A Proposta de Lei para o Orçamento de 2017 tem mais de 250 páginas (a que se somam as do Relatório, mais de 270), redigidas, dada a natureza dos documentos, naquela mistura de juridiquês/economês que serve para disfarçar o facto de os economistas não saberem direito, e os juristas não saberem economia, ficando por explicar por que razão uns e outros não sabem português. Não é que interesse muito: quem lê por obrigação não se apercebe, por ser no geral farinha do mesmo saco dos redactores, da moxinifada que os documentos são; e os cidadãos, do Orçamento, apenas querem saber se a sua pensão vai ser mexida, quando sejam pensionistas, se o ordenado vai subir ou não, sendo funcionários, e se lhe vão bulir no preço do café, do pão, do tabaco ou dos medicamentos, os mesmos e todos os outros.
No mais, vão-se apercebendo, através do fragor da luta partidária, de que aquela coisa excita muito a classe política; que estas ou aquelas categorias de cidadãos são beneficiadas ou prejudicadas; e que tudo isto interessa na realidade muito menos do que o estado de espírito de Jorge Jesus, que pode influenciar a carreira do Sporting no Campeonato, por estes dias fonte de grandes angústias. Os políticos, estes, os anteriores, e os futuros, estão lá é p'ra se encherem.
Que os meus concidadãos só se interessem pela coisa pública na exacta medida em que sejam directamente afectados é matéria que nem por ser natural deixa de causar alguma melancolia; que a maioria deles seja directa ou indirectamente dependente do Estado, e que portanto o Poder do dia não tenha nenhum projecto, nenhuma ideia, nenhuma iniciativa, que não consista em sossegá-los quanto ao presente, mesmo que com isso comprometa o futuro, é da natureza do poder socialista; mas que o descrédito da classe política seja aprofundado deliberadamente pelos governantes de agora, não apenas pelas escandaleiras que se vão sucedendo mas por iniciativas legislativas que garantem a impunidade e portanto o abuso - é intolerável.
Do que se trata? Abaixo transcrevo o art.º 200.º da Proposta (Capítulo XVII, Alterações Legislativas, pág. 214), cuja leitura não recomendo por a interpretação ser mais difícil do que a resolução de um caderno inteiro de problemas de sudoku, no escalão de expert, mas que deixo aqui apenas para que se perceba do que é que se fala quando nos referimos à produção legislativa actual. Sugiro portanto que quem leia o faça em diagonal, saltando para os comentários.
Alteração à Lei n.º 98/97, de 26 de agosto
Os artigos 46.º e 61.º da Lei n.º 98/97, de 26 de agosto, alteradas pelas Leis n.º 87-B/98, de 31 de dezembro, 1/2001, de 4 de janeiro, 55-B/2004, de 30 de dezembro, 48/2006, de 29 de agosto, 35/2007, de 13 de agosto, 3-B/2010, de 28 de abril, 61/2011, de 7 de dezembro, 2/2012, de 6 de janeiro, e 20/2015, de 9 de marco, passam a ter a seguinte redação:
Artigo 46.º
7 - Excluem-se do âmbito de aplicação da alínea b) do n.º 1 as transferências e subsídios concedidos pelas entidades referidas na alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º, no âmbito de Contratos Programa ou de Acordos e ou Contratos de delegação de competências, devendo os respetivos contratos ser remetidos ao Tribunal conjuntamente com as Contas de Gerência, justificando a despesa face ao fim para que foram concedidos.
Artigo 61.º
2 - A responsabilidade prevista no número anterior recai sobre os membros do Governo e os membros do órgão executivo da camara municipal, nos termos e condições fixadas para a responsabilidade civil e criminal no n.ºs 1 e 3 do artigo 36.º do Decreto n.º 22 257, de 25 de fevereiro de 1933.
Comentários
Do que se trata é de isentar de responsabilidade civil e criminal os membros do executivo municipal (uma formulação imprecisa, aliás: os vereadores que não têm pelouros atribuídos fazem parte do executivo mas não têm funções executivas, salvo na parte em que sejam chamados a votar em reunião) nos mesmíssimos termos dos membros do governo que "praticarem, ordenarem, autorizarem ou sancionarem actos referentes à liquidação de receitas, cobranças, pagamentos, concessões, contratos ou quaisquer outros assuntos sempre que deles resulte, ou possa resultar dano para o Estado".
Dito assim, isto parece defensável. Mas um assunto tão grave como a responsabilidade civil e criminal dos eleitos mais próximos dos eleitores é resolvido assim, de contrabando, numa proposta de Lei que nada tem que ver com esta matéria, soterrado numa floresta de artigos e palavreado sobre previsões de receitas e despesas? Por que razão o governo não faz esta proposta de lei separadamente?
Atentemos na redacção: "... e os membros do órgão executivo da câmara municipal..." Ó juristas de uma figa, a câmara municipal é o órgão executivo do Município, donde a formulação correcta seria "os membros da câmara municipal".
O Decreto nº 22 257, de 25 de Fevereiro de 1933 (Fevereiro e não fevereiro, raios vos partam e ao vosso Acordo) assentava, para os então chamados corpos administrativos, no pressuposto de que haveria funcionários competentes para aconselhar as câmaras. E não apenas havia como eram um quadro especial dependente da Direcção-Geral da Administração Política e Civil, os oficiais do Quadro Geral dos Serviços Externos do Ministério do Interior, dos quais o Secretário da Câmara tinha competências próprias, incluindo o poder de bloquear pagamentos que excedessem as dotações orçamentais ou em obediência a deliberações nulas. Há hoje funcionários com estes poderes? Não há, por se entender que os poderes de funcionários não podem nunca sobrepor-se aos dos eleitos, por causa do efeito Mr. Humphrey. Faz algum sentido metê-los em trabalhos?
Depois, as câmaras municipais são agências de empregos para os boys do partido dominante, e os protégés do senhor presidente ou outra figura grada. E isto é assim mesmo, ou sobretudo, naquelas câmaras perdidas na planura alentejana, cujas moscambilhas costumam estar ausentes do noticiário, por os comunistas serem uma gente que sabe fazer as coisas, e que corta as asas a quem pretenda, além de ocupar um emprego inútil, enriquecer por conta própria. É na competência, conhecimentos, independência, e frontalidade dos funcionários que temos de confiar para impedir o presidente e os senhores vereadores de lesarem o interesse público? Ah. E podemos contar com os sindicatos, que o PCP controla, para se rebelarem contra esta responsabilidade agravada dos funcionários? Ah.
Não sei ainda o que disseram, ou vão dizer, os partidos, sobre esta matéria, mas suponho que o PSD e o PCP aprovam, porque têm gigantescas clientelas no “poder local”; que o CDS não, porque não tem; e que o BE dirá qualquer coisa irrelevante porque o BE diz sempre coisas irrelevantes, por muito que uma comunicação social acéfala, e uns eleitores volúveis e com a barba por fazer por causa das borbulhas, ou as axilas por depilar por causa do sexismo, julguem que aquela agremiação conta para alguma coisa.
É assim que estamos: o Tribunal de Contas, de vez em quando, incomodava uns autarcas (horrível palavra que leva itálico em jeito de desculpa por a usar). E, dada a sua lentidão, as câmaras queixavam-se (por certo, bastas vezes, com razão) de que o Tribunal funcionava como uma força de bloqueio.
Reforma-se o Tribunal? Dá-se-lhe meios? Não, que ideia. Dá-se poder aos sobas locais para comprar clientelas e votos. Como as eleições locais estão aí à porta, pode dizer-se que o art.º 200.º, além das suas outras qualidades, é oportuno.
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