Eu sou do tempo em que o cançonetista Zeca Afonso era regularmente impedido pelo Estado Novo de exercer a sua verdadeira profissão, e a que lhe proporcionava o ganha-pão, a de professor do ensino oficial.
Distraído com coisas menores, só ontem pela madrugada me apercebi, através da leitura circunstancial de uma publicação no blogue de uma amiga, do movimento que se formou espontaneamente para impedir o ex-primeiro ministro Pedro Passos Coelho de assumir um lugar como professor convidado numa universidade pública.
Confesso que, ou por falta de tempo ou por falta de interesse, não dediquei nenhum esforço a descodificar os rosnados da matilha que se formou para tentar perceber se a exigência de expulsão do novo professor se deve à insuficiência das suas qualificações académicas, uma mera licenciatura pré-Bologna, para dar aulas numa universidade, ou às suas qualificações políticas manchadas indelevelmente pelo crime de ter salvado Portugal da última falência socialista, devendo atribuir-se ao adjectivo numeral última o sentido relativo de ter sido a última até agora mas não a última de todas, porque outras se seguirão, e não o absoluto.
Também deixo claro que, relativamente a esta questão de a falência socialista de que o Pedro Passos Coelho nos salvou ser a última até agora mas não a última de todas, não pretendo tentar esclarecer os socialistas e afins, os membros da matilha, que são suficientemente burros para acreditar nos seus próprios números de ilusionismo, mas apenas deixá-lo escrito para um dia poder dizer "eu bem vos avisei". Também sei que não ficarão desassossegados quando a próxima chegar, porque também são suficientemente burros para acreditar que ela se deverá, não às boas políticas socialistas do governo que acarinham e protegem, mas a causas exógenas de que ele não terá responsabilidade nem permitirão colocar em dúvida a qualidade das suas políticas, como por exemplo a pesada herança do governo Passos por ter governado sem dinheiro, a maldade dos mercados financeiros quando deixarem de acreditar nas qualidades do ilusionista por terem percebido o truque, e as crises cíclicas do capitalismo mundial que há mais de cem anos anunciam o seu fim e a sua substituição pelo socialismo.
Não sei se a proposta de expulsão do ensino oficial do professor Pedro Passos Coelho tem por objectivo proteger os futuros alunos de uma menor exigência na qualidade do ensino ou proteger a sociedade da presença de um político indesejável por desmentir a narrativa em que ela deve acreditar para ser feliz, pelo menos nos intervalos entre crises e falências em que, se quer sair delas, é mesmo obrigada a chamar políticos competentes? Se o saneamento que exigem é académico ou político?
Talvez o saneamento seja académico?
O Estatuto da Carreira Docente Universitária, Decreto-Lei n.º 448/79, de 13 de novembro, alterado pela Lei n.º 19/80, de 16 de Julho, e pelos Decretos-Leis n.os 316/83, de 2 de julho, 35/85, de 1 de fevereiro, 48/85, de 27 de fevereiro, 243/85, de 11 de julho, 244/85, de 11 de julho, 381/85, de 27 de setembro, 245/86, de 21 de agosto, 370/86, de 4 de novembro, e 392/86, de 22 de novembro, pela Lei n.º 6/87, de 27 de janeiro, e pelos Decretos-Leis n.os 145/87, de 24 de março, 147/88, de 27 de Abril, 359/88, de 13 de outubro, 412/88, de 9 de novembro, 456/88, de 13 de dezembro, 393/89, de 9 de novembro, 408/89, de 18 de novembro, 388/90, de 10 de dezembro, 76/96, de 18 de junho, 13/97, de 17 de janeiro, 212/97, de 16 de agosto, 252/97, de 26 de setembro, 277/98, de 11 de setembro, e 373/99, de 18 de setembro, e 205/2009, de 31 de agosto (que procede à sua republicação), alterado pela Lei n.º 8/2010, de 13 de maio, e que me perdoem os que se perderam no parágrafo antes de chegar aqui mas não fui capaz de resistir à citação deste extraordinário preâmbulo, prevê, logo no seu Artigo 3º Pessoal especialmente contratado, a contratação para as categorias de assistente convidado, professor convidado ou leitor, "individualidades, nacionais ou estrangeiras, de reconhecida competência científica, pedagógica ou profissional, cuja colaboração se revista de interesse e necessidade inegáveis para a instituição de ensino superior em causa". A contratação de professores como o Pedro Passos Coelho não apenas não é ilegal como está expressamente prevista na Lei. Mas o facto de ser legal não comprova só por si a virtude ou a conveniência de o fazer.
O meu pai dizia que quem sabe faz, e quem não sabe ensina. Mas há excepções. Na minha passagem como aluno pelo Instituto Superior Técnico tive várias cadeiras ministradas por assistentes ou professores convidados, que se distinguiam dos professores integrados na carreira académica por, por um lado, não serem doutorados nem possuirem qualquer grau académico superior à licenciatura, e por outro, serem engenheiros de profissão que ensinavam no IST aquilo que faziam nas empresas onde trabalhavam. Eram os que sabiam e ensinavam. Pelo que não é inédito as universidades, mesmo as que conquistaram um renome superlativo, recrutarem professores que não têm as qualificações académicas requeridas para a integração na carreira académica mas têm competências profissionais suficientemente relevantes para partilhar com os alunos.
