Diz que chegou “da província” e vê-se que diz a verdade. Não que Viseu seja a terra inferior e apalermada que Mendes sugere, espreitando por cima do ombro, imaginando que desceu a Lisboa e encontrou uma grande civilização entre São Bento e os festivais de rock. “A província”, tal como era entendida no tempo em que essa expressão se usava, não se aplica a Viseu e já quase nem faz sentido no país que existe hoje, mas encaixa perfeitamente na maneira retrógrada e preguiçosa, até um bocadinho salazarista, como Francisco Mendes da Silva constrói a ambição dele. Pobre Viseu que criou mais este medíocre.
O ministro Centeno, famoso por mentir ao país, merece-lhe a simpatia porque Mendes acha que “ainda não sabemos” o que “esteve em causa”; e por isso não houve “qualquer imoralidade”. Aprecia a indefinição ideológica, defende certas “causas”, diz que é pouco ortodoxo; declara que o “acusam” de “não ser de direita”. Efectivamente não é de direita, até me custa escrever uma evidência destas, mas esse não é o ponto; ele diz isto convencido da sua extraordinária complexidade, uma obra de arte da filosofia política com uma combinação de perspectivas tão pessoal que tentar classificá-lo como esquerda ou direita é um exercício de excessiva simplificação. Mendes quer que o vejam assim, vive neste capricho, e declama as platitudes dele olhando o mundo pela janela com um sorrisinho de satisfação intriguista. Cheguei a sentir pena do incapaz.
Que ele vá expandir-se para a televisão com dois carroceiros e um possidónio faz parte dos planos: os Mendes da vida precisam de se fazer notados. Que ele respeite Galamba pela grosseria, pela falta de escrúpulos e pela capacidade de se malcriar, também não é uma informação nova. Não lhe devia tocar (a não ser com um pau), se fosse inteligente; Galamba é uma ofensa estética, Mendes é candidato a governante (Deus se amerceie de nós!), a exibição pública de uma amizade é um gesto político e tem consequências. De resto estas amizades nunca foram, que eu tivesse dado conta, publicamente correspondidas. Galamba trata Mendes como o patife trata a namorada púbere: com algum nojo e sobranceira brutalidade.
A entrevista (“i”, 27 de Março 2017) anda para a frente e para trás, encaracola-se em voltinhas sem saída, sem nunca se afastar da ideia principal: dada por estabelecida a incompetência de Mendes para afirmar a direita, este profeta consome-se em maquinações para se pendurar no PS. Prevenido, como manda a sabedoria e a prudência, com um sistema teórico aprimorado e firme, assente em subtilezas finíssimas, que o deixam livre para adornar à esquerda ou à direita consoante a oportunidade. O que importa é concertar um entendimento, um acordo entre ele e os outros democratas, que garanta um grau de respeitabilidade sem vigilância nem oposição; e que, ao mesmo tempo, alivie os rústicos do peso das escolhas, das decisões, das eleições, desejavelmente até do livre arbítrio e da opinião própria – que é, como sabemos, meio caminho andado para a dissidência e a desarmonia, mas não vamos exagerar. O bom povo, como as crianças, precisa de ser conduzido e protegido, não é assim?
Mendes tem sentimentos, “irritou-se” quando o PS não viu as coisas da mesma maneira. Acha que foi “artificial”. Não percebe que o PS é aquilo que o PS faz. Se o PS decidiu rejeitar os partidos do sistema e formou uma aliança aberrante com a extrema-esquerda, o PS é hoje um partido aberrante e radicalizado. Convém meter isto na cabeça, muito bem arrumadinho, de uma vez por todas: como avisou Paulo Portas, a direita só volta a ser governo com uma maioria absoluta.
Mas não, o nosso herói não gosta da ideia: “o CDS não nasceu para ser mordomo do PSD”. Curiosíssimo. O CDS acabou de governar com o PSD por 4 anos, do princípio ao fim do mandato, durante um dos períodos mais difíceis e cruéis da nossa história. Ajudou a livrar o país de uma encrenca colossal; e a ganhar as eleições seguintes, ficando a meia dúzia de deputados para voltar a governar. Mendes não vê dignidade nisto. No entendimento dele, o CDS não contribuiu para alterar a natureza de um governo do PSD; o CDS foi “mordomo”. E Mendes não quer vê-lo descer nunca mais a essa circunstância vil. Suponho que o PS, coligado com Mendes, reservaria para o CDS um lugar mais honrado. O raciocínio não parece lúcido, pelo menos à primeira vista; mas em algum plano ele deve ser impecável, porque o homem pensa à luz das “influências do parlamentarismo britânico”. Também diz que desde a geringonça “o regime constitucional mudou”, e nós já sabemos, neste ponto da entrevista, que a tradução desta frase em língua de Mendes é: “está aberta a porta para todos os conúbios torpes”.
A direita, continua ele, deve defender o Estado Social - para recuperar o voto dos funcionários públicos. Mendes não pensa no país. Se pensasse prevenia que o Estado Social, se o quisermos conservar, tem de ser visto e revisto com muita atenção, e sujeito a escolhas, porque não há nem vai haver dinheiro para o manter desordenado e gigantesco como está. Como também não percebeu que não é possível haver “elevador social” numa economia estagnada. E diz que “a ideologia foi suspensa no tempo da troika”, talvez a frase mais incompreensível da entrevista inteira; a ideologia é um ponto de vista, nunca pode ser “suspensa” e não foi, sobretudo no tempo da troika. Como é que este filósofo imagina que “a salvação do país” é possível sem um ponto de vista?
Nenhuma destas gotas de sabedoria em estado concentrado chega sequer perto do momento em que Mendes declara o seguinte: “qualquer político que queira o poder por boas razões faria a mesma coisa na posição de António Costa”. É preciso ler a frase duas vezes para acreditar. “Qualquer” político? “Qualquer” mesmo ou qualquer um daqueles do círculo de Mendes, por quem ele tem estima? Da variedade dos “temíveis”, como o Galamba? E o que é que Mendes considera “boas razões”? Quem é o candidato a governante que não acredita ter “boas razões” para querer o poder? Compreendi mal ou Mendes considera legítimo e aceitável que um político, por ter sido derrotado ou por ter “boas razões”, traga o radicalismo para o poder? E que em troca de apoio parlamentar esse político “qualquer” aceite entregar aos extremistas todos os lugares importantes que eles quiserem no aparelho do Estado, para que nunca mais se possam de lá tirar?
O cavalheiro é dirigente do CDS, e anda à solta pela paisagem a dizer estas preciosidades. Ele confessa, a dada altura, que há lá gente ainda mais socialista do que ele. E eu, que já vou conhecendo o meu partido, confirmo que também vi. O que não sei, e era bom que alguém se ocupasse de explicar, é se há lá alguém que reconheça e confirme esta linha política. Só para percebermos onde anda a direita, se essa escolha existe, ou se temos de nos resignar para sempre a estes “príncipes da política”.
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