Quarta-feira, 29 de Maio de 2019

Estado de não-direito

Calhou ouvir na SicN a entrevista do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais sobre a escandaleira de ontem. Os secretários desta pasta são desde há uns anos figuras invariavelmente sinistras, não tanto por uma qualquer inevitabilidade na natureza das funções mas porque no Fisco, mais do que em qualquer outra área, se constata o nível demencial a que chegou a estatização da vida em sociedade, até que ponto se tornou um Estado dentro do Estado, o carácter inquisitorial daquele departamento e, finalmente, a negação, em que hoje vivemos, do Estado de Direito. Negação tão gritante que o cidadão que calha ser apanhado, com boas ou más razões, na teia extorsionária do labirinto fiscal, ou paga se puder ou, se não puder, pode ver a sua vida transformada num inferno.

 

Isto é assim agora; e não era assim no tempo do Estado Novo, que respeitava as formas, a legalidade e a modéstia do Poder em tudo que não pusesse em causa o regime. Por exemplo, o exercício da liberdade de opinião podia pôr em causa o regime, e por isso não era tolerada; a organização corporativa e hierárquica da sociedade implicava um tipo de respeito pelas autoridades que hoje, felizmente, já não é exigido nem exigível; a população, sobre a escolha de quem a pastoreava, não tinha nada a dizer, nem periodicamente nem em momento algum; e as infracções ao perímetro de segurança das instituições, mesmo que apenas potenciais, mesmo que ligeiras, podiam acarretar consequências gravosas para a liberdade e até, em casos extremos, a vida.

 

Com estes caveats, porém, o Estado Novo era, fiscalmente, um estado de direito, coisa que o estado democrático, fiscalmente, não é.

 

Regressando à entrevista do SEAF, o homem (que diabo: precisava de ter uma barba mal amanhada e ser repugnantemente melífluo?) prometeu que estas acções policiais, naqueles termos, não se voltam a realizar; que a iniciativa não tinha sido decidida centralmente; e que vai ser feito um inquérito para saber o que se passou, mas que ninguém será punido porque os funcionários fiscais são inexcedíveis de zelo e dedicação. E não ficou claro, mas poderia ter ficado se os jornalistas não fossem canhestros, que a verdadeira razão porque o atropelo foi suspenso foi o clamor nas redes sociais; e qual o destino dos quatro autuados (dois, parece, por dívidas no âmbito da SCUTs ou lá o que é) que tiveram o azar de passar naquela rotunda à hora em que lá estavam os 20 (!) elementos da AT e os 10 (!) da GNR.

 

Sobre o abuso de a GNR mandar parar cidadãos não por qualquer razão ligada a segurança rodoviária ou por suspeita plausível da prática de crimes disse nada, como se a polícia tivesse o direito de genericamente imobilizar cidadãos para apurar se devem alguma coisa; sobre a penhora de veículos para pagamento de dívidas de valor substancialmente inferior moita carrasco, decerto por achar que o Estado não quer realmente os veículos, quer é exercer coacção, e portanto vale tudo; sobre a necessidade de as relações entre a autoridade tributária (a mudança de nome de Direcção-Geral das Contribuições e Impostos para Autoridade Tributária já indiciou o pendor autoritário que esta gente alberga na cabeça) se regularem pela lei e não pelo arbítrio e inspiração de um qualquer poder central, silêncio; e sobre o nº 3 do artº 268º da Constituição, decerto o senhor SEAF acha que a Constituição só poderia ter entrado em vigor se tivesse sido transcrita numa circular aos serviços que ele, ou os antecessores, tivesse assinado.

 

Sucede que a indignação que, como um rastilho, se espalhou nas redes, não tem razão de ser: já agora, e desde há muito, o Fisco (e não apenas o Fisco, também a Segurança Social) vai às contas bancárias, sem aviso porque se houvesse encontrava a conta desnatada, e pilha-as. E não adianta provar ao banco que a dívida (aliás, com frequência, imaginária, como se prova com a quantidade de vezes que o Estado perde em impugnações) está paga, tem que ser a autoridade a, com majestade e vagar, levantar o interdito.

