Imaginemos que Trump sabia falar um inglês com mais de cinquenta vocábulos, manejar o garfo e a faca em simultâneo, escolher gravatas, alguma coisa de geografia, de história e de literatura; e que desprezava o twitter, que aliás nem era capaz de usar, tinha uma vida profissional exemplar, e não era uma estrela manhosa de talk-shows pirosos mas um construtor civil de sucesso que se tornara conhecido sem todavia o prodigioso mau-gosto, até mesmo para padrões americanos, que o caracteriza.
Pergunta-se: teria ganho as eleições? A meu ver, talvez sim. O eleitor americano não tem, como o português, um excessivo respeito por doutorices, e portanto não adere a paleio que não entende; acha normal que os presidentes se deixem fotografar com os pés em cima da mesa da sala oval, vestidos de cowboys, porque levam a falta de maneiras à conta de simplicidade, e a de toilette à de homenagem à epopeia do faroeste; pode o twitter ter criado a ilusão de o candidato, e agora presidente, ter criado uma espécie de ligação directa ao homem comum, mas esse efeito está longe de provado; as falências e respectivas histórias obscuras nem foram nunca adequadamente contadas por uma comunicação social, de resto inteiramente desacreditada, nem teriam o mesmo significado que na Europa, onde a falência é um estigma, em vez do ritual de passagem que é nos EUA; e os programas televisivos poderiam ser outros onde tivesse ganho notoriedade e a aura de sucesso que é lá, mais do que noutros lugares, a medida da qualidade.
Na realidade, Trump ganhou porque convenceu um número suficiente de americanos que ia conseguir altas taxas de crescimento, diminuir o medo do desemprego e restaurar o elevador social, combater a imigração e a criminalidade e acabar com o enjoativo palavreado modernaço e esquerdista da nata de Washington, da comunicação social e da elite democrata, onde se inclui a (para muitos) corrupta Hillary e respectiva clique de plutocratas.
Na vitória deixei, espero, claro que se fosse americano teria, entre Hillary e Trump, preferido este (lá como cá os meus candidatos não chegam a pesar seriamente no resultado final) sem todavia deixar de prevenir contra a imprevisibilidade do homem e sem ilusões sobre a sua natureza, carácter e incógnitas.
Depois desse momento já o defendi, embaraçado, algumas vezes. Porque não é fácil defender um tipo que sistematicamente se comporta como o clássico elefante na loja de louça, faz declarações públicas via, sobretudo, twitter, onde a imprudência se casa com a contradição, que gere o seu staff como se estivesse ainda no The Apprentice a despedir candidatos a tycoons e, de forma geral, carece por completo de um módico de gravitas que mesmo nos EUA dantes se requeria a estadistas.
Sucede porém que as fake-news são sobretudo originárias de uma comunicação social que esmagadoramente detesta o republicanismo em geral e Trump em particular. Do que significa o viés das notícias sabemos nós alguma coisa, que nos lembramos do que foi o clima de tragédia dos anos da troica e é o do Eldorado noticioso que hoje nos é servido para uma realidade que não é substancialmente diferente, senão por circunstâncias alheias às medidas do Governo.
Já se percebeu que Trump ficará muito aquém do que prometeu. Todos os presidentes ficam, mas este talvez menos que o celebrado Obama, cujos discursos muitíssimo bem escritos, e magistralmente lidos, são o melhor do seu legado, além da quebra do tabu que a sua eleição representou. Num caso portanto como exemplo do olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço; e no outro como prova de que com o conjunto de circunstâncias adequado a sociedade americana já estava madura para aceitar um negro cujo talento para ganhar eleições fosse pelo menos igual ao de um branco com o mesmo perfil. Obama confirmou que um negro é capaz de ser tão medíocre como um branco, como no seu tempo Kennedy provou que ser católico não era um impedimento para ser eleito, e no futuro um Gutierrez ou Li Ping provarão que ser hispânico ou asiático também não.
Obama era, porém, a versão americana de um socialista. E, se tivesse tido mais tempo e mais poderes, teria imposto, por exemplo, o Obamacare, uma espécie de serviço nacional de saúde à americana, que Trump já dinamitou.
Dinamitou, como prometeu, e fez muito bem. Porque os Estados Unidos são a superpotência por antonomásia não por causa das suas riquezas naturais, nem da sua dimensão (factores necessários mas não suficientes), mas por causa das instituições que os pais fundadores legaram e que têm quase miraculosamente sobrevivido, combinadas com um afluxo de imigrantes que chegam e aceitam a língua, o império da Lei, o respeito da propriedade e o salve-se quem puder da economia de mercado sem excessivas peias estatais.
