Dizem os teóricos da ciência financeira, que os teóricos da ciência financeira, gente circunspecta que vive imersa em números, por vezes encontram modos de escapar à aridez dos números recorrendo à ironia e ao humor sem sacrificar a objectividade que os obriga, que as melhores e mais precisas previsões antecipados da evolução da economia americana são as dos cantoneiros de Manhattan, que vêem no lixo que recolhem se há tendencialmente mais predominância de garrafas de champanhe ou de latas de salsichas.
Outros dizem que a melhor aferição da confiança que o mundo deposita num país e na qualidade e seriedade das suas instituições, nomeadamente o governo, que tende a ser uma instituição determinante para a sua prosperidade ou empobrecimento, é dada pelos juros da dívida pública desse país, ou seja, quanto é que os aforradores exigem para lhe confiarem as suas poupanças na expectativa de as verem remuneradas e, no fim do prazo contratado, reembolsadas. E quem diz juros, que só são determinados umas poucas de vezes por ano quando há emissões de dívida no mercado primário, diz yields, que são os juros implícitos no preço a que os títulos de dívida são diariamente transaccionados no mercado secundário.
Não tendo acesso às previsões dos cantoneiros de Lisboa, que a Frente Comum não as divulga, temo-lo no entanto às bases de dados da Bloomberg sobre os yields da dívida pública portuguesa. Qual foi então a apreciação que o mundo fez da qualidade e seriedade do governo de Portugal em 2016?
Apesar de ter dado o melhor de si em 2016, o governo português não conseguiu elevar os juros da dívida pública sustentadamente até ao patamar acima dos 4%, marca mítica que só foi ultrapassada num dia singelo, o dia 11 de Fevereiro. Mesmo assim, são de louvar o esforço investido e os resultados conseguidos, um aumento de 50%, de 2,5% para 3,75%, quando a vizinha Espanha, no mesmo período, se ficou por uma mísera redução de 25%, de 1,8% para 1,3%.
Sem um governo que os fizesse aumentar assim, quem daria ouvidos aos bloquistas, comunistas e outros profetas da insustentabilidade e necessidade de renegociação da dívida, ou por formação ética e cívica meros defensores do calote? Só por si, o aumento constituiu um excelente motivo para o apoio parlamentar entusiástico que lhe concederam, só perturbado por pequenos amuos encenados para os seus mini-eleitorados não perderam a fé nas suas qualidades revolucionárias anti-capitalistas, anti-sistema e, como não podia deixar de ser, anti-dívida.
Já o ano de 2017, quando o governo se vir forçado a, juntamente com os rendimentos devolvidos, começar a pagar aos fornecedores do SNS e a injectar dinheiro na CGD, anuncia-se promissor e, em havendo boa vontade, o céu é o limite. Apertem os cintos e bom ano!
Os yields da dívida no mercado secundário não são os juros exigidos pelos credores a quem deve, os juros devidos pelos devedores são os que são contratados para cada título quando é emitido, em conjunto com os prazos para os pagamentos de juros e o reembolso do capital.
Quando alguém disse "Os juros exigidos à Grécia já vão em 94,59% (!) nas obrigações a um ano. É mais que usura, é terrorismo financeiro", mesmo que tenha sido um grande poeta do Porto, limitou-se a dizer uma asneira resultante de uma conjunção de activismo político, tremendismo discursivo e ignorância financeira. Que os yields da dívida grega tenham atingido valores próximos dos 100% significa, não que alguém exigiu juros de 100% à Grécia para lhe emprestar dinheiro, mas que houve credores de dívida grega que, com medo que os seus títulos de dívida não viessem a ser reembolsados, se desfizeram deles a metade do preço para outros investidores que, se eles viessem a ser reembolsados, obteriam um lucro de 100% neste investimento. E mesmo estes também acabaram por perder dinheiro nos sucessivos haircuts, eufemismo de calotes, a que a dívida grega foi sujeita. Mas eu não estou aqui para chorar a sorte de investidores com gosto pelo alto risco e altas perspectivas de retorno que perderam o que investiram, adiante.
O yield é, pois, a rendibilidade que um comprador de um título de dívida na bolsa, ou mercado secundário, espera obter do seu investimento, dados os pagamentos de juros e capital que esse título lhe deve expectavelmente proporcionar, e o preço a que o compra.
A ligação entre os yields e as taxas de juro decorre de os yields informarem o mercado do nível de rendibilidade que os investidores estão a exigir para comprar esses títulos de dívida no mercado secundário, e quando se fazem emissões de um novo título semelhante no mercado primário os seus tomadores tenderem a exigir taxas de juro de nível semelhante ao yield no momento da emissão.
E, fechada esta introdução demasiado maçuda e hermética para os leigos, demasiado ligeira e imprecisa para os conhecedores, e na medida certa para os que a saltaram directamente para o parágrafo seguinte, passo ao assunto do dia.
Que contributo dá cada governo para a factura de juros da dívida pública que os contribuintes, que são eles e não os governos a pagá-los, pagam?
A contabilização dos juros pagos ao longo do tempo de exercício de funções de um governo não é uma medida deste contributo, porque um governo paga, a não ser que dure muitas décadas, como os dos irmãos Castro, ou, em menor medida, os do Salazar, esmagadoramente juros de emissões de dívida contraídas dos governos que o precederam. Paga essencialmente juros de dívida emitida a 5, 10, 30 anos, por governos anteriores, e também começa a pagar ao fim de algum tempo os de dívida emitida por ele próprio, que quando cessar funções lega aos governos seguintes. A despesa de juros de um governo não serve para aferir o contributo desse governo para a despesa de juros.