Também é verdade que a matilha que pretende a expulsão do professor Pedro Passos Coelho tende a acreditar em charlatões que, instalados nas universidades, maioritariamente nos departamentos de ciências sociais que se prestam mais do que os das ciências exactas a fingir que opinião pode ser ciência, utilizam o púlpito que elas lhes proporcionam para pregar opiniões como se fossem ciência, os Paes Mamede, os Louçã ou os Boaventura que em bom tempo nos prometeram de ciência certa que a rebelião da Grécia contra os ditâmes do Eurogrupo e da senhora Merkel, e agora permitam-me abrir mais um parêntesis para relembrar que a senhora Merkel é de facto uma senhora que merece o título que é usado para a designar, para além de ter exercido a profissão de investigadora doutorada em Química Quântica antes de se dedicar a tempo inteiro à política, a salvaguardaram da crise em que Portugal caiu com a sua submissão à Europa, postulado que a matilha nunca se lembrou, ou lembrou mas evitou para não se sentir embaraçada com a sua própria burrice, confrontar com os factos que entretanto vieram a ocorrer. O rigor científico também não parece ser o que os move.
Também é verdade que algumas universidades podem cair na tentação de convidar professores especialmente contratados, não para partilharem com os seus alunos as competências adquiridas ao longo da sua carreira profissional, mas para aquilo a que se pode designar, de modo simplista e redutor mas suficientemente claro para comunicar o conceito, por lhes fazer favores políticos. Para dar um exemplo, o politico António Guterres, portador do grau de licenciado, foi admitido quando saiu do governo que liderava como professor catedrático convidado pelo IST, não sei especificar exactamente para que objectivo, nem se chegou a cumpri-lo ou se o seu cartão de ponto na universidade ficou tão virgem de registos como o da entidade petronal onde exercera a profissão antes de ingressar no governo, o Instituto de Participações do Estado IPE. Será esta a motivação para os que agora pretendem expulsar o professor Pedro Passos Coelho do ensino? Acredito que seja, pelo menos para os que agora pretendem expulsá-lo e na época também pretenderam expulsar o professor António Guterres do IST. Que são, tanto quanto me foi dado enumerar até agora, nenhum.
Ah, mas o Guterres teve média de 19 no IST! Pois teve, mas eu não encontrei no estatuto nenhuma provisão que assegura aos alunos com média de licenciatura elevada um lugar de professores convidados na universidade onde se licenciaram. Aliás, se alguém conhecer ou conseguir encontrar essa provisão na lei, gostava que me informasse se a média de 17 é suficiente para também assegurar um lugar de professor no IST? É para um amigo.
Ah, mas o Guterres é de esquerda! Pois é, e nesta explicação eu já acredito. Recrutar para professor convidado um ex-primeiro ministro socialista é louvável, mas recrutar um ex-primeiro ministro não socialista é execrável e merece um movimento a exigir a expulsão do professor.
O saneamento exigido é, pois, político.
E, sendo político, não consegui que deixasse de me fazer recordar o saneamento do ensino oficial do cantor José Afonso antes do 25 de Abril de 1974. Cada matilha inspira-se naquela em que gosta de se inspirar, e esta gosta de calçar as botas do Estado Novo, ou gostaria, se tivesse mais meios para o fazer do que o voluntarismo de alguns militares de Abril já enferrujados que não é acompanhado pelo dos 800 homens que eles precisavam que os seguissem para derrubarem o regime e, no que nos interessa agora, sanearem o Pedro Passos Coelho.
E, recordado, andei à procura de testemunhos históricos desse saneamento, e encontrei alguns de ex-alunos sobre a experiência de o terem tido como professor. Para não correr o risco de os encontrar tendenciosos evitei procurá-los no mural da actriz e internauta Maria Vieira, e acabei por encontrar este no insuspeito e objectivo esquerda.net de uma antiga aluna que registou no seu diário a primeira aula dele no Liceu Nacional de Setúbal a 4 de Outubro de 1967 a uma turma do sétimo ano do liceu. Passo a transcrever.
" - Vocês são o 7º A, não são? Desculpem o atraso mas enganei-me e fui parar a outra sala. Não faz mal. Se vocês chegarem atrasados também não vos vou chatear.
Depois das primeiras palavras, sentou-se na secretária, abriu o livro de ponto, rabiscou o que tinha a escrever e ficou uns cinco minutos, em silêncio, a olhar o pátio vazio, através das janelas da sala, impecavelmente limpas.
- Bem, eu sou o vosso novo professor de Organização Política, mas devo dizer-vos que não percebo nada disto. Vocês já deram isto o ano passado, não foi? Então sabem, de certeza, mais que eu.
Gargalhada geral.
- Podem rir porque é verdade. Eu não percebo nada disto, as minhas disciplinas, aquelas em que me formei, são História e Filosofia, não tenho culpa que me tivessem posto aqui, tipo castigo, para dar uma matéria que não conheço, nem me interessa. Podia estudar para vir aqui desbobinar, tipo papagaio, mas não estou para isso. Não entro em palhaçadas.