Obama não quer isto. Queria uma Dinamarca, ou Áustria, em ponto grande, mesmo que não conhecesse nenhum dos dois países (para visitar o segundo, aliás, preocupou-se por não saber falar austríaco, encantador detalhe que provou a sua simpática ingenuidade, e que em Trump teria evidenciado a sua espessa ignorância). O famoso Estado Social Europeu poderá ser a conquista civilizacional que o resto do mundo inveja, mas é também uma pedra dependurada ao pescoço da competitividade.
Trump quer um regresso ao passado, que é o que Make America great again significa. Quando a dívida pública não era de mais de 100% do PIB (da qual um terço detida por países estrangeiros), os imigrantes queriam integrar-se e não pulverizar o consenso social em nome do respeito à diferença, dos direitos das minorias e do multiculturalismo, e o país era o maior credor do mundo, tão recentemente como em 1960, enquanto hoje é o maior devedor.
Não vai conseguir, claro: o mundo dos anos 60 não existe, Mao morreu, a URSS implodiu, a Europa, com a sua patética União, todos os anos pesa menos no PIB mundial, a América do Sul já não é exactamente o quintal das traseiras, até a África está a acordar, a tranquilidade da guerra fria com os seus campos perfeitamente definidos esfumou-se há muito, o mundo muçulmano está a transportar para o Ocidente a sua irredutível incompatibilidade connosco, e o progresso tecnológico e a evolução demográfica todos os dias dão sinais de que não sabemos, nem temos maneira de saber, que raio de mundo é que está a nascer.
Trump quer tratar da América, que não quer ser, porque já não pode, o polícia, o pagador, o cliente, do resto do mundo. Vasco Pulido Valente, com característica lucidez, explica o que foi ele dizer a Bruxelas aquando da inauguração do edifício da NATO, e não perdeu um parágrafo para falar das gaffes, das toilettes, dos desencontros com Melania, do twitter, e de todas as outras coisas com que se atafulha a comunicação social, no afã de demonstrar que o homem é irremediavelmente imbecil, e a sua remoção uma imperiosa necessidade para a paz no mundo e a tranquilidade do povo de esquerda universal.
Ontem, a notícia era que os EUA iriam denunciar os Acordos de Paris, e urbi et orbi se gelou de espanto e indignação. Como?! Este carroceiro não leva a sério os avisos da comunidade científica, cuja esmagadora maioria costumava há mais de vinte anos prometer que íamos morrer uns afogados (os que viviam nas terras baixas), outros assados (os restantes), e entretanto afinou os modelos para incluir os levados pelo vento, por causa dos tornados, e os transidos de frio, porque a temperatura aumenta nuns sítios e baixa noutros? E acha que a temperatura média talvez esteja a subir, mas não são convincentes as provas de que seja a nossa actividade que influi significativamente nesse processo, porque a temperatura sempre subiu e baixou, com ou sem queima de combustíveis fósseis e até com e sem homens? Escândalo: devemos criar regras infinitas para atrapalhar as empresas; impostos para orientar comportamentos; subsídios para alimentar universitários dedicados não a descobrir a cura para o cancro, mas a cura para a Terra; e fazer em torno de tudo isto muito barulho, porque o barulho vende jornais e tempo de antena, mas o silêncio não.
E, finalmente, como as alterações climáticas são um cavalo de batalha de esquerda, a que a maioria dos cientistas (mas não na mesma proporção que existe entre os climatologistas) dá cobertura, convém que se perceba que, no clima e no resto, a esquerda é pela ciência; e a direita pelo obscurantismo. Esta chantagem funciona: as pessoas de direita hoje passam a vida a justificar-se, não vão os mandarins da opinião julgar que elas são broncas.
O bronco do Trump está até agora a cumprir o que prometeu: no Obamacare, no orçamento (irrealizável, provavelmente, por excesso de optimismo no crescimento, mas contemplando reduções de impostos), na viagem muitíssimo bem-sucedida à Arábia Saudita, ao Vaticano, a Israel e a Bruxelas, deixando claro em todo o lado que tem um lema que é mais do que retórica: America first.
America first quer dizer os outros depois. E como os outros somos também nós, e uma tal personagem na Europa dificilmente seria eleita senão para presidir a um clube de futebol, vai por toda a parte uma grande indignação.
A indignação não é boa conselheira, nem tem utilidade prática. E àqueles que, como eu, dão ao homem, desde o princípio, o benefício da dúvida e, mais do que julgar, querem entender, será talvez precipitado tachá-los de imbecis trumpistas.
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