Acho - a sério que acho - a maior parte dos meus concidadãos um bom feixe de totós: qualquer óbvio parlapatão, como Sócrates ou Costa, para referir apenas dois dos mais recentes, lhes come as papas na cabeça, um e outro apoiados contra ventos, marés e a evidência, até ao ponto em que a porca realidade bate à porta, o que sucederá também com a segunda destas personagens; caso em que mudam de cavalo, em geral para um tipo dito de direita que vai colar os cacos, após o que regressa outro socialista que embrulha a mesma velha receita numa nova girândola de promessas e facilidades.
Quando, volta e meia, a direita chega ao poder, faz o que pode para não hostilizar nenhum grupo dos que quarenta anos de democracia dependuraram no Estado, ao mesmo tempo que introduz um módico de racionalidade nas contas. Receita infalível para nem as equilibrar duradouramente, nem segurar o eleitorado, nem introduzir qualquer dinâmica permanente de crescimento económico: porque o que faz, no esforço impossível de conservar o Estado Social como o desenharam os seus numerosos pais, é aumentar os impostos dos ricos (na realidade a classe média, que ricos verdadeiros já não há nem em quantidade nem em volume) e fazer cortes - poucos e a eito, que distribuindo-os pelo maior número impactam menos.
As coisas pareceram diferentes nos consulados cavaquistas, que ao mesmo tempo deram a impressão de enterrar o PREC, promover o crescimento, expandir o Estado e afastar os demónios da esquerdização do país - um milagre que a cornucópia dos milhões da CEE e um módico de realismo na gestão do erário público, depois de mais de dez anos de loucura, engendraram.
Depois veio o Euro. E como nada mudou profundamente nem nas convicções do eleitorado, nem nas práticas de governo, nem nas clientelas e dependentes do Estado, e a tudo se somou o crédito fácil porque a dívida externa havia deixado de ser, na esclarecida opinião de, entre muitos outros, o celebrado Vítor Constâncio, um problema, aterramos na falência de 2011 - que só não teve lugar mais cedo porque as instâncias europeias estavam elas próprias, como ainda estão hoje, enxundiadas de constâncios de vária forma e feitio.
O país ficou desde então esquizofrénico: de um lado a esquerda comunista, a genuína e a do facelift, a primeira a defender a saída do Euro, sempre sem explicar de que forma é que o país se financiaria depois, decerto porque tem uma solução à la Ceausescu, e a segunda a dizer umas coisas ternas que implicam que os países credores passem a ser governados por gente da estirpe de frei Anacleto; no meio, a esquerda socialista a defender precisamente as mesmas políticas que conduziram ao desastre, numa versão mais palatável para os credores, e confiante em que os países do Sul acabem por impôr ao Norte a política do gaste agora e pague num dos próximos séculos; e do outro a direita, confiante em que as instâncias europeias exijam ao eleitorado português o juízo que este não tem, porque o dinheiro é deles, e nosso é apenas um modo de vida que não temos meios para sustentar.
É neste caldo que cai a notícia do Brexit. E, pelas razões erradas, uns se confessam a favor e outros contra. Isto na opinião publicada, que a pública está naturalmente preocupada com as verdadeiras condições físicas de Moutinho, o estado de espírito de Ronaldo e a possibilidade de tirar uma selfie com Marcelo.
A esquerda comunista gosta, oficialmente porque o povo falou e, desta vez, falou bem, na realidade porque a UE capitalista sai enfraquecida e se quebrou o tabu da irreversibilidade da permanência.
A esquerda socialista detesta: o fonds de commerce do PS sempre foi o Serviço Nacional de Saúde, o sistema de pensões, a obra pública, o Estado pletórico, o Euro, o crédito barato, os fundos de coesão, os boys, a retórica (e os proveitos) da Europa Connosco, e a esperança de que um dia nos Estados Unidos da Europa houvesse um mecanismo permanente de transferência dos ricos para os pobres, com o louvável propósito de ficarem estes igualmente ricos e, entretanto, se sustentarem todos estes avanços civilizacionais. Isto para não falar dos prémios de carreira oferecidos pelo Parlamento Europeu a políticos particularmente dotados, dos excelentes lugares que a burocracia reserva a gente empreendedora albardada de diplomas, das numerosas oportunidades de lobbying, e das avenidas abertas por fundos públicos para as mais diversas, e generosas, oportunidades de corrupção e negociatas. O Brexit estraga este suave arranjo, por pôr a nu o facto incontornável de, algures numa Europa unsufferably variada, haver eleitorados que prezam ideias ultrapassadas como quererem responsabilizar os seus eleitos directos pelas decisões que tomam, não admitirem escolhas, tomadas por estrangeiros, que afectem as suas vidas, não aceitarem a prevalência do direito comunitário, quererem ter uma palavra decisiva sobre política externa, acordos comerciais, fiscalidade, banca, tratamento a reservar para imigrantes, comidas e comportamentos, incluindo a capacidade dos autoclismos e a vida de todos os dias - que os técnicos do Estado Central Bruxelense regulam de forma superiormente competente, decerto, mas em obediência ao estúpido princípio de que one size fits all.
