como cidadãos, que haverá outras políticas possíveis e outros comportamentos exigíveis aos credores. Mas não são juízes disso: nem foram eleitos para governar nem fazem parte da troica.
E podem fingir que as circunstâncias de excepção não existem. Podem. Mas não deviam.
Encaremos os factos: anteontem a Esquerda, toda ela, teve uma vitória; e a Direita, toda ela, ficou num canto, ensimesmada, a lamber a ferida e a coçar a cabeça.
Não é surpresa: a Esquerda governa o País há quase quarenta anos, mesmo quando não está no Governo; e nas raras oportunidades que tem havido para reverter o rumo das coisas, sempre o espírito de compromisso, os princípios submetidos às razões táticas, o apego aos lugares com os quais o Centrão colonizou o aparelho de Estado e respectivo sector empresarial, e o medo "democrático" às reacções da clientela do Orçamento, que é hoje a maioria da população e do eleitorado, se conjugaram para anular qualquer veleidade de reforma, que aliás nunca foi senão timidamente defendida e, menos ainda, posta em prática.
Foi assim que a Constituição, cujo preâmbulo apontava o caminho do "socialismo" e continha efectivamente um programa de governo que deixava aberta a porta para lá chegar, foi aprovada, de má-fé, por dois partidos: pelo PCP e apêndices, que a achavam útil não obstante conter elementos de democracia burguesa e cretinismo parlamentar; e pelo PSD, que a achava um progresso em relação à revolução da rua e fingia acreditar que a social-democracia era o que a Constituição defendia. A prolixidade, o tudo para todos que a Constituição é, como se os direitos económicos de uns não fossem as obrigações económicas de outros, foi o contributo do PS, uma associação de beneméritos com propensão para a generosidade a crédito.
O partido que ficou de fora da aprovação, o CDS, não tinha, como ainda hoje não tem, peso específico para influenciar significativamente o curso das coisas. Mas cabe referir que, se o PSD tivesse votado contra, as revisões que se foram sucedendo teriam podido ter outra profundidade, por ser mais nítida a clivagem esquerda/direita e mais equilibrado e espectro partidário.
Depois veio a "Europa". Então como hoje, o Centrão apostou todas as fichas na "solidariedade" europeia. E, mais tarde, comprometeu o País numa desastrada adesão ao Euro, um clamoroso erro de toda uma geração, que só ainda não é visto pacificamente como tal por os responsáveis que detêm as alavancas do Poder e da Opinião ainda serem basicamente os mesmos.
Chegámos aqui, na terceira edição da bancarrota que o regime democrático foi capaz de engendrar. E, mais uma vez, a curta oportunidade que houve de reformar seriamente o Estado, nos primeiros seis meses do Governo, foi desperdiçada por falta de lucidez (o prestigiado Gaspar é um estrangeirado que não conhece, nem entende, o País, e tem todos os tiques do apparatchik incompetente e europeu que efectivamente é), de coragem (os boys do PS e PSD só podem ser liquidados, e os poderes fácticos que minam a competitividade da economia portuguesa só podem ser afrontados, por quem esteja disposto a fazer hara-kiri) e erros de avaliação de forças: engolir acefalamente quanta prescrição idiota fazem os credores é, além de cobarde, não compreender que ajudá-los a receberem o que lhes é devido NÃO implica andar permanentemente de gatas.
No momento em que isto escrevo, está toda a gente em suspenso, no confronto atordoado das respectivas impotências. E arrisco que nada de dramático vai acontecer: uma remodelação talvez, uns cortes na despesa que deviam ter sido feitos há muito, uns aumentos de impostos para os "ricos", mais um esforço na "luta contra a evasão fiscal", mais uma renegociaçãozinha que a tróica fingirá ter grande dificuldade em engolir, et le tour sera joué.
Até ao próximo incidente.
Não há um canal de televisão que explique aos portugueses como é que é composto o "Tribunal" Constitucional?
Que informe os cidadãos que os "juízes" são designados uns pelos partidos, e outros por cooptação (ou seja, por eles mesmos)?
Que não precisam de ter, no seu passado profissional, uma única sentença jurídica proferida (como acontece neste momento, se não com todos, pelo menos com grande parte)?
Que dos 13 elementos que o compõem, apenas 6 (menos de metade) têm de ser juízes, de qualquer outro tribunal, sem quaisquer exigências de currículo?
E que aos outros 7, em matéria de habilitações, não se lhes exige mais do que terem "um grau académico" em Direito (sabe Deus que "grau", de que "Universidade", e com que tipo de "equivalências")?
Não espero da RTP a prestação deste "serviço público". Mas os jornalistas "profissionais" podiam lembrar-se. E os canais privados podiam considerar esta informação "interessante".
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Leitura complementar: "Jurídico ou político?"
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