Quarta-feira, 2 de Setembro de 2015

Tahrir e outras praças

A segunda metade do séc. XX foi, entre outras coisas, o tempo da descolonização. Não é que não tivesse havido descolonizações antes: no séc. XIX a Espanha e Portugal já haviam visto a independência de uma quantidade de países na América do Sul; a seguir à Grande Guerra os impérios germânico, austro-húngaro e otomano esfrangalharam-se; e no XVIII os Estados Unidos (ou o embrião deles) haviam-se tornado independentes da Grã-Bretanha, embora os habitantes originários da terra não tivessem tido uma palavra de relevo a dizer, ocupados que estavam a evitar o extermínio pelos colonos - o double standard americano não é uma invenção recente.

 

Mas descolonização militante, com largos sectores da opinião pública do país colonizador a protestarem a favor da independência das colónias, isso sim é uma invenção moderna, soprada pelo fim da Segunda Guerra Mundial e a sua sucessão pela Guerra Fria, bem como pela emergência do Terceiro Mundo com as suas minúsculas elites quase sempre educadas no país colonizador e ansiosas por substituírem os antigos patrões pelas suas generosas, patrióticas e com frequência marxistas luzes.

 

A descolonização, como a colonização, foi uma história quase sempre infeliz. E é apenas esta a generalização que é possível fazer, porque cada país é um caso, e um caso triste à maneira de cada qual, e raramente de sucesso - o subcontinente indiano é berço de civilizações e religiões muito mais antigas que as britânicas, e aí se enxertaram instituições que deram origem pelo menos a uma democracia funcional. Mas isto nada tem que ver, por exemplo, com o Congo Belga, local de uma experiência colonial selvática levada a cabo pelo simpático Leopoldo II; nem com nenhum dos outros países da África subsariana, com excepção da África do Sul, ou, já agora, da Líbia ou qualquer dos antigos protectorados britânicos e franceses no Oriente Médio.

 

Quer dizer que um mínimo de honestidade intelectual deveria fazer-nos reflectir que muitos países chegaram à independência cedo de mais. E mesmo que, como era o caso, fosse inútil para o colonizador lúcido cuspir contra os ventos da História, envolvendo-se em guerras inúteis - como fizeram os franceses na Argélia e nós na África portuguesa, por exemplo - pode concluir-se que a opinião pública não é o melhor conselheiro para compreender processos históricos. E se os bons sentimentos anti-coloniais induziram em erro tanto estadista, o que os de hoje pensam não nos deve impressionar excessivamente.

 

Cada caso é um caso, e assim a segunda lição a tirar das guerras e tensões tribais, religiosas e políticas na Líbia ou na Síria, e em parte do mundo árabe e muçulmano, e das migrações que todas estas convulsões estão a originar, é que não é possível delinear qualquer política que não resulte em desastre sem um conhecimento histórico rigoroso - o conhecimento que faltou ao cowboy Bush filho, e falta a frei Obama, campeão dos bons sentimentos e das sonoridades para o noticiário das 8. Senão, um teria pensado duas vezes antes de derrubar o carniceiro Saddam, e o outro três vezes antes de libertar os demónios que o coronel de opereta Kadhafi mantinha aferrolhados.

 

O que acha a opinião pública, ou parte dela, vale ainda menos: foi ontem que a imprensa estava pejada de discursos líricos sobre a Primavera Árabe. Mas na Tunísia, Egipto, Argélia, Líbia, Iémen e Síria nada mudou nos melhores casos; e, nos piores, originaram-se essas vagas de migrantes uns, refugiados outros, que hoje chegam à costa norte do Mediterrâneo ou às portas da fortaleza Europa, desnorteando políticos avassalados pela dimensão do problema e ansiosos por que os seus eleitorados lhes deem pistas, e as instituições europeias dinheiro, para saberem como lidar com ele.

 

A chanceler Merkel, com típica eficiência alemã, já escolheu: para este ano 800.000, e entretanto os restantes estados europeus que se despachem: se a Alemanha pode com tantos, decerto os outros, na medida da sua economia e população, hão-de poder, no conjunto, com bastante mais.

 

Estamos a falar de refugiados e das leis que regulam o apoio que, por razões humanitárias, lhes deve ser dado.

 

Mas sobre como se distingue um refugiado de um emigrante não tenho lido nada; e sobre a forma como, na origem, se pode estancar estes incessantes fluxos (os 800.000 serão um incentivo a muitos mais), ainda menos. E, sem isto, a mesma opinião pública que hoje se indigna com as imagens dos naufrágios e do tráfico indigno de seres humanos pelas mais odiosas formas, amanhã deixará o seu natural egoísmo vir ao de cima quando comunidades estranhas e inassimiláveis entrarem em fatal competição pelos recursos públicos, e tentarem impôr as suas crenças, práticas sociais e costumes arcaicos a sociedades que não compreendem, nem aceitam, e em relação às quais têm um surdo e atávico ressentimento.

 

É que não é a mesma coisa chegarem refugiados destes à Jordânia, ou mesmo à Turquia ou aos emiratos, e ao Reino Unido, Alemanha, França ou Suécia - num caso o problema é sobretudo económico, no outro será sobretudo social.

 

O cálculo de Merkel - a economia alemã precisa de um influxo de trabalhadores e, historicamente, as emigrações massivas costumam beneficiar a prazo os países de destino - sairá furado, na Alemanha e no resto da Europa, porque um corpo velho e emagrecido precisa de sangue novo e gordura - não de um tumor.

 

Noutras paragens, há quem já há algum tempo defenda soluções que, pelo menos, ajudariam a separar o trigo do joio. E os mesmos americanos que inicialmente apostaram no derrube de Assad, e estiveram na origem da queda de Khadafi, talvez já estejam agora meio convencidos de que afastar ditadores é uma coisa; e garantir que no lugar deles não fiquem inimigos e o caos outra, muito diferente. Quem sabe até se um exército ou outro não poderia ir dar uma mãozinha no terreno, não, desta vez, para escavacar tudo e esperar que no entulho nasça a flor da democracia, do estado de direito e outras frescuras de infiéis, mas para ajudar quem pode pôr ordem na casa, mesmo que seja um filho de puta - porque, se for um pouco nosso, sempre poderemos ter, talvez, alguma coisa a dizer.

 

Precisamos de quem não esteja demasiado tempo ocupado a agradar à opinião pública, de toda a maneira um rameira volúvel, mas antes de quem, no mínimo, tenha a prudência suficiente para não arranjar sarna para se coçar, com perdão da imagem: os bons sentimentos vão, como é sabido, parar ao Inferno; o cinismo, nem sempre.

 

Não consta que haja, nas levas de refugiados, muitos egípcios. Há por aí alguém que saiba dizer, exactamente, de que forma é que o general Sisi é melhor do que Mubarak, que a praça Tahrir derrubou?

 

É igual. Ainda bem.

publicado por José Meireles Graça às 01:36
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3 comentários:
De José Meireles Graça a 2 de Setembro de 2015 às 23:11
Se for assim, espero que te sintas bem de burqa.
De Rosário Coimbra a 3 de Setembro de 2015 às 10:09
Estou convencida de que a Europa e os seus líderes saberão estabelecer os necessários consensos sobre as divergências culturais. Vejo o TC, por exemplo, a estabelecer que a burqa deve obrigatoriamente ser adoptada pelo sexo masculino - claro, em honra ao princípio da igualdade.

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