O PSD, suposto que haja apenas um (o que é discutível: o de Passos Coelho não é certamente o mesmo partido que o de Manuela Ferreira Leite ou do intelectual Pacheco, o qual pouco terá a ver com o Presidente dos afectos) diverge muito do PS sobre o que fazer na ordem interna, mas no que toca às relações com a UE a divergência reduz-se à escolha do método para espremer a teta europeia: o PSD quer ser um bom aluno e o PS um aluno aldrabão, mas muito temperamental e simpático. No PSD, portanto, o Brexit não caiu bem: não há por lá falta de federalistas, que entendem estarem as instâncias europeias recheadas de cérebros das melhores extracções, que no Parlamento Europeu se reúne a fina flor dos democratas europeus, e que aquela parte, de resto infelizmente crescente, de eleitores xenófobos, retrógrados e reaccionários, em vários países, é apenas uma vaga passageira, assustada com os imigrantes, a globalização e a modernidade, que se pode conter com algumas cedências, à espera que morram ou diminuam - são sobretudo velhos, desempregados, desapossados e gente sem formação.
Uma parte do CDS gostaria de ser independentista, e outra não morre de amores pela Europa socialista, nem por quaisquer socialismos de toda a pinta, mas o país deixou há muito de ter até mesmo aquele pequeno grau de autonomia que podem ter os pequenos países, se não dependerem de credores. E vai por isso mantendo a chama acesa de algum conservadorismo em questões sociais, à espera de melhores dias, almejando no intervalo chegar ao Poder com o recente parceiro, cuja ocasional deriva socialista quer moderar.
Temos então que o país oficial não vê o Brexit com bons olhos. E os meus concidadãos, dos quais falava a princípio? A minha suspeita é que se estão nas tintas: há muito tempo que o reformado se preocupa com a sua pensão, o funcionário público com o seu lugar, o empregado com o seu emprego, o doente com a data da consulta ou da operação, alguns pobres ou ciganos com o RSI, os desempregados com o tempo que falta para acabar o subsídio, os empresários com as empresas, o sem-abrigo com a próxima refeição e todos com o Campeonato Europeu. Intuem confusamente, com razão, que o que conta para o país não se decide cá, que na dúvida é melhor apoiar quem lhes põe alguns euros no bolso, mesmo que poucos, e que entre uma gente sorridente que lhes promete um futuro radioso em que não acreditam e outra sombria que lhes promete sangue, suor e lágrimas já a seguir, mais vale ir pelos primeiros - pode ser que dure. Quando for preciso virar o bico ao prego, cá estarão: ninguém votou no eng.º Sócrates, não é verdade?
Com o que se passa nas Ilhas Britânicas preocupam-se os emigrantes lá, que supõem que o fim da livre circulação de trabalhadores os pode prejudicar. Pode, de facto, se as autoridades locais resolverem auto infligir-se danos. Há sinais disso? Não vejo. E também não vejo que nas negociações de saída não seja possível salvaguardar os interesses dos trabalhadores portugueses - já lá vamos.
Restam aquelas pessoas que se dão ao trabalho de pensar a UE, o nosso país e o futuro. Deixemos de lado os comunistas, e o arco-íris do BE - essa gente não conta, por muito barulho que faça e muito espaço que ocupe na comunicação social: uns comem consabidamente crianças ao pequeno-almoço e outros são uns espécimes suspeitos que nem têm a competência que o eleitor imagina ao PS para gerir o Estado Social nem a do PC para revolucionar. Se a uns acabarem com a chupice dos sindicalistas e a clientela das câmaras do Alentejo e a outros fecharem os cineclubes, as cervejarias, as manifestações gay e contra os toiros de lide - apagam-se.
