Aqui já bastante recuado, alguém cuja identidade não revelo para preservar a privacidade das personagens envolvidas estava por esta altura do ano na sala de jantar com o irmão a ouvir a mãe a lamentar "ainda não comprei a prenda para a Dona verdadeiro nome omitido para não lhe violar a privacidade, chamemos-lhe Vizinha, apesar de naquela prédio se chamarem as vizinhas pelo nome e não por vizinha, e desde que começou a aprender pintura agora oferece-me sempre uma prenda feita por ela, e eu tenho que retribuir". O irmão dessa pessoa, e isto foi uma sugestão na brincadeira, porque a vizinha era, e continua a ser porque felizmente ainda está viva, uma verdadeira jóia de pessoa a quem todos queriam e querem como se fosse da família, pegou num copo pintado por ela que ela tinha oferecido no Natal anterior e disse "Podias-lhe dar isto. Dizias-lhe que gostaste tanto, que foste comprar um igual para lhe oferecer". O problema acabou por ser resolvido de outra maneira e a mãe deles acabou por comprar mesmo uma prenda do bolso dela para dar à Dona Vizinha.
Não sei se o nosso primeiro ministro António Costa alguma vez ouviu esta história e, com a fineza de espírito que lhe é própria, não percebeu a ironia da sugestão, ou se é apenas um aldrabão que dá espontaneamente prendas de Natal compradas com o dinheiro dos outros? Mas, era uma vez, este Natal...
Este Natal, o António Costa e o seu padrinho de casamento decidiram oferecer aos lesados do BES a solução para os seus problemas. Apesar de não saber endireitar a sombra de uma vara torta, vai-lhes oferecer o reembolso do dinheiro, ou parte dele, em função dos montantes, que tinham investido, uns avisados, outros inadvertidamente, em títulos de dívida do GES vendidos pelo BES aos seus clientes.
Entre os lesados há pelo menos um emigrante e um pequeno comerciante que confiaram na sugestão dos funcionários do balcão do BES onde eram clientes de investir nesses títulos que lhes davam um bom retorno e tinham o nome secular da família Espírito Santo a garanti-los, e investiram, e perderam, as poupanças de uma vida, que são regularmente entrevistados pelas televisões. É indecente ter burlado pessoas como eles, e também é indecente deixá-los pendurados por terem comprado gato por lebre sem nenhum regulador o ter evitado, e era facilmente evitável. Há também amigos e familiares do tio Ricardo Salgado, há estrelas da televisão e do desporto, há gente que usa o nó da gravata tão bem apertado que não tem ar de cair numa historieta de funcionário de balcão do banco, mas também investiu nos tais títulos em vez de o investir, pelo menos esse, em paraísos fiscais. Desses, a televisão não costuma contar a história, talvez por receio de distrair o público da justa indignação que lhe causa a burla de que o emigrante e o comerciante foram vítimas. Adiante. Atalhando razões, vão todos receber a massa que já davam por perdida. Uma benção de Natal!
E como é que vai ser feito este pequeno milagre?
Tal como o ilusionista profissional nunca revela os seus truques de magia, o António Costa também não revelou o seu esquema. Nem o presidente Rebelo de Sousa ousou comentar, com medo de errar e dada a sua tradicional parcimónia a comentar o que não conhece. Mas, tal como um carteirista do Metro que tem noção que toda a gente já o reconhece e desconfia sempre dele, e como um verdadeiro socialista para quem o conceito sem custos para... é a chave que abre as portas do coração dos eleitores, o António Costa revelou, pelo menos, que era uma solução sem custos para... o contribuinte.
Mas será mesmo?
Vamos resistir à tentação de concluir o óbvio, se ele diz que é, é porque não é, e analisar os factos.
A solução passa por alguém obter um crédito para, com esse dinheiro emprestado, reembolsar os lesados. Como é normal, apesar de ser bizarramente elevado o número de pessoas, incluindo doutorados e doutorandos em economia, que não têm esta noção, o crédito será reembolsado ao credor no fim prazo contratado com o devedor. E, como seria de esperar nesta situação específica, será reembolsado a partir da massa falida do banco. Mas os credores tendem a não ser parvos, e não concedem o crédito sem uma garantia contratual dada por quem eles tenham a certeza que o consiga reembolsar se o reembolso a partir da massa falida não for possível ou suficiente. Quem vai prestar a garantia? O Estado. E a massa falida será suficiente? Se fosse, não havia lesados do BES, nem se estava a discutir o problema, nem a procurar soluções, bastava deixar a justiça funcionar até eles serem devidamente reembolsados. A massa falida não é suficiente. Sendo assim, quando o crédito chegar à maturidade, a garantia vai ser executada e vai ser o Estado a fazer o reembolso. Com que dinheiro? Com o dinheiro dos contribuintes...
Tanta análise para regressar ao ponto de partida, quem vai pagar a prenda de Natal do António Costa e do padrinho de casamento aos lesados do BES vão ser os contribuintes. Valia mais termos confiado no nosso instinto e concluído logo à partida que seria assim. Até porque o António Costa é, ele sim, ao contrário dos banqueiros da família Espírito Santo, um valor seguro que nunca desilude: mente sempre.
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