Voltámos a rir, numa sonora gargalhada, tipo coro afinado, mas ele ficou impávido e sereno. Continuava a mostrar um semblante discreto, calmo, simpático.
- Pois é, não vou sobrecarregar a minha massa cinzenta com coisas absolutamente inúteis e falsas. Tudo isto é uma fantochada sem interesse. Não vou perder um minuto do meu estudo com esta porcaria. ".
Espero não escandalizar os que vêem no José Afonso um homem santo, mas tenho algumas dúvidas sobre a qualidade desta pedagogia, e admito que mesmo numa democracia madura, como vai sendo a nossa, ela pudesse ser suficiente para os pais reclamarem à instâncias próprias e para se ponderar o afastamento do professor?
Uma das conclusões possíveis de retirar disto tudo é que a exigência do saneamento do Pedro Passos Coelho tem motivações aparentemente académicas mas também podem ser políticas, e o saneamento do José Afonso teve motivações aparentemente políticas mas também podiam ser académicas.
E a credibilidade do artigo, quem mediu? Foi a “prestigiada revista académica”? Foram as 20 páginas? Foi o mês que demorou a escrever? Foram os 10 anos que demorou a “investigar”? E o que é que esses números, e sobretudo essas unidades, dizem do interesse “científico”? Zero.
Mas o resto diz quase tudo. O mais intrigante é que a senhora vem para o facebook explicar como se constrói hoje em dia o “prestígio” de quem calha, exibindo, sem se aperceber, o seu próprio exemplo. Só não nos contou como é que estes “cientistas” combinam citar-se uns aos outros, para ficarmos com a descrição completa e toda a gente perceber, sem faltar nenhum detalhe, porque é que a nossa “academia” está infestada de Raquéis Varela.
Movida pelo aconselhamento de "conteúdos" do facebook, alterei o curso do meu serão e fui direita à "RTP i" para ouvir falar "um jovem". Chama-se João Marecos, preside aos estudantes, e discursou na cerimónia comemorativa da fusão da Universidade Clássica com a Universidade Técnica de Lisboa.
Cinco minutos foram suficientes para se aliviar de uma série de inconfidências sobre os "sonhos" (sem vestígio de originalidade) dos colegas que representa (e em nome dos quais falou). Por uma questão de rigor científico, presumo que tenha dormido com a quantidade de colegas, de ambos os sexos, suficiente para que o universo estudado possa considerar-se significativo. Se o não fez, já estamos perante o primeiro barrete.
Esse intervalo de tempo chegou também para citar Sophia de Mello Breyner, Vergílio Ferreira, e Manuel Alegre. Só me ficou uma dúvida: falará francês?
Deduzo, ao contrário de Maria Flor Pedroso, que o jovem não gosta de literatura. É legítimo. Mas se em lugar de literatura João Marecos gosta dos autores que mencionei, vejo ali uma espécie de Sampaiozinho da Nóvoa e não dou o meu tempo por bem empregue.
Já devia ter aprendido. Os jovens com idade inferior a (vá lá, não exageremos) 30 anos deviam ser defendidos de falar em público.
Portanto passo. Este rapaz vai direito à reitoria, não precisa da minha ajuda. Estou certa que saberá empregar os anos de universidade para aprender o que lhe falta sobre a arte da intriga. De resto tem bom aspecto, serve para decorar uma sala.
No meu 6º ano de Liceu (hoje 10º, se não me engano) tirei notas más no primeiro, e horríveis no segundo, período. Tinha com meu Pai uma relação que caridosamente posso descrever como de alguma acrimónia. E este intimou-me, por escrito, a justificar, até às tantas horas do dia xis, o desastre dos resultados.
Respondi, também por escrito, em termos que não recordo senão vagamente. Mas no meio do desfiar capcioso das minhas razões adiantei, a respeito da disciplina de História, que precisava, para passar, apenas de um 12; e que, se estudasse para 10, a professora "não hesitaria" em dar-me o 12.
Num papel que guardo religiosamente, meu Pai informou-me, no seu cursivo de grossos e finos, que um aluno que, precisando de um 12, estuda para 10, merecia bem um chumbo; e que "só por uma unha negra me não convenceste que, para garantir a passagem do sétimo ano, deverias desde já chumbar a todas as cadeiras do sexto".
Pecados velhos. E vêm a propósito de quê? Ora, disto.
Deus nos livre de ver "o papel do Estado" ser sobretudo "pensado" e "discutido" por "pessoas ligadas à Universidade portuguesa", como gostava Artur SANTOS Silva.
Tenho dúvidas que os nossos académicos saibam distinguir o Norte do Sul. E receio que insistam em dirigir-se a Braga de biquini, e de sotaina à Praia da Oura, obstinados em embaraçar-nos com as figuras tristes que a sua cintilante inteligência nos tem vindo a acostumar.
Pessoalmente, mais depressa gostava de ver "o papel do Estado" pensado e discutido por um cardume de carpas.
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