Deixemos de lado também a gente enfarinhada nos restantes partidos: conquistar e conservar o eleitorado e defender ao mesmo tempo ideias escorreitas é tarefa que em Portugal é ainda menos possível do que noutros lugares: o dr. Medina Carreira andou anos a dizer que o país ia bater na parede, como bateu, e a verberar a classe política por não dizer a verdade, sempre lhe tendo escapado o detalhe óbvio de que, se fosse candidato a alguma coisa, a verdade dele teria ainda menos votos do que os recolhidos pelo seu amigo Henrique Neto nas presidenciais. O que diz a gente dos partidos é o que cada partido acha, em nome da táctica eleitoral, que se deve dizer - e está bem assim porque um partido não é uma associação de suicidas nem um grupo de escuteiros.
Mas a quem não é de esquerda, não papagueia linhas de partidos, e não é federalista, tenho ouvido coisas extraordinárias: que a saída do Reino Unido implica a secessão da Escócia, e talvez do País de Gales; que o Reino Unido, sozinho, perderá influência no mundo; e que foram os velhos, e não os jovens ambiciosos, modernos, aguerridos e desempoeirados, os responsáveis pela vitória do Brexit.
Comecemos pelo fim: a ideia de que os jovens, e nunca os velhos, têm razão, filia-se não sei em que estranha análise sociológica. Acaso foram velhos que levaram o partido Nazi, ou Mussolini, ou os Bolcheviques, ao Poder? Aquele jovem com aspecto de tísico que lidera o Podemos é mais lúcido do que Rajoy, cuja barba está semeada de brancas? E não está entre nós a bancada do BE estrelada com umas jovens, e uns moços, dos quais é legítimo suspeitar que têm, entre as orelhas, uma forte corrente de ar, e não foi sobretudo gente nova urbana que os escolheu?
O Reino Unido foi sempre, nas instâncias europeias, a pain in the ass, e sempre negociou cedências e excepções. Mesmo assim, e para quem não puder com Nigel Farage (um político que em Portugal é tão conhecido, e tão divulgado, como o governador do Delaware, não obstante as suas frequentes intervenções no Parlamento Europeu, o tal que os europeus conhecem e os representa) basta acompanhar Daniel Hannan para perceber as razões de queixa que pode ter quem não tem para com o seu país a mesma atitude de desdém que nós justificadamente temos para com o nosso.
Sobre a influência do Reino Unido no mundo talvez seja útil lembrar que a União Europeia se tem distinguido, precisamente, por não a ter: nenhuma guerra começou ou acabou, dentro e fora da Europa, por causa da UE; assim de repente não sou capaz de dizer como se chama a senhora ministra dos Negócios Estrangeiros da UE, se é que ainda é uma senhora; e nem o problema dos refugiados (os autênticos, não os imigrantes económicos) a UE consegue resolver, porque para a solução das guerras que lhes deram origem a UE contribui com declarações, mas não com o Exército que não tem nem, salvo na cabeça de alguns alucinados, virá a ter.
E não será despiciendo lembrar o que o Reino Unido pode ganhar comercialmente não estando na UE, já que não falta quem enumere o que pode perder. Ver aqui.
Resta a secessão. O argumento segundo o qual seria necessária a unanimidade dos 27 países para admitir na UE uma Escócia independente, e que a Espanha nunca concordará, por causa da Catalunha, é pouco convincente. Uma UE vingativa decerto encontraria formas imaginativas de punir o eleitorado inglês pelo atrevimento, contornando a objecção espanhola. E por isso cabe perguntar: deve a UE ser vingativa, como por esta desastrada iniciativa se percebe, ou pela grotesca ideia de eliminar o inglês das línguas de trabalho (a benefício, supõe-se, do esperanto), ou pelas insolentes declarações de Juncker, o liliputiano apparatchick europeu que já conseguiu o prodígio de fazer Durão Barroso parecer um estadista?
Não, não deve - punir eleitores pelas escolhas democráticas que fazem é coisa que pertence ao destino, se as escolhas forem erradas, não é castigo que uns eleitos (mesmo que o fossem: a legitimidade de Juncker, Tusk e Schultz é uma construção ficcional) possam impôr a outros, porque não existem uns de primeira e outros de segunda: os totós a que me refiro no início deste post são-no de facto, na minha opinião, mas não têm menos legitimidade do que a minha na hora de votar.