 

Se levantar. Porque, quer a dívida exista, quer não exista, para a impugnar é preciso pagar ou apresentar garantias.

 

Isto é extraordinário: o cidadão ou a empresa acusados de serem caloteiros têm, primeiro, que pagar, dado que as garantias nem sempre existem ou, existindo, têm custos associados. Se tiverem meios para ir a tribunal (se não tiverem são pura e simplesmente esbulhados), e garantias para apresentar, nem sabem nem é possível saber quando e se obterão ganho de causa, o que leva anos. E, se obtiverem, têm ainda a via dolorosa de executar a sentença contra o mesmo Estado que não dá meios aos tribunais fiscais, daí os atrasos, e incentiva com prémios os seus funcionários a levantarem “autos de notícia” com ou sem fundamento são, e com frequência baseados em presunções delirantes. Todos, secretários de Estado, directores-gerais, inspectores, se felicitam ou são felicitados pelo resultado, medido pela quantidade de multas e volume das exacções. E o cidadão, que ignora isto, acorda espavorido com uma operação STOP numa rotunda em Valongo, como se o que lá se faz tenha alguma diferença, salvo ser na via pública, em relação ao que a AT faz todos os dias.

 

Quando o cidadão ou a empresa (e uma empresa são também cidadãos, coligados para um fim) são impedidos de se defender e perdem a fazenda, o caso é muito menos grave que a liberdade ou a vida. Mas é uma diferença de grau, não de essência: em ambos os casos as pessoas concretas que ocupam os lugares de comando político no Estado estão a defender os seus lugares, que ocupam ilegitimamente quando não são eleitos e que ocupam com duvidosa legitimidade quando, sendo eleitos, compram votos com distribuição de benefícios obtidos por pilhagem.

 

Estes abusos operam-se sob o piedoso mote de “combate à evasão fiscal” e o SEAF, na entrevista acima referida, não deixou de repetir o mantra, falsíssimo, de que se houver quem não pague os outros pagam mais, quando o que a experiência mostra é que pague quem pagar o que pagar, o Estado gasta sempre tudo, e mais; e insinuando que, se o Estado diz que o cidadão deve, então é porque deve, sem mais.

 

A força desta ideia, isto é, de que não há limites para o tal combate e em nome dele se podem atropelar todos os direitos, criar uma legislação impenetrável e volúvel, bafejar com estatuto de excepção os funcionários, e inverter o ónus da prova sempre que um deles, mesmo incompetente, mesmo ignorante do direito aplicável, mesmo sabendo de contabilidade apenas rudimentos, se lembre de inventar ilícitos, com a tranquila certeza de que, se uns anos volvidos o tribunal vier a dar razão ao ofendido, nem os prémios que tiver empochado serão restituídos nem o prestígio que tiver angariado junto das chefias sairá beliscado.

 

E o abismo em que, em nome da inveja e do ódio ao rico, já caímos, é tão fundo que até mesmo o meu partido, que a um tempo se considerou a si mesmo o partido dos contribuintes, nomeou para SEAF um militante que não reverteu um único dos abusos e criou um prémio de automóveis a sortear entre os contribuintes que se prestassem a ser fiscais civis do Fisco. Baldado esforço: não ganhou o respeito da esquerda por isso e perdeu o deste militante. Não devo ter sido o único.

 

O Estado Português não é fiscalmente legítimo, e quem lhe subscreve os processos merece o desprezo das pessoas de bem. O cidadão comum, claro, não acha isto, porque julga que beneficia. Até ao dia em que descobre que o socialismo é insaciável: tira aos outros para nos dar a nós até ao dia em que é à nossa porta que vem bater.

publicado por José Meireles Graça às 13:35
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