Os yields só influenciam, nem sequer determinam, a taxa de juro de uma nova emissão de dívida. Se hoje houver uma emissão de títulos a 10 anos e o yield dos títulos a 10 anos estiver a x% há uma alta probabilidade de a taxa de juro da emissão ficar muito próxima dos x%. Mas se o yield se mantivesse estável daqui para a frente, se as expectativas dos investidores e a avaliação que fazem da confiabilidade do governo emitente se mantivessem estáveis, as emissões futuras também teriam que pagar juros semelhantes e, eventualmente, toda a dívida hoje existente a diferentes taxas de juro acabaria por ser reembolsada e substituída por nova dívida toda emitida à mesma taxa de x%.
Em determinado momento, a despesa de juros potencial depende do montante em dívida e do yield, que tendencialmente pode vir a ser a taxa de juro futura para toda a dívida.
E ultrapassada mais esta parte demasiado maçuda e hermética para os leigos, demasiado ligeira e imprecisa para os conhecedores, e na medida certa para os que a saltaram directamente para o parágrafo seguinte, passo mesmo ao assunto do dia.
O governo socialista do José Sócrates legou ao governo seguinte no dia 21 de Junho de 2011 uma dívida de 172.393 milhões de euros e um yield de 11,3% para os títulos de dívida pública portuguesa a prazo de 10 anos. A prazo, se este yield perdurasse, toda a dívida pública seria renovada por dívida emitida à taxa de juro de 11,3%, e a factura de juros anual ascenderia a 19.600 milhões de euros, cerca de 11,1% do PIB.
O governo de coligação PSD/CDS do Pedro Passos Coelho legou ao governo seguinte no dia 26 de Novembro de 2015 uma dívida de 231.598 milhões de euros e um yield de 2,33% para os títulos de dívida pública portuguesa a prazo de 10 anos. A prazo, se este yield perdurasse, toda a dívida pública seria renovada por dívida emitida à taxa de juro de 2,33%, e a factura de juros anual ascenderia a 5.400 milhões de euros, cerca de 3% do PIB. Em pouco mais de quatro anos, este governo reduziu a factura de juros potencial em 14.200 milhões de euros, cerca de 7,9% do PIB.
E o governo actual do António Costa? No final de Setembro de 2016 a dívida pública ascendia a 244.420 milhões de euros, e o yield para os títulos de dívida pública portuguesa a prazo de 10 anos a 3,33% (entretanto já aumentou). A factura anual potencial de juros passou para 8.100 milhões de euros, representando cerca de 4,45% do PIB. Em dez meses, a factura anual potencial de juros aumentou 2.700 milhões de euros, ou 1,5% do PIB.
Boas notícias para os credores. Más para os contribuintes. E péssimas para os apoiantes do governo que vivem numa berraria pegada contra o peso da dívida mas apoiam justamente o governo que o faz engordar. O que não é líquido que consigam perceber.
O primeiro ministro António Costa disse ontem que caçar Pokemons é mais fácil do que encontrar o Diabo.
Aqui no Gremlin Literário decidimos acolher a boa sugestão de caçar Pokemons, que, além de momentos de convívio divertido, ainda nos permite obter alguma informação sobre o mundo que nos rodeia.
Um dos nossos Pokemons favoritos, porque raramente nos desaponta com surpresas, é a evolução nos últimos 12 meses dos yields das dívidas públicas portuguesa e espanhola a prazos de 10 anos. Vamos então caçar este Pokemon no site da Bloomberg?
Já está caçado!
O que é que nos diz então este Pokemon? Que, até às eleições de 4 de Outubro de 2015, os yields tiveram uma evolução quase idêntica, tendo começado a divergir depois das eleições, e a divergir fortemente depois da tomada de posse do governo actual no final de Novembro. Ao longo destes 12 meses, os yields da dívida portuguesa aumentaram 23% e os da espanhola reduziram-se para metade.
Porque é que é útil recorrer a uma comparação? Porque a comparação neutraliza as variações derivadas da evolução do contexto político e económico internacional, que afectam tanto um país como o outro, e compara o modo como dois países foram afectados pelo mesmo contexto. Mostra, nomeadamente, o que aconteceu à dívida de um país que se virou para o socialismo e, com isso, virou a página da austeridade e decidiu apostar no crescimento, ou cujo governo e partidos que o sustentam conseguem dizer isto sem se rebolarem a rir, e o que aconteceu à de outro que mantém no governo os mesmos austeritários de sempre, não obstante as diligências dos socialistas, bloquistas e comunistas locais para correrem com eles.
Foi uma noite de caça produtiva, e acho que os nossos leitores merecem um bonus, e estava mesmo capaz de ainda me afoitar a mais um Pokemon. O que é que dizem à evolução dos yields da dívida portuguesa nos últimos 5 anos? Embora lá!
Foi canja!
Este Pokemon diz-nos que o governo anterior encontrou yields superiores a 10% quando sucedeu ao governo socialista do José Sócrates, e legou ao governo socialista actual yields de 2,3% no final de Novembro de 2015, que este governo tratou de fazer crescer até aos 3,3% de ontem. O governo anterior demorou 4,5 anos a reduzir os yields em 8%, a este bastaram-lhe 9 meses para os aumentar 1%.
O problema aqui é que foi, de facto, fácil caçar Pokemons, mas também podemos ter encontrado o Diabo. Mais valia ter deixado ficar quieto!
Blogs
Adeptos da Concorrência Imperfeita
Com jornalismo assim, quem precisa de censura?
DêDêTê (Desconfia dele também...)
Momentos económicos... e não só
O MacGuffin (aka Contra a Corrente)
Os Três Dês do Acordo Ortográfico
Leituras
Ambrose Evans-Pritchard (The Telegraph)
Rodrigo Gurgel (até 4 Fev. 2015)
Jornais