A vingança é má conselheira, e é-o mesmo do ponto de vista dos interesses de quem a exerce: a liberdade de circulação de bens, capitais e pessoas (pessoas, entenda-se, originárias e naturais do espaço europeu, e liberdade de circulação, não liberdade de aproveitamento de benefícios sociais), que devia ser a pedra angular da UE, não foi a razão pela qual tantos ingleses votaram pelo Brexit - mas sim o furor legislativo, anti-identitário e supra-nacional. E o acordo de saída a que se vier a chegar deveria assim, pelo menos, não apenas ser semelhante ao que regula as relações com a Noruega ou a Suiça, mas mais europeísta, na medida que o governo inglês o deseje e entenda ser do seu interesse. O argumento segundo o qual os ingleses não podem ter os benefícios do mercado único sem terem os custos é, além de repugnante, estúpido: a liberdade de comércio, bem como quaisquer outras liberdades mutuamente reconhecidas, funciona a benefício das partes.
É porém duvidoso que venha a acontecer: os europeístas foram sempre, como todos os construtores de impérios, uma malta arrogante, fiados na superioridade das suas crenças e na inevitabilidade da realização das suas engenharias de pátrias; ao mesmo tempo que os eurocépticos foram sempre uma tropa prudente, desconfiada de avanços bruscos em nome de ideias redentoras e de terraplanagens de passados históricos, que não existem menos por serem mal conhecidos e mal interpretados.
A ironia triste de tudo isto é que os eurocépticos merecerão, provavelmente, ficar como os verdadeiros europeístas, porque sempre tiveram a ideia de que a Europa que vale a pena tem tantas formas geométricas quantos os graus de harmonização que os países que a integram livremente quiserem; que a liberdade de comércio faz mais pelo entendimento entre os povos do que todos os tratados; e que a interdependência é uma inevitabilidade do acelerar dos meios de comunicação e do progresso tecnológico, não alguma coisa que uns burocratas pagos a peso de ouro possam decidir no silêncio dos gabinetes, presenteando depois os cidadãos com as suas decisões democráticas.
Esta Europa possível, da qual o Reino Unido não se teria evadido, já existiu, e chamava-se CEE. É certo que os “pais fundadores” inscreveram nos tratados a superioridade do direito comunitário, com isso plantando o vírus que destruiria a prazo o edifício. Mas não era inevitável que, sem tanto euro-entusiasta, se tivesse chegado a Maastricht.
Porque Maastricht e o Euro são possivelmente a razão porque o acordo com o Reino Unido não será um bom acordo. Explico: é hoje mais ou menos pacífico que a moeda única implica políticas orçamentais e fiscais unificadas, ou seja, mais integração; a pulsão para essa integração ser extensiva aos países que não estão no Euro será permanente porque não o fazer implica a existência de uma Europa a duas velocidades, uma ideia antipática para o monolitismo da burocracia; um bom acordo com o Reino significa na prática que este ficaria na CEE renascida, 19 no Euro e 8 na UE sem Euro - três europas, portanto. Acresce que o possível sucesso do Brexit sinaliza àqueles que não estão no Euro, e que por isso teriam mais facilidade em sair, que a permanência não será talvez a melhor das escolhas. Isto, por sua vez, reforçaria a convicção de que o Euro é uma espécie de núcleo duro da UE, o que choca com eleitorados crescentemente cépticos e que querem menos, e não mais, integração.
A tentação será assim grande de punir os ingleses, não tanto por eles mas, sobretudo, pelos que ficam, para não lhes dar ideias.
São previsões, hipóteses e lucubrações - a possibilidade de falhar é sempre maior do que a de acertar. De adquirido temos que a face risonha da União Europeia, a versão não-comunista do amanhã cantante, está desfigurada com a falha de um incisivo que caiu, vendo-se agora melhor as cáries que havia lá para trás; que o Euro, uma invenção de economistas patetas e políticos visionários, consegue ser um problema até mesmo para quem nele não participa; e que o cerrar fileiras que a burocracia imperial pode ter a tentação de fazer não deixará de confirmar aos velhos, aos ignorantes, aos retrógrados, aos timoratos, aos xenófobos e a todos que, em vários países, que não o nosso, não são nada disso mas confiam pouco nas ideias que os bem-pensantes propalam, que é sempre possível mudar.
Blogs
Adeptos da Concorrência Imperfeita
Com jornalismo assim, quem precisa de censura?
DêDêTê (Desconfia dele também...)
Momentos económicos... e não só
O MacGuffin (aka Contra a Corrente)
Os Três Dês do Acordo Ortográfico
Leituras
Ambrose Evans-Pritchard (The Telegraph)
Rodrigo Gurgel (até 4 Fev. 2015)
Jornais