Domingo, 22 de Novembro de 2015

Um jantar

Já não conheço verdadeiramente a cidade em que nasci e na qual, salvo alguns breves intervalos, sempre vivi. Ela mudou muito e eu fiquei, no essencial, na mesma. Depois dos tempos do PREC e suas sequelas, e mesmo isso só por que me tocou directamente, deixei quase sempre de saber quem são os politiquetes nativos, o que fazem, o que pensam e o que dizem. Nunca li habitualmente os jornais locais, e quando calhou nos tempos mais recentes passar-lhes os olhos por cima encontrei a mesma mistura de guerrilha política, bairrismo mal entendido, opiniões de mesa de café embrulhadas em doutorices, e má poesia dos vates locais. Nada de substancialmente diferente do que se encontra nos jornais nacionais - apenas, e nem sempre, mais reles.

 

Pelo menos, suponho que seja assim. Que dos jornais nacionais leio sobretudo opiniões de gente que estimo; opiniões de gente que detesto; e de notícias quase nada, que a faca e o alguidar não me interessam e o resto ou precisa de contextualização, ou tradução para português, ou desconto do enviesamento partidário.

 

A cidade tem um polo universitário, foi capital europeia da cultura, está permanentemente pejada de turistas, e isso tem consequências.

 

Uma delas é a proliferação de restaurantes, os quais evito cuidadosamente, que do very typical quero uma prudente distância. E entre raros tascos das redondezas refractários à modernidade, e um ou outro valor seguro que ainda há por aqui, ou em cidades vizinhas, vou-me defendendo.

 

Mas hoje a companhia habitual faltou-me. E, confiado na opinião de dois amigos gourmet, fui experimentar um restaurante novo. Tem conceito, o estabelecimento, fiquei sabendo pelo empregado, à medida que me foi explicando, por exemplo, que não mudavam os talheres entre pratos e que os podíamos depositar, enquanto esperávamos pelo seguinte, numa peça de aço concebida para o efeito, com um engenhoso rasgo para encaixar a faca sebenta. E do conceito faz parte também uma decoração minimalista, a ausência de toalhas, ou guardanapos, de pano, a proibição de fumar e umas cadeiras que só não transformam o derrière do cidadão numa laje de cemitério se este, sendo mulher, tiver um físico de vénus de Willendorf, ou, sendo homem, umas adiposidades supranumerárias.

 

Escolhi o menu de degustação - três pratos, fui amavelmente informado - e o vinho, não da carta, que não há, mas do balcão, onde as garrafas estão alinhadas sem preços, que gente fina não se preocupa com detalhes.

 

O banquete começou com uma sugestão do chefe, consistindo numa mousse de batata com cominhos. E como tivéssemos ficado à espera de outra hipótese, o equívoco foi rapidamente esclarecido, no sentido de que afinal se tratava de uma oferta. Um “amiúje buche”, disse o moço, OK?

 

OK, venha lá a mousse. Era um copinho da mistela, quente, e não duvido nada que haja quem aprecie.

 

Seguiu-se um queijo da serra, crocante, num rolinho sobre uma ”cama” de rúcula com um molho cuja natureza não pude apurar. Estava bom, fui esclarecido e concordei. Com alguma melancolia, porquanto tenho a fraqueza de não apreciar transformações do queijo da serra, não ter o hábito de o comer a meio da refeição, e encarar com reserva quantidades homeopáticas.

 

Em seguida vieram dois bocadinhos de tamboril com arroz de feijão preto. Pareceu bom, o tamboril, embora não tivesse sido possível consolidar a impressão, por esgotamento quase imediato da matéria-prima. Mas o acompanhamento tinha uma dispensável carga simbólica, dado que os feijões faziam lembrar por demais as balas que por estes dias voaram em redor do Bataclan.

 

Finalmente o porco, acompanhado de uma detalhada explicação sobre os cuidados que foram postos na sua maturação. A gordura que me faltou no rabo, para aguentar as cadeiras, estava liberalmente contida no animal; decerto para evitar danos maiores para a saúde, faltava sal; e, numa louvável preocupação com o equilíbrio dietético, o mundo vegetal estava representado por uns cubos que o acompanhamento continha, sabendo rigorosamente a nada e que anunciei com orgulho serem tofu, para ouvir dizer que não, que aquilo era amido de milho prensado.

 

A sobremesa vinha num copo, contendo o que me pareceu ser chantilly de bisnaga sobre bocados de fruta de lata, acolitados com bolacha esmigalhada. O mestre de cerimónias, todavia, esclareceu que aquilo era na realidade uma construção de espuma de coco sobre frutos exóticos, OK?

 

Não ponho aqui o nome do restaurante, que não tem falta de clientes, pelo menos aos fins-de-semana. A mim faz-me falta paciência, todos os dias.

publicado por José Meireles Graça às 